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Palavra dos Pastores


Ardor, símbolo e conceito
 
AUTOR: PE. FERNANDO NÉSTOR GIOIA OTERO, EP
 
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Tomando por base Dionísio Areopagita e São Tomás de Aquino, o Professor Gonzalo Soto, catedrático de Filosofia Antiga e Medieval na Universidade Pontifícia Bolivariana, de Medellín, analisa a profunda inter-relação entre teologia mística, conceitual e simbólica, ressaltando a importância dessa união para o pensamento e a cultura atuais.

Entrevista com o Prof. Gonzalo Soto Posada

Pe. Fernando Néstor Gioia Otero, EP

Como nasceu no senhor o desejo de se dedicar ao estudo da Filosofia Antiga e Medieval?

Fiquei muito impressionado ao ouvir dizer, no curso universitário, que a Idade Média foi uma época de obscurantismo e de trevas, e que as produções científicas, filosóficas e teológicas medievais eram uma barbárie.

Pus-me então a estudar essa era histórica, em suas expressões filosóficas e teológicas, bem como em suas manifestações literárias e culturais, sobretudo o românico e o gótico. E fui encontrando um mundo maravilhoso e deslumbrante, um mundo provocante e incitante, um mundo que de modo algum se parecia com o que eu ouvia dizer a respeito da Idade Média, ou seja, que só se devia estudá-la para melhor desprezá-la.

Era tudo ao contrário! Comecei a apreciá-la e dar-lhe valor. Houve sem dúvida problemas no mundo medieval, como em qualquer época histórica. Isso, porém, não me impediu de apaixonar-me por esse mundo até o ponto de, em meus estudos, falar de uma segunda natureza medieval.

Minha tese de doutorado, eu a fiz sobre um autor medieval: Isidoro de Sevilha e sua obra Etimologias. Estudei especialmente três místicos do mundo medieval: Santo Agostinho, Dionísio Areopagita e o mestre Eckhart, na transição do século XIII para o XIV.

E como não se pode entender o mundo medieval sem o mundo antigo, fui levado a estudar a cultura e a filosofia gregas, porque, em última instância, foi no diálogo entre o helenismo e o Cristianismo que a cultura medieval se tornou grandiosa em filosofia, em teologia, em arte e em literatura.

De onde veio seu interesse pela obra de Dionísio?

No final de sua vida, Tomás de Aquino teve uma experiência mística após a qual não voltou a escrever. Conforme revelou a um assistente, ele considerava ut palea (como palha), néscio e rude tudo quanto havia escrito. Portanto, depois dessa experiência mística, Tomás julgou ser uma tolice a Suma Teológica e toda a sua produção intelectual…

“Então, o que é a mística?” – eis a pergunta que me ocorreu.

E para obter resposta, o único meio era recorrer aos místicos. Já me tinha dado conta de que na obra de Tomás não só há um belo comentário ao livro Dos Nomes Divinos, de Dionísio, mas também que Tomás o cita muitas vezes em sua obra. Assim, a experiência mística de Tomás levoume a Dionísio, que considero um dos grandes místicos do Cristianismo, tanto oriental como ocidental.

Em Dionísio aprendi que, em última análise, a experiência mística é uma experiência do inefável, do incognoscível, do inominável, na qual subsiste apenas a nuvem do não-saber; ou seja, a alma precisa pôr entre parênteses tanto os símbolos quanto os conceitos, para, a partir de uma teologia do silêncio, entrar em união gozosa com Deus.

Isso é o que encontrei lendo Dionísio, e isso levou-me a Santo Agostinho e depois ao mestre Eckhart.

Nota-se a presença de Dionísio em todos os místicos. Não estudei São João da Cruz nem Santa Teresa a partir de Dionísio, mas em seu livro Glória, o Prof. Urs von Balthasar remete o leitor para um artigo do Dictionnaire de Espiritualité, dizendo que

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  “Ao estudar a Idade Média fui encontrando um mundo maravilhoso
e deslumbrante, um mundo que  de modo algum se parecia com o
que eu ouvia dizer” 

pela primeira vez nós, católicos, havíamos elaborado um bom trabalho sobre Dionísio. Nesse artigo estuda-se a presença de Dionísio na mística cristã, desde a era medieval até a contemporânea, mostrando sua influência em toda a mística cristã, não só do mundo oriental – grego, russo -, mas também do mundo ocidental.

Felizmente, porém, Dionísio afirma que deve-se fazer também teologia simbólica e conceitual. Ou seja, além da experiência mística, o teólogo deve recorrer a símbolos e a conceitos, porque, seguindo o inefável e o inexprimível, há uma teologia que se chama positiva – a teologia simbólica e conceitual – na qual, através dos nomes, dos conceitos e dos símbolos, alguma coisa se pode vislumbrar, se pode saber, de Deus.

Pode-se fazer hoje teologia abstraindo-se do passado?

Sempre sustentei que, embora o presente seja irredutível ao passado, é inexplicável sem o passado, assim como o filho, sendo embora irredutível ao pai, é inexplicável sem ele. Por esse motivo, sustento que o mundo moderno é irredutível ao medieval, mas é, ao mesmo tempo, inexplicável sem o mundo medieval. Em outros termos, o mundo moderno faz-se com a Idade Média ou contra a Idade Média, mas não sem a Idade Média.

Friedrich Nietzsche, pensador crítico com o Cristianismo, reconhece que o mundo ocidental é contra Platão ou com Platão, não porém sem Platão, incluindo aí o platonismo de Agostinho. Poderíamos dizer que para Nietzsche mesmo toda a modernidade é contra Santo Agostinho ou com Santo Agostinho, mas nunca sem Santo Agostinho.

Por isso não compartilho da tese das descontinuidades, ou daquilo que tem sido chamado de rupturas históricas, ou do estabelecimento de paradigmas que rompem com uma época anterior. Isso porque toda época, embora seja irredutível à época anterior, é inexplicável sem ela. Então, há uma descontinuidade contínua, não uma ruptura. O mundo moderno não pode explicarse sem o mundo medieval, embora não seja redutível ao mundo medieval.

Nesse sentido, creio que a partir da encíclica Æterni Patris, de Leão XIII, houve uma renovação do tomismo que, de um modo ou de outro, havia sido lançado à cesta de lixo pelo racionalismo esclarecido e inclusive por aqueles cristãos para os quais o mundo medieval era obscurantista…

Para mim, a Æterni Patris tem uma dimensão muito fecunda, que é de pôr Tomás em diálogo com as exigências do mundo naquele momento do século XIX. Isso dá origem ao célebre neotomismo, ou à chamada neoescolástica, que volta a Tomás. Mas a um Tomás que, sendo embora da Idade Média, põe-se em relação com a fenomenologia, ou com o positivismo, ou com o estruturalismo, ou com o existencialismo. A Æterni Patris estabelece um diálogo muito fecundo e aberto entre o moderno e o medieval.

Qual é o principal contributo da Idade Média à Filosofia do século XXI?

Uma das vias mais fecundas, creio eu, não só em termos filosóficos, mas sobretudo teológicos, é que em Tomás, e dialogando com Dionísio, encontramos os três tipos de teologia: simbólica, conceitual e mística.

A teologia deve trabalhar em torno dos símbolos porque, em última análise, o pensamento do homem passa por uma hermenêutica do simbólico: somos animais simbólicos; as mediações simbólicas são o que nos permite habitar o mundo. Em outras palavras, a cultura é o conjunto de mediações simbólicas que nós, homens, inventamos para fazer do mundo nossa morada, em termos de cultura.

Entretanto, Dionísio e São Tomás falam também de uma cultura conceitual, ou seja, deve-se elaborar logos e conceitos, produções conceituais a respeito de Deus. Em termos de Dionísio, “Nomes Divinos”.

Além disso, porém, há uma teologia mística. Ela não suprime as outras duas: a simbólica e a conceitual. Para falar da teologia mística, costumo exemplificar com o episódio dos discípulos de Emaús, narrado por São Lucas.

Quando iam caminhando, os discípulos encontraram-se com o personagem desconhecido e este começou a fazer teologia simbólica e conceitual com eles. Eu diria que atua como um exegeta, como um intérprete: vale-se de símbolos e conceitos para explicar-lhes as Sagradas Escrituras. Mas o relato termina assim: “Não se nos abrasava o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 32). Esse abrasar é o que eu chamo de teologia mística: inflamar os corações através do estudo dos símbolos e dos conceitos, acerca de Deus.

Então, o bonito de Dionísio e de Tomás de Aquino – e creio ser esta a grande mensagem para todos os tempos, inclusive hoje – é que quem trabalha sobre símbolos, e quem trabalha sobre conceitos, deve terminar ardendo na fruição, no gozo, na teologia do silêncio.

É preciso, portanto, que esses três tipos de teologia constituam um só corpo…

Sim, a mística é teologia, é um logos a respeito de Deus. Depois de produzir esse logos, é preciso explicálo em símbolos e conceitos. Aparece então a luz, a luz radiosa que ofusca, aparece o significado do perfume que se difunde, aparece o sentido de bemestar. Dirá Santo Agostinho: “Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargiste tua fragrância e, respirando-a, suspirei por Ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de Ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo no desejo de tua paz” (Confissões, l. 10, c. 27).

Nesse sentido, a mensagem que vejo tanto em Tomás de Aquino quanto em Dionísio é que deve-se fazer teologia simbólica, teologia conceitual e teologia mística, numa unidade na diversidade.

Quando se estabelecem abismos entre uma e outra – ou seja, entre os símbolos, os conceitos e o místico – creio que se começa por esses abismos a atentar contra a totalidade do homem. Se alguém a divide em compartimentos, atenta contra a unidade na variedade. E recordemos, era o grande lema deste grande neotomista que foi Maritain, ao escrever seu belo texto: Distinguir para unir – Os graus do saber. Julgo ser esta a grande mensagem de Tomás: distinguir para unir, unidade na diversidade.

Quem se detém na teologia mística, separa o místico do conceitual e do simbólico. Quem fica só no símbolo, só no conceito ou só no ardor, passa – digamos assim – a coxear. Então, parece-me que o episódio de Emaús, Dionísio e Tomás de Aquino o realizam plenamente.

Aí se encontra a genialidade desses autores e a grande aplicação que vejo para sua obra num mundo marcado por símbolos. Ninguém duvida de estarmos na época da imagem; é preciso tomar essas imagens e tornálas conceitos e possibilidades de experiência mística.

Quase que nos abre uma via para a santidade…

Quando uma magnífica construção conceitual filosófica ou teológica, como forma de saber, não se transforma em forma de viver… Eu às vezes lanço duas expressões: podemos ser excelentes teólogos, mas muito maus cristãos; ou podemos ser ótimos filósofos, mas péssimas pessoas. Não! É preciso ser excelente teólogo e muito bom cristão; e deve-se ser ótimo filósofo e ao mesmo tempo ótima pessoa. E essa é a dimensão do humanismo cristão de Dionísio e de São Tomás. A meu ver, neste ponto, São Tomás e Dionísio nos legaram uma mensagem tão fundamental que isto não é um patrimônio só do Cristianismo, mas de toda a humanidade.

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“Não tenham medo de filosofar, não tenham medo de
teologizar através de símbolos e conceitos, porque isso
induz ao amor a Deus”

É preciso continuar construindo teologia simbólica, teologia conceitual e teologia do ardor – ou, na linguagem de Dionísio, teologia afirmativa e teologia negativa – em diálogo com todas as exigências. Dionísio dialogou com Proclo e Plotino. Tomás dialogou com Aristóteles, Averróis e Avicena.

Hoje deve-se pôr em diálogo o símbolo, o conceito e o ardor do coração, com os Proclos, os Plotinos e os Aristóteles atuais, num desafio para o exercício filosófico e teológico do cristão. É o que fizeram Dionísio e São Tomás de Aquino.

Nesses sinais dos tempos, é preciso inculturar o Evangelho e evangelizar as culturas. E julgo que essa é a grande mensagem de Dionísio: inculturou o Evangelho e evangelizou a cultura, servindo-se de Proclo e de Plotino. E Tomás de Aquino, utilizando-se de Platão, e também de Aristóteles, que era o grande signo dos tempos, e nesse diálogo fecundo simbolizou, conceituou e, afinal, seu coração ardeu muito… A tal ponto que deixou de escrever!

Como situaria aqui o diálogo entre Fé e razão?

Quando alguém põe a Fé de um lado e a razão de outro ou, por assim dizer, põe os símbolos de um lado, os conceitos de outro e o ardor do coração de outro, esse já não é homem.

Diz Kant que as intuições sem os conceitos são cegas, e os conceitos sem as intuições são vazios. Às vezes atrevo-me a dizer – embora não no sentido kantiano – que a cultura sem Fé é cega, mas esta sem a cultura é vazia. O mesmo se poderia dizer para efeitos de Fé e razão: a razão sem a Fé é cega, mas a Fé sem a razão é vazia. Então, é o mesmo: os conceitos e os símbolos sem o ardor místico, isso com certeza será cegueira; mas o ardor místico sem os conceitos e os símbolos, será vazio.

Não se pode afirmar, então, que Fra Angélico traduziu em pinturas os escritos de São Tomás?

Em Dionísio, um dos nomes fundamentais de Deus – ao lado de amor, de luz, de bondade – é o pulchrum latino. Isidoro e Dionísio faziam uma etimologia muito bonita. Calor vem de caleo, e o verbo caleo significa incitar, provocar, chamar, convocar, atrair, entusiasmar. Nesse sentido, os símbolos nos quais o pulchrum se manifesta, incitam, provocam a que o coração se inflame, se abrase. Santo Agostinho diz: “fulguraste e brilhaste […] e agora estou ardendo no desejo de tua paz”.

Parece-me extraordinária essa comparação de como Fra Angélico pintou aquilo que São Tomás escreveu, porque – pelo que conheço de Fra Angélico – a pulcritude de Fra Angélico, em termos do pulchrum, para efeitos da beleza, está ligada à luminosidade das cores. Até mesmo as cores “opacas” estão brilhantemente iluminadas. Na minha opinião, isso é tomista e dionisiano. Deus é luz, Deus é fulgor, Deus é esplendor, Deus é fogo e por isso incita, chama, entusiasma, atrai.

Fra Angélico deveria ser exposto na internet, nos jornais e revistas, nas igrejas. É preciso difundilo! Porque a luminosidade de Fra Angélico estimula o ardor e incita, por seu esplendor, à elevação mística. Contudo, o bonito em Fra Angélico é que, não só leva ao ardor, mas combina o símbolo e o conceito. Então, em Fra Angélico encontra-se também a mensagem símbolo, conceito e ardor.

É este o carisma dos Arautos do Evangelho: a beleza, porta do místico. Li há pouco a muito bonita tese de mestrado de uma irmã arauto, que desenvolve essa ideia, “o belo, porta da mística”. Mais que porta, eu diria “entrada do místico”, e que seja bem grande essa entrada! A meu ver, os arautos precisam criar aqui um instituto de estética, um grupo de investigação de estética. Porque o pulchrum, o kalós, atrai, o kalós eleva, e através do símbolo vem o conceito, vem o ardor.

Que conselho o senhor daria para os jovens que vão começar o curso de filosofia ou de teologia?

Primeiro: não tenham medo de filosofar, não tenham medo de teologizar através de símbolos e conceitos, porque isso conduz ao amor a Deus. Segundo: que a filosofia e a teologia, além de uma forma de saber, convertam- se também em uma forma de viver. Terceiro: que a vida esteja de acordo com a doutrina; ou seja, que o símbolo, o conceito e o ardor façam essa junção entre a vida e a doutrina.

Por último, algo muito pessoal: enamorem-se de Dionísio e sintam em Dionísio o kalós. Deixem-se atrair por Dionísio, leiam Dionísio. E creio que isso vai produzir muito bons frutos em todos os sentidos.

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Nascido em 1949, na cidade de Caldas (Antioquia – Colômbia), Prof. Gonzalo Soto herdou de seu pai a paixão pela literatura, pela história e pelas línguas grega e latina. Após fazer seus primeiros estudos no seminário menor de Medellín, graduou-se em Filosofia pela Universidade Pontifícia Bolivariana. Aos 22 anos, foi nomeado vice-decano da Faculdade de Filosofia e Letras dessa instituição e, aos 23, decano da mesma. Em 1979, obteve o doutorado em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana, após um longo e frutífero período de estudos na Cidade Eterna.

Nos últimos anos têm se dedicado exclusivamente à docência e à investigação. É professor catedrático de Filosofia Antiga e Medieval na UPB, pertence à Sociedade Colombiana de Filosofia e faz parte de diversos grupos de investigação acadêmica. Entre as suas publicações destacam-se Diez aproximaciones al medioevo e Filosofía Medieval.

(Revista Arautos do Evangelho, Dez/2009, n. 96, p. 22 à 25)

 
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