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Palavra dos Pastores


No coração do homem, a inscrição de Deus
 
AUTOR: PE. JOSHUA ALEXANDER SEQUEIRA, EP
 
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Toda criança nasce com uma inata capacidade de distinguir o bem do mal. Trata-se de uma "tendência natural" chamada de sindérese na tradição filosófica e teológica. Ela é comprovada por experiências científicas recentes.

Vou contar um caso, leitor, que certamente lhe é familiar. Ao relatá-lo, desejo chamar a atenção para um importante ensinamento nele contido, a respeito do qual poucas vezes refletimos. Afinal, como dizem os sábios, as grandes verdades muitas vezes estão escondidas nas realidades mais comuns.

Imaginemos a cozinha de um lar onde a mãe termina de enfeitar umbolo, espalhando confeitos sobre a cobertura. Enquanto isso, o filhinho acompanha cada um de seus gestos, fascinado pelas cores e pelo delicioso aroma que se propaga pela casa.Concluído o serviço, ela guarda na geladeira a iguaria e avisa:

– Agora vou sair, e você não toque neste bolo, pois é para o aniversário de seu irmão!

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80% das crianças se manifestaram
a favor do triângulo amigo

O pequeno meneia afirmativamente a cabeça. Dali a pouco encontra- se sozinho na casa. Brinca um pouco no jardim, mas seu pensamento permanece em outro lugar. Não resiste e caminha rumo à geladeira, apenas para olhar… Afinal, passa o dedinho pela saborosa cobertura para provar… e depois acaba se servindo fartamente do doce: além de alguns confeitos, não deixa de comprovar a qualidade da massa, e depois volta para o jardim, deixando por todos os cantos adocicadas e ingênuas impressões digitais.

Quando a mãe retorna, logo percebe as “marcas do crime”.

Foi você?! – pergunta.

– Não, não fui eu! – responde o filho.

-Não está mentindo? -indaga a mãe, e o pequeno logo enrubesce.

Quem o ensinou que não se pode mentir? Ninguém… Em sua tenra idade, nem frequentou as aulas de Catecismo ainda. E nem sequer conhecia o sentido da palavra “mentir”. No entanto, seu rubor constitui a melhor prova de ter ele compreendido a maldade de uma mentira, simplesmente ao tomar contato com ela.

Intuir os primeiros principios morais

Com efeito, as Sagradas Escrituras, a Tradição e a filosofia apontam para a existência de uma qualidade da alma humana de intuir os primeiros princípios morais, desde os primórdios do uso da razão, capacitando- a a orientar-se com eficácia no rumo da reta conduta. Nesse sentido, é significativa a admoestação de São Paulo aos romanos: “Quando os gentios, que não têm Lei, fazem naturalmente as coisas que são da Lei, esses, não tendo Lei, a si mesmos servem de Lei e mostram que o que a Lei ordena está escrito nos seus corações, dando-lhes testemunho disso a sua própria consciência e os seus pensamentos, que os acusam ou defendem” (Rm 2, 14-15).

Ao comentar o Livro de Gênesis, assinala São João Crisóstomo como nossos primeiros pais já discerniam a moralidade de seus atos: depois de pecar, Adão e Eva se escondem de Deus. Caim, disfarçando sua verdadeira intenção ao convidar Abel a ir com ele ao campo, revela também não ignorar a malícia do ato que premeditara praticar: o primeiro homicídio. E, tal como fizeram seus pais, ao ser interrogado finge desconhecer seu crime. Portanto, já nos primórdios da sociedade, ainda sem possuir letras, profetas ou juízes, todos conheciam seus deveres morais.1

Pesquisas científicas o confirmam

Mas, para que nossa reflexão não permaneça circunscrita aos tempos imemoriais, será de interesse analisar as contribuições oferecidas por modernos estudos. Uma equipe de cientistas do Departamento de Psicologia da Universidade de Yale (Connecticut, EUA), liderada pelo Prof. Paul Bloom, vem realizando pesquisas cujos resultados, vistos por muitos como uma descoberta inédita – em certo sentido, de fato o é -, corroboram o magistério multissecular da Igreja, e “contrariam aquilo que foi ensinado durante décadas a legiões de graduandos em psicologia”. 2

Reunindo grupos de bebês de 6 a 10 meses – muito antes, portanto, do uso da razão -, os peritos apresentaram- lhes a seguinte situação: uma bola de desenho animado tenta escalar uma íngreme colina. Por duas vezes ela cai sem conseguir alcançar o objetivo, mas na terceira é ajudada por um triângulo e chega por fim ao topo. Logo a cena se repete com uma variante: por mais duas vezes tenta a bola subir a ladeira sem consegui-lo e, na terceira, em lugar de receber ajuda, um quadrado a empurra para baixo. Interessadas, as crianças acompanham o desenrolar da trama e reagem de forma surpreendente: 80% se manifestam a favor do triângulo amigo e rejeitam o quadrado malévolo.

Prosseguindo nas experiências, os psicólogos apresentaram um cachorro de brinquedo tentando abrir uma caixa. Aproxima-se dele um urso de pelúcia e oferece-lhe uma ajuda, mas chega outro urso, senta-se sobre a caixa e impede a operação. A grande maioria dos bebês, quando estimulada a eleger um dos dois, escolhe o urso prestativo. Num terceiro enredo, surge em cena um coelho ladrão que rouba a bola de um gato, enquanto outro a devolve. Neste caso, crianças de cinco meses escolhem o coelho benfazejo, e algumas um pouco maiores tomam a iniciativa de bater no malvado.

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Crianças de cinco meses
escolhem o coelho benfazejo

Fotogramas do vídeo difundido pelo
New York Times em sua página web

Aprofundamentos rigorosos feitos a partir dessas constatações comprovam que os bebês diferenciam ações sociais como inerentemente boas ou más, e atribuem boas e más qualidades a quem as pratica, por vê-las como originadas de predicados essenciais e intrínsecos (e não superficiais ou extrínsecos) do agente.

O mais revelador, entretanto, ocorreu quando bebês de oito meses tiveram que escolher entre bonecos que premiavam ou puniam o coelho benfazejo e o malvado. Em se tratando do ‘bom’ coelho, a escolha infantil ia para o boneco que o premiou; mas, no caso do malvado, os bebês preferiam aquele que lhe castigava, apesar da predileção generalizada por atos bons nos outros experimentos. Poder-se-ia afirmar que eram bebês justiceiros!3

“Evidentemente, muitos aspectos de um sistema moral plenamente desenvolvido estão fora do alcance de crianças que ainda não falam. […] Nossas descobertas indicam que seres humanos se envolvem na avaliação social numa fase de desenvolvimento muito anterior ao que se pensava previamente, e sustentam a opinião de que a capacidade de avaliar os indivíduos a partir de suas interações sociais é universal e não aprendida”, 4 concluem Bloom e seu grupo.

“Élan” para a retidão e para a justiça

Estamos, portanto, diante de um hábito inato da alma humana que antecede e prepara de forma espontânea o juízo da consciência, constituindo o ponto de partida sobre o qual se construirá o edifício da moralidade.5

Amplamente estudado pela Escolástica, este habitus é chamado de sindérese, e foi definido pelo Papa Paulo VI como uma “tendência natural” que guia o espírito para o “recurso interior a princípios inatos relativos ao agir humano, os quais ultrapassam os limites da esfera subjetiva e voltam-se para a origem da atividade consciente”. 6 Glosando São Tomás, o então Cardeal Ratzinger a definiu em 1991 como “uma íntima repugnância pelo mal e uma íntima atração pelo bem”.7

São Tomás de Aquino nos fala com mestria a esse respeito nas Questões disputadas – Sobre a verdade, onde explana a essência e necessidade da sindérese: “Em consequência, para que seja possível a retidão nos atos humanos, deve haver algum princípio permanente de inquebrantável integridade, em referência ao qual todos os atos humanos sejam examinados, de modo que esse princípio permanente resista a todo mal e confirme todo bem. Esta é a sindérese, cujo papel é advertir contra o erro e inclinar ao bem”.8

Ou seja, o hábito da sindérese nos possibilita uma intuição rápida e certeira dos primeiros princípios que regem os atos morais, como o exemplo do bolo e as experiências com bebês denotam. Toda pessoa o possui pelo simples fato de ser racional; no período anterior ao do uso pleno da razão, ele atua no mesmo lusco-fusco em que age a própria razão; e no posterior,conduz ao cerne da verdade moral, propiciando à consciência emitir um parecer e oferecendo as condições para que este seja verdadeiro.

Donde concluirmos sem esforço existir no homem um élan para a retidão e para a justiça, o qual lhe é tão natural quanto o ar que respira ou as cores que enxerga.

Não é a sindérese uma aptidão adquirida, pois – embora não nasçamos com ideias latentes, as quais conheceríamos sem saber, como pretenderam Sócrates e Platão – trazemos desde o berço este selo indelével que nos conduz à intuição dos primeiros princípios. Mesmo assim, é sabido que a sindérese não nos oferece princípios explícitos e formulados, tornando-se indispensável, por tal motivo, explicitar os termos que compõem os princípios, mediante o contato experimental com a realidade concreta: os bebês acima mencionados, por exemplo, não reagiriam como foi visto, sem o confronto com o comportamento dos bonecos. Mas, será a partir de constatações como estas que, na idade da razão, serão plasmados todos os critérios morais que nortearão o curso de suas existências.

Sindérese e consciência

Por mais que o poderoso auxílio da sindérese nos acompanhe a todo o momento, sempre caberá ao homem a deliberação sobre seus atos particulares, e aqui desponta o papel desempenhado pela consciência.

O padre Victorino Rodríguez, OP, definiu a consciência como “um juízo ditado pela própria razão, com base nos princípios da moralidade, sobre a licitude ou ilicitude do que o homem concretamente fez, está fazendo ou fará”.9 Numa palavra, a sindérese aponta o princípio universal que será aplicado pela consciência ao ato concreto, e por isso o tomismo não qualifica esta última como um hábito, nem sequer uma potência, mas sim como um ato, um julgamento.10 Assim, a sindérese indica sempre que a mentira é ilícita, mas é a consciência que deve aplicar este princípio a circunstâncias particulares, como: aparecer bem diante dos outros, evitar um castigo ou proteger a reputação alheia.

Embora seja função primária e própria da consciência julgar o ato que se executa presentemente, em um determinado momento e lugar, ela pode também analisar acontecimentos do passado, enquanto conformes ou desconformes aos princípios da moralidade, ou criar um sentido de responsabilidade moral em relação a algo que será feito. Três episódios bíblicos nos dão exemplo disto.

Ao ser feita à casta Suzana uma proposta indecorosa por dois anciãos do povo (cf. Dn 13, 20), saltou- -lhe no mesmo instante à mente a claríssima noção de que aquele ato era contrário à Lei de Deus. Sua reação, louvável pela integridade da opção, indica uma fidelidade à consciência concomitante, que manda, proíbe ou permite o ato no momento de ser praticado: “Prefiro cair, sem culpa alguma, em vossas mãos, do que pecar contra o Senhor” (Dn 13, 23), respondeu ela.

Distinto foi o caso em que o Divino Mestre, em resposta aos fariseus que pediam a punição da adúltera, disse: “Quem dentre vós não tiver pecado, atire a primeira pedra!” (Jo 8, 7). E começou a traçar na areia inscrições misteriosas que afugentaram os delatores: “A essas palavras, sentindo-se acusados pela sua própria consciência, eles se foram retirando um por um, até o último, a começar pelos mais idosos” (Jo 8, 9). Era a consciência consequente – que aprova, acusa ou escusa o ato já praticado – a recriminar-lhes o erro abraçado há largo tempo.

Já na heroica epopeia relatada pelo Primeiro Livro dos Macabeus, quando chega aos ouvidos do povo hebreu decreto do rei Antíoco, ordenando a todos o abandono da religião do Deus vivo, Matatias e os seus decidem não prevaricar: “Numerosos foram os israelitas que tomaram a firme resolução de não comer nada de impuro, e preferiram a morte antes que se manchar com os alimentos” (I Mc 1, 62). Ora, essa escolha precedeu de muito o dia em que foram chamados a sacrificar diante de todos, significando uma deliberação da consciência antecedente, a qual manda, proíbe ou permite um ato futuro.

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“São Paulo” – Pórtico dos Apóstolos,
Catedral de Notre Dame, Paris

Vemos assim o quanto consciência e sindérese estão intimamente entrelaçadas. Todavia, uma grande diferença se interpõe entre ambas. A segunda é infalível: da mesma forma como o princípio de contradição nos fixa na certeza de que um homem não é uma árvore nem um pássaro, a sindérese sempre nos dirá que o furto é um mal, como também o homicídio, o perjúrio e os demais vícios. A consciência, ao contrário, é passível de erro, pois ela pode emitir seu juízo conjugando um falso princípio particular – por ignorância ou culpa – ao princípio universal da sindérese, ou pode também aplicar este inadequadamente ao caso específico. Seja como for, todos têm obrigação de trabalhar para corrigir os erros da consciência moral, frutos da debilidade humana após o Pecado Original, ou do meio social.11

Por que faz o homem o mal que não quer?

Sabemos o quanto o intelecto humano possui admirável coesão: não gostamos de mentiras, falsidades ou enganos. Sentimo-nos desgostosos quando descobrimos uma simulação e, sobretudo, quando presenciamos uma iniquidade. Por outro lado,
vibramos de entusiasmo perante a proclamação da justiça, ou diante de um audacioso ato em defesa do bem. O “não te é lícito!” (Mc 6, 18) com que São João Batista invectivou Herodes, ou o intrépido brado de Matatias: “Não nos desviaremos de nossa religião nem para a direita, nem para a esquerda” (I Mc 2, 22), suscitam em nós exclamações de júbilo, por exprimirem de forma paradigmática aquilo que sentimos ser a recta ratio, a reta razão.

Essas reações são fruto da sindérese, a qual, como afirma o Doutor Angélico, jamais poderá ser destruída. 12 Pelo contrário, ela continua existindo até nos condenados às penas eternas, sendo “causa primária daquele ‘verme roedor’ de que nos fala o Evangelho (Mc 9, 34). Não é ele outra coisa senão uma perpétua acusação e remorso dos pecados cometidos, que atormenta a consciência daqueles infelizes”.13

Há, portanto, na natureza humana uma fundamental e ontológica apetência do bem, da qual o vício não faz parte, pois ele “não é natural, mas é o fruto de atos humanos”.14 Surge aqui uma pergunta crucial, repetida por pessoas de todas as gerações, e de aparência sempre nova, apesar de tão antiga: por que escolhemos o erro? Por que agimos tantas vezes de maneira reprovável?

Num desafogo, São Paulo parece querer traduzir essa perplexidade do gênero humano ao dizer: “O querer o bem está em mim, mas não sou capaz de efetuá-lo. Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero” (Rm 7, 18b-19).

Bem aparente e bem real

Depois da entrada do pecado na História, pela queda de nossos primeiros pais, o homem tornou-se propenso a praticar uma espécie de pseudo-bem, que deleita as más inclinações da alma decaída mantendo, entretanto, aparência de retidão. Sem essa aparência, a prática do pecado seria inconcebível, pois “é psicologicamente impossível para o homem que a vontade humana se lance à possessão de um objeto se este não é apresentado pelo entendimento como um bem”.15

De que forma pode o homem confundir o bem aparente com o real? A maneira em que cai o entendimento nesse grande erro – fundamento de todo pecado – é pormenorizadamente descrita pelo padre Royo Marín ao tratar sobre a “psicologia do pecado”.

Ao apreciar o valor de um objeto criado, explica o teólogo dominicano, a inteligência pode se enganar facilmente considerando certos aspectos desse objeto lisonjeiros para alguma das partes do composto humano, enquanto vê, por outro lado, que o mesmo objeto apresenta também aspectos rejeitáveis, por exemplo, sob o ponto de vista moral.

Entre ambos os extremos, a inteligência fica em dúvida. Se ela conseguir prescindir da “gritaria das paixões”, apresentará esse objeto à vontade como algo inconveniente e esta o rejeitará com energia e presteza. “Mas se a inteligência deixar de prestar atenção naquelas razões de inconveniência e se fixar cada vez mais nos aspectos lisonjeiros para a paixão, chegará o
momento em que prevalecerá nele a apreciação errônea de que, afinal de contas, é preferível nas atuais circunstâncias aceitar aquele objeto que se apresenta tão sedutor. E, fechando os olhos ao aspecto moral, apresentará à vontade aquele objeto pecaminoso como um verdadeiro bem, isto é, como algo digno de ser apetecido. […] A inteligência, ofuscada pelas paixões, terá incorrido no erro fatal de confundir um bem aparente com um bem real”.16

Nessa perspectiva, por exemplo, o homem será levado a mentir para “evitar um mal maior”, a roubar para “equilibrar riquezas” ou a cometer um assassinato para “defender o bem comum da nação”…

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A plenitude da liberdade reservada a cada um de nós jamais será atingida sem que
o Redentor nos ampare no íntimo do nosso ser

“Santa Ceia” – Basílica de Notre Dame, Montreal

“Sem Mim nada podeis fazer”

Com muita razão, afirmava o Cardeal Ratzinger: “O caminho elevado e árduo que conduz à verdade e ao bem não é um caminho cômodo. Ele desafia o homem”.17 A este propósito, ensina São Tomás: “No estado de corrupção, o homem falha naquilo que lhe é possível pela sua natureza, a tal ponto que ele não pode mais por suas forças naturais realizar totalmente o bem proporcionado à sua natureza. Entretanto, o pecado não corrompeu totalmente a natureza humana a ponto de privá-la de todo o bem que lhe é natural. […] Ele [o homem] parece um enfermo que pode ainda executar sozinho alguns movimentos, mas não pode mover-se perfeitamente como alguém em boa saúde, enquanto não obtiver a cura com a ajuda da medicina”.18

Este unguento sobrenatural é a graça divina. Sem ela, na expressão do padre Philipon, “um abismo intransponível separa a criatura de seu Criador”,19 e o homem se vê abandonado à própria debilidade, no dilema entre o bem desejado e as solicitações da concupiscência. A graça “é um auxílio trazido por Deus ao homem para fazê-lo querer o que é bom e agir bem”,20 sem cuja assistência torna-se quimérica a plena fidelidade à sindérese, e impossível a familiaridade com Deus.

Quando meditamos sobre a Santa Ceia e repassamos as palavras de Jesus: “Sem Mim nada podeis fazer” (Jo 15, 5), quiçá não meçamos a extensão desse “nada”, e o sentido estrito em que deve ser entendido. A plenitude da liberdade reservada a cada um de nós jamais será atingida sem que o Redentor nos ampare no íntimo de nosso ser e nos conduza, Ele mesmo – sempre com o assentimento de nossa vontade -, a todas as formas de bem.

Sob o influxo da graça, começa a secar-se o pântano do erro e tornamo-nos capazes de dirigir nossas ações conforme os critérios mais nobres, porque eles passam a nos apetecer mais que as solicitações inferiores. Nasce a força para cumprir os bons propósitos, aquietam-se as paixões, a fomes peccati deixa de ser avassaladora e se estabelece uma harmonia semelhante à que possuía nosso pai Adão no Paraíso. O Apóstolo das Gentes, tendo rogado ao Divino Mestre que o livrasse “do estímulo da carne”, recebeu a mais consoladora das promessas: “Basta- -te a minha graça, porque é na fraqueza que se revela totalmente a minha força” (II Cor 12, 9).

A voz da integridade

Na maravilhosa trajetória de seus vinte séculos de existência, a Santa Igreja foi transmissora da graça e educadora dos povos. Fiel aos desígnios de seu Fundador, soube levar ao mundo inteiro a salutar medicina dos Sacramentos e curar a fundo a natureza humana ferida pelo pecado. Sob sua influência, floresceu a verdadeira moralidade.

Hoje, entretanto, talvez mais do que nunca, inúmeros dos nossos coetâneos parecem empenhados em trilhar vias bem diversas, arrastando incontável número de almas a procurar nas práticas mais reprováveis e pecaminosas a felicidade que estas não lhe podem dar. Em algumas sociedades, até, parecem ter sido abafadas as legítimas aspirações da alma humana para alimentá-la com um veneno de morte, cujas lamentáveis consequências todos podemos comprovar.

É o momento de não esquecer que no coração do homem sempre palpitarão santos anseios e o inextinguível desejo de encontrar nesta vida reflexos da eterna bem-aventurança e perguntar-se como revigorá- -los ou fazê-los renascer.

Quando o Papa João Paulo II lançava da Cátedra de Pedro o brado: “A Igreja precisa de santos!”21, fazia-o sabendo ser o exemplo dos justos o mais poderoso meio de suscitar nas almas o senso moral adormecido. Pois a mera presença de um bem-aventurado é poderosa voz capaz de atingir, sem retóricas ou argumentações, a zona mais profunda do coração humano.

Ao desejarmos santidade e procurarmos caminhar rumo à perfeição, podemos estar certos, portanto, de que o testemunho vivo de nossa integridade será um eficaz instrumento para libertar e revigorar nas almas o senso moral entorpecido pelo relativismo do mundo moderno. Isso confere um grandioso sentido à nossa vida cristã!

Notas:

1 Cf. SÃO JOÃO CRISÓSTOMO. Homilia XII sobre as estátuas. PG 49, 131-134.
2 BLOOM, Paul. The Moral Life of Babies. In: The New York Times Magazine, 9/5/2010, p. MM44: www.nytimes.com.
3 Idem. Os vídeos de alguns testes estão acessíveis no mesmo site citado acima.
4 Hamlin, J. Kiley; WYNN Karen; BLOOM Paul. Social evaluation by preverbal infants. In: Nature. London, 2007, v.450, p.558-559.
5 São Tomás chama a sindérese de “um hábito natural especial” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.79, a.12, resp.); uma disposição interior inata, que atua como um habitus: “O habitus dos primeiros princípios, que se chama sindérese” (Idem, I,
q.79, a.13, ad 3.). Sobre os hábitos, sua natureza, distinção, possibilidade de perda e diminuição, São Tomás trata com profundidade na Suma Teológica, I-II, q.49-54.
6 PAULO VI. Audiência geral, 13/7/1977.
7 RATZINGER, Joseph. “Elogio della coscienza: il brindisi del Cardinale” In: Il Sabato, 16/3/1991, p. 83-91.
8 SÃO TOMÁS DE AQUINO. De Veritate. q.16, a.2, sol.
9 RODRÍGUEZ Y RODRÍGUEZ, OP, Victorino. Temas-clave de humanismo cristiano. Madrid: Speiro, 1984, p.134.
10 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología Moral para seglares. 7.ed. Madrid: BAC, 1996, v.I, p.157.
11 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.1793. 12 “Num ato particular, o juízo universal da sindérese é destruído quando alguém escolhe pecar. Porque nessa escolha, a força da concupiscência, ou de outra paixão, absorve tanto a razão que o juízo universal da sindérese
não é aplicado ao ato particular. Mas isso não destrói a sindérese em seu conjunto, mas apenas em certo sentido. Portanto, absolutamente falando, concluímos que a sindérese nunca é destruída” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. De Veritate, q.16, a.3, resp.). Ver também Scriptum super sententiis, l.2, Dist.39, q.3. a.1.
13 ROYO MARÍN, op. Cit., p.159.
14 MONGILLO, OP, Dalmazio. In: Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005, v. IV, p.289.
15 ROYO MARÍN, op. Cit., p.232.
16 Idem, p. 233.
17 RATZINGER, op. cit.
18 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.109, a.2, resp.
19 PHILIPON, OP, Marie Michel. Los dones del Espíritu Santo. 2.ed. Madrid: Palabra, 1985, p.251.
20 NICOLAS, OP, Jean-Hervé. In: Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2005, v.IV, p.839.
21 Mensagem para a XX Jornada Mundial da Juventude, 6/8/2004.


(Revista Arautos do Evangelho, Jan/2011, n. 109, p. 18 à 23)

 
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