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Palavra dos Pastores


Reconstruir com Deus no centro pela salvação das almas
 
AUTOR: PE. FRANÇOIS BANDET, EP
 
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Mais do que reconstruir casas e edifícios ou socorrer materialmente os feridos e desabrigados, a Igreja tem procurado ajudar espiritualmente o povo haitiano, para que possa reerguer-se e reencontrar-se.

Aquela terça-feira, 12 de janeiro, parecia um dia comum em Port-au-Prince. As pessoas acordavam e se preparavam para a labuta diária. Estudantes reviam pela última vez suas anotações antes dos exames escolares; mães preparavam o café da manhã para a família; trabalhadores se aprontavam para mais uma jornada. Nada indicava que uma catástrofe haveria de mudar o rumo dos acontecimentos…

Alguns segundos de tremor de terra foram suficientes para transformar a vida de milhares de famílias. Primeiramente, o espanto! O que estará acontecendo? Logo depois, começa-se a constatar que uma calamidade impressionante fazia ruir, de uma só vez, construções, planos, sonhos… e vidas! Onde estarão meus filhos, meus pais, minha família? Será que ainda existem?…

Três milhões de haitianos foram vitimados pelo terremoto, mais de um milhão dos quais se viram lançados de uma hora para outra numa situação de extrema penúria. Em plena tragédia, as instituições católicas do Haiti e países vizinhos foram as primeiras a se mobilizar, providenciando o que era possível em matéria de socorro imediato.

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A Igreja foi fortemente atingida pelo sismo. Somente em Port-au-Prince, desabaram 80 igrejas. Palácio Presidencial, dois meses e meio depois do terremoto. (foto da direita)

 

A Cáritas entra em ação imediatamente

Para avaliar a dimensão do valoroso esforço despendido pelas organizações católicas, é necessário informar-se localmente. Ninguém melhor do que Dom Bernardito Cleopas Auza, Núncio Apostólicono país, e Dom Pierre-André Dumas, Bispo de Anse-à-Veau et Miragoâne e presidente da Cáritas haitiana, para fornecer um quadro geral da situação. A equipe de missionários dos Arautos do Evangelho, que esteve no Haiti no início de abril, foi paternal e afavelmente recebida por eles.

Como resumir em um artigo tudo o que soubemos? De início, deve-se registrar que no próprio dia do terremoto, a Cáritas haitiana pôs-se a campo. Já no dia seguinte começaram a chegar a Port-au-Prince caminhões carregados de víveres e materiais sanitários básicos enviados pela Cáritas dominicana. A eles logo se somaram 18 caminhões com artigos de primeira necessidade reunidos pela Catholic Charities, ramo norte-americano dessa confederação de associações católicas.

A Secours Catholique-Caritas France lançou imediatamente um apelo a seus habituais colaboradores, visando coletar 30 milhões de euros. Em cinco dias já havia arrecadado 1,4 milhão para as necessidades mais urgentes. Nessa mesma semana, enviou a Port-au-Prince uma equipe de especialistas com a missão de organizar a distribuição das ajudas provenientes de diversos países. Em poucos dias, equipes de outros países chegaram ao Haiti a fim de prestar serviços de emergência nos locais onde havia necessitados para socorrer.

Um apelo feito pela Cáritas Internacional foi prontamente atendido por 60 associações nacionais que compõem essa federação. “Praticamente, não houve uma sequer que não tenha enviado contribuição. A Cáritas tem isto de particular: pensar de modo especial no mais fraco, no mais vulnerável, porque o coração de Deus pulsa por todos os seus filhos, mas, sobretudo, pelos seus filhos sofredores” – declarou Dom Dumas.

É difícil imaginar a envergadura da tarefa

Perante a magnitude da destruição, muitas mentes foram assaltadas por ideias de desespero, e a situação agravou-se com as desordens e saques que se seguiram à tragédia. O terremoto destruíra o Palácio Presidencial, o Palácio da Justiça e outros edifícios governamentais, tornando quase impossível a manutenção da ordem.

Essas difíceis condições não impediram os voluntários de levar a cabo sua benemérita obra. A Cáritas do Haiti foi designada

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Dom Bernardito Cleopas Auza,
Núncio Apostólico no Haiti

pela ONU para coordenar o acampamento de Pétionville, onde se abrigavam cerca de 50 mil pessoas. Membros dessa associação católica provenientes de outros países colaboraram na distribuição de refeições e água potável em numerosos locais.

Por várias semanas, as equipes concentraram seus esforços nas áreas prioritárias, nas quais havia prementes

necessidades: alimentos e água potável, instalações e produtos de higiene, atendimento ambulatorial aos feridos e doentes.

É difícil imaginar, à distância, o esforço que isto exigiu. “Trabalhar com as comunidades afetadas supõe fornecer, diariamente, refeições para 1,5 milhão de pessoas e transportar mais de 110 mil litros de água potável a quatro campos de refugiados”, informava o boletim de 9 de abril da Cáritas Internacional (http://www.caritas.org/ newsroom). Não só isso, mas até essa data, haviam sido também distribuídas tendas ou barracas a 100 mil desabrigados.

Eram terríveis as condições sanitárias nos locais atingidos pelo terremoto. Para prevenir riscos de epidemia, equipes da Cáritas encarregaram- se do fornecimento de água em cinco acampamentos, da construção de latrinas, fossas sépticas, locais para lavar as mãos e instalações de banho.

A necessidade urgente de dar assistência médica à população levou a priorizar a reabertura do Hospital São Francisco de Sales e a instalação de sete clínicas de campanha em Port-au-Prince e uma em Léogâne. Mais de 350 mil pessoas foram beneficiadas pelos programas de saúde executados pela Cáritas. Em três meses foram atendidas 48 mil consultas médicas e distribuídos 10 mil kits de higiene pessoal.

Manifestar a solicitude de Deus por seu povo

Contudo, a Igreja fez pelo povo haitiano algo muito mais importante do que fornecer uma mera ajuda material.

Dom Dumas ressaltou que a Cáritas “não se limitou a distribuir alimentos, água e kits de higiene, nem a providenciar serviços médicos e de enfermagem. Ela se ocupou também de problemas muito concretos no nível espiritual, de dar apoio às pessoas, para ajudá-las a se recompor após o sismo. Fez o mesmo trabalho que já realizava antes: ser uma presença da Igreja no meio do povo de Deus, para manifestar a solicitude de Deus, o coração palpitante de Deus por seu povo. Assim agindo, ela não faz senão traduzir a diaconia maternal da Igreja em favor do povo de Deus”.

Uma das primeiras preocupações foi organizar centros de apoio sócio-psicológico para as crianças dos acampamentos, proporcionando- lhes distrações adequadas e, tanto quanto possível, um ambiente de normalidade. Empenho especial foi posto no difícil trabalho de reconduzir, às respectivas famílias, as crianças perdidas nos momentos de confusão. Parte do esforço foi direcionado na recuperação de um asilo para idosos e pessoas deficientes, bem como no fornecimento de sementes, fertilizantes e ferramentas a mais de cinco mil pequenos produtores rurais do sul do país.

Olhar voltado para o futuro

A Igreja no Haiti foi fortemente atingida pelo violento abalo sísmico. Somente na capital, Port-au-Prince, desabaram 80 igrejas, entre elas a Catedral. Ocorreu o mesmo com o seminário maior, edifícios administrativos e locais de reuniões.

Muito mais lamentáveis foram as perdas humanas: Dom Joseph Serge Miot, Arcebispo de Port-au-Prince, pereceu sob os escombros do prédio do Arcebispado. Além dele, perderam a vida cinco sacerdotes, 56 religiosos e religiosas, e 14 seminaristas. Os padres sobreviventes – mesmo tendo falta, com frequência, dos objetos litúrgicos mais essenciais – não deixaram de exercer seu ministério.

Decorridos três meses da tragédia, as atenções voltam-se para o futuro. “Entramos já na fase da reconstrução”, explicou o núncio Dom Auza. “Debate-se bastante sobre isso. Há coisas cuja realização estão, por ora, fora de nossa capacidade, mas assim mesmo precisamos ver quando e como começar a reconstruir”.

Esclareceu que, entretanto, enquanto não se conseguem os recursos para iniciar as construções, a vida retoma seu curso numa fase transitória: “Vamos pôr em funcionamento o seminário, mas será
um seminário de tendas… Vamos reabrir as escolas, mas serão escolas de tendas… Ainda não há recursos para reconstruir.

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Dom Pierre-André Dumas, Bispo de
Anse-à-Veau et Miragoâne e
presidente da Cáritas haitiana

De 48 escolas existentes na região central de Portau- Prince, somente quatro restaram de pé. A enormidade dos problemas nos leva a pensar em medidas de transição”.

Isto já está sendo posto em prática: cerca de duas dezenas de escolas provisórias já foram erguidas, e inúmeras instituições de ensino retomaram suas atividades, mediante apoio.

Quanto à reconstrução dos edifícios eclesiásticos, a Igreja no Haiti conta com a valiosa ajuda das organizações católicas alemãs, da Conferência Episcopal dos Estados Unidos e do Catholic Relief Services. “Isso nos alenta muito”, assegurou Dom Auza.

A reconstrução não pode se limitar aos aspectos materiais

Para Dom Dumas, a reconstrução não pode limitar-se à reedificação de casas e à recuperação de obras estruturais, embora isso seja importante. “Sabemos que em torno de 70% a 80% das infraestruturas foram atingidas no Haiti. Estradas, igrejas, residências, bancos, supermercados, etc., foram destruídos. É preciso reconstruir. Mas é necessário também ajudar as pessoas a construir as comunidades, a recuperar a dimensão do viver em conjunto, da cidadania, das virtudes cívicas; ajudá-las a reencontrar suas dimensões interiores. Para esta finalidade, aqui está a Cáritas”.

A ênfase com que Dom Dumas se exprime manifesta a decisão da Cáritas haitiana de empenhar-se nesse objetivo. “Devemos educar as pessoas nos valores espirituais e morais. Devemos educar os fiéis nesses valores tradicionais: viver em conjunto, mantendo o respeito devido uns aos outros, com a convicção de que estamos de passagem nesta terra, com uma missão a cumprir. Ajudar o povo haitiano a reencontrar essas convicções capazes de aglutiná-lo e auxiliá-lo a reerguer-se. Não haverá reconstrução no Haiti se seu povo não reencontrar sua alma, se esse povo não disser: ‘Nós queremos, nós participamos’, e se não se decidir a tomar em mãos seu próprio destino”.

Respeitar os valores espirituais

Dom Pierre Dumas responde a uma última pergunta: a propósito de tudo isso, teria o senhor – na qualidade de cidadão haitiano e, sobretudo, de Bispo da Santa Igreja – uma mensagem a transmitir ao mundo católico?

A resposta veio espontânea e calorosa: “Essa tragédia ensinou-me que, quando um povo suporta os sofrimentos de uma maneira não exclusivamente fatalista, pode sair fortalecido e engrandecido. Esta é a mensagem que desejo enviar. Muitas vezes, em nossa vida, há quem nos ofereça paraísos artificiais, mundos inexistentes.

Há quem queira nos fazer acreditar na quimera de que, para ser feliz, é preciso afastar toda ideia de sofrimento. Ora, quando um povo é ferido em sua alma, em seu coração, em seu corpo e em seu espírito, mas conserva a Fé no meio do infortúnio, esse povo pode tornar-se muito mais forte. Pode ele próprio ser uma mensagem para os outros povos. Pela sua maneira de resistir, de viver a caridade, de se unir sem vãs lamentações, ele pode afirmar que há outros valores pelos quais o ser humano existe.

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A Cáritas não se limita a distribuir alimentos, água e kits de higiene, nem a providenciar serviços médicos,
mas procura ser uma presença da Igreja no meio do povo de Deus, para manifestar o coração palpitante
de Deus por seu povo

À esquerda, Dom Dumas com o autor desta reportagem; à direita, helicóptero da marinha italiana colabora
com Cáritas para levar ajuda a zonas remotas

“Então, meu povo gostaria de comunicar ao mundo esta mensagem. Não queremos uma construção feita de modernismos, de uma globalização sem alma, sem coração. Desejamos uma reconstrução em cujo centro esteja a pessoa humana. Pleiteamos uma reconstrução em que os valores espirituais sejam tomados em consideração, sejam respeitados. Não almejamos uma reconstrução feita para nós, em nosso lugar, mas sem nós, contrária aos nossos valores, oposta à nossa Fé. Porque ao povo
haitiano, se algo ainda lhe resta, se algo nele ainda resiste, é sua Fé.

“Creio ter explicado bem o seguinte: as infraestruturas serão bem-vindas, mas é necessário haver pessoas para animá-las. E que sejam pessoas renovadas, que não mais podem viver como antes de 12 de janeiro. Pessoas capazes de compreender que, conservando seus valores, devem aceitar a entrada da novidade de Deus, de um mundo novo e de Céus novos”.

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“Quando um povo é ferido em sua alma, em seu coração, em seu corpo e em seu espírito,
mas conserva a Fé no meio do infortúnio, esse povo pode tornar-se muito mais forte”.

Visita de Dom Dumas à aldeia de Baradères a fim de levar mantimentos e ajuda espiritual

(Revista Arautos do Evangelho, Junho/2010, n. 102, p. 18 à 21)

 
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