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Comentários ao Evangelho


O verdadeiro cumprimento da Lei está no que dizem os fariseus?
 
AUTOR: MONS. JOÃO SCOGNAMIGLIO CLÁ DIAS, EP
 
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A Liturgia deste domingo nos mostra que o Messias não veio abolir nem diminuir a Lei, mas sim dar-lhe pleno  cumprimento. Ora, diz-nos São Paulo que ninguém se justifica pela prática da Lei, mas só pela fé em Jesus Cristo. Como  resolver essa aparente contradição?

“Naquele tempo, disse Jesus aos seus discípulos: 17 ‘Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar-lhes pleno cumprimento. 18 Em verdade, Eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra. 19 Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino dos Céus.  20 Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus. 21 Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. 22 Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: ‘patife!’ será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de ‘tolo’ será condenado ao fogo do inferno. 23 Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa a tua oferta aí diante do altar, e vai primeiro reconciliar-te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta. 25 Procura reconciliar-te com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. 26 Em verdade Eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo. 27 Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. 28 Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração. 29 Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. 30 Se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta-a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno. 31 Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’.  32 Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério. 33 Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. 34 Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus; 35 nem pela terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei. 36 Não jures tampouco pela tua cabeça, porque tu não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo. 37 Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do Maligno'” (Mt 5, 17-37).

I – O pecado e a Lei

No Paraíso Terrestre, o homem refletia de modo admirável o Criador na perfeita harmonia reinante entre Fé e razão, vontade e sensibilidade. A Fé iluminava o entendimento, e este governava uma vontade inteiramente equilibrada, contra a qual a concupiscência não se revoltava, pois no primeiro homem – ensina São Tomás – “a alma estava submetida a Deus, seguindo os preceitos divinos, e também a carne estava submetida em tudo à alma e à razão”.1

Gozavam ainda nossos primeiros pais do dom de integridade, pelo qual sua alma tendia ao mais elevado e tinha propensão para escolher o bem. A ausência de conflitos entre as diversas partes desse microuniverso chamado homem – mineral, vegetal, animal e espiritual – outorgava-lhe a felicidade e lhe proporcionava toda a facilidade para cumprir a Lei Natural.

Ora, com o pecado, Adão e Eva perderam esse dom, a harmonia na qual se encontravam, estabelecida graças à justiça original, foi destruída; e rompeu-se o domínio das faculdades espirituais sobre o corpo.2 A carne, afirma São Tomás de Aquino, “passou a ser desobediente à razão”,3 e cada uma das partes que compõem o homem quis fazer valer sua própria lei. A desordem introduziu-se em nosso interior.

Necessidade de preceitos claros e insofismáveis

Deus implantou na alma humana uma luz intelectual pela qual o homem conhece que o bem deve ser praticado e o mal, evitado. Essa luz – denominada sindérese pela Escolástica – não se apagou com o primeiro pecado, mas permanece em nossa alma. Conforme afirma o Concílio Vaticano II, o homem “tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus”,4 a Lei Natural.

E como nosso espírito é governado por uma lógica monolítica, não conseguimos praticar qualquer ação má sem procurar justificá-la de alguma maneira. Por isso, para poder pecar, o homem recorre a falsas razões que sufocam sua reta consciência e levam o entendimento a apresentar à vontade o objeto desejado como um bem. É essa a origem dos sofismas e doutrinas errôneas com os quais procuramos dissimular nossas más ações.

À vista disso, tornou-se indispensável – além do selo impresso por Deus no mais íntimo das nossas almas – a existência de preceitos concretos a lembrar-nos de forma clara e insofismável o conteúdo da Lei Natural.5 São eles os Dez Mandamentos entregues por Deus a Moisés no monte Sinai.6

Com efeito, de forma muito sintética, compendia o Decálogo as regras postas por Deus na alma humana. Deus “escreveu em tábuas” o que os homens “não conseguiam ler em seus corações”, afirma Santo Agostinho.7 E o fato de ter sido gravado em pedra – elemento firme, estável e duradouro – simboliza o caráter perene da sua vigência.

Os fariseus deturpam a Lei de Moisés

Face a toda norma jurídica, há sempre duas correntes: a dos laxistas que, em nome da “moderação”, justificam sua inobservância com todo gênero de ardis e racionalizações; e a dos exagerados, apreciadores da lei pela lei, abstraindo do seu verdadeiro espírito e do seu vínculo com o Legislador.

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Na segunda categoria estavam os escribas e fariseus. Negligenciavam o cumprimento dos mais fundamentais preceitos do Decálogo, mas acrescentaram à Lei mosaica, ao longo dos tempos, numerosas obrigações e regras, levando sua prática a extremos ridículos. Ora, essa Lei, escreve Fillion, “deveria ser para os israelitas um privilégio, e não um fardo; entretanto, por obra dos fariseus e das numerosas prescrições coligidas por eles, pesava de modo opressivo sobre os ombros dos judeus”.8

Julgando-se os únicos donos da verdade, os Doutores da Lei serviram-se de sua autoridade para criar uma moral baseada nas exterioridades, enquanto o orgulho, a inveja, a ira e outros vícios borbulhavam sem freio em seus corações. Mereciam, portanto, a terrível censura de Nosso Senhor: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Pagais o dízimo da hortelã, da erva-doce e do cominho, e deixais de lado os ensinamentos mais importantes da Lei. Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Limpais o copo por fora, mas por dentro estais cheios de roubo e cobiça. Serpentes! Víboras que sois! Como escapareis da condenação do inferno?” (Mt 23, 23.25.33).

II – Cristo é a plenitude da Lei

17 “Não penseis que vim abolir a Lei e os Profetas. Não vim para abolir, mas para dar- lhes pleno cumprimento”.

De tal forma Jesus abstraia de algumas normas farisaicas, que muitos poderiam imaginar ter vindo Ele revogar a Lei mosaica, substituindo-a por outra.

Os Doutores da Lei, por exemplo, proibiam o contato com os pecadores e publicanos, enquanto o Divino Mestre ia jantar em casa deles. Rompia também os preceitos farisaicos do sábado, permitia que seus discípulos omitissem as abluções rituais antes da refeição e afirmava não estar a impureza nos alimentos, mas sim no coração. Tudo isso poderia dar a impressão de ser Ele um laxista disposto a abolir as antigas práticas, excessivamente rigorosas.

O Decálogo é um reflexo do Criador

Não ignorando essa objeção dos seus ouvintes, começa Jesus por mostrar-lhes não ser a Boa Nova “uma doutrina de facilidades e uma religião a preços promocionais, menos ainda uma anarquia ou um rompimento revolucionário com o passado de Israel”.9 Pelo contrário, Ele vai edificar o Evangelho “sobre os antigos fundamentos, e da Lei divina nada passará, a menos que se diga que um botão de rosa acaba quando a flor desabrocha, ou que um esboço traçado a lápis é suprimido quando a pintura definitiva vem completá-lo, fixá-lo para sempre”.10

Em que consiste, então, o “pleno cumprimento” anunciado pelo Messias?

A antiga Lei era, segundo São Tomás, a “da sombra”, pois apenas “figurava com alguns atos cerimoniais e prometia por palavras” a justificação dos homens.11 A nova, entretanto, é a “da verdade”, porque realiza em Cristo tudo quanto a Lei antiga prometia e figurava. Ou seja, a Lei nova realiza a antiga enquanto supre o que faltara a esta.12

Nosso Senhor não é só o Autor da Lei, mas também a Lei viva. Assim como dizemos que “o Verbo de Deus Se fez carne”, podemos afirmar que “a Lei de Deus Se fez carne e habitou entre nós”. No Divino Mestre se encontram os Dez Mandamentos no estado de divindade, pois, por exemplo, o que fez Ele na sua vida terrena senão praticar a todo o momento o Primeiro Mandamento: “Amarás o Senhor teu Deus sobre todas as coisas”?

Nessa perspectiva, fácil é vermos no Decálogo um reflexo do Criador, compreendermos a beleza que existe nos seus preceitos e acatá-los com amor, de modo a criar em nossa alma a aspiração de cumpri-los com integridade, como meio de nos aproximarmos de Deus.

Decálogo e moral de situação

18 “Em verdade, Eu vos digo: antes que o céu e a terra deixem de existir, nem uma só letra ou vírgula serão tiradas da Lei, sem que tudo se cumpra”.

Os adeptos da chamada “moral de situação” defendem a mutabilidade dos princípios éticos em função do contexto no qual são eles aplicados. Assim, segundo essa filosofia, se os costumes evoluem ao longo dos tempos, o mesmo deve ocorrer com as normas morais. Ou então, mesmo admitindo serem elas universais e perenes, deve-se evitar sua aplicação de forma absoluta nas situações concretas, reduzindo seu valor ao de meras orientações a serem ponderadas em função das circunstâncias do momento.13

Ora, a Lei sintetizada nos preceitos do Decálogo é absoluta e permanente, conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica: “Visto que exprimem os deveres fundamentais do homem para com Deus e para com o próximo, os Dez Mandamentos revelam, em seu conteúdo primordial, obrigações graves. São essencialmente imutáveis, e sua obrigação vale sempre e em toda parte. Ninguém pode dispensar-se deles”.14

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A Lei sintetizada nos preceitos
do  Decálogoé absoluta e perm-
anente, conforme ensina o
Catecismo da Igreja Católica
“Moisés” – Vitral da Catedral de São
Benigno, Dijon (França)

Portanto, aquilo que era pecado quando Adão e Eva saíram do Paraíso, sê-lo-á também até o último dia, quando for morto o Anticristo e vier o fim do mundo.

O pecado de escândalo

19 “Portanto, quem desobedecer a um só destes mandamentos, por menor que seja, e ensinar os outros a fazerem o mesmo, será considerado o menor no Reino dos Céus. Porém, quem os praticar e ensinar, será considerado grande no Reino dos Céus”.

Ora, pior que desobedecer aos preceitos da Lei divina é criar ou propagar uma doutrina que convide a transgredi-los. Quem assim procede perde, sem dúvida, a graça de Deus e, caso não se emendar, “será considerado mínimo no momento do Juízo; ou seja, será reprovado, será o último. E o último cairá inexoravelmente no inferno”.15

A “justiça” dos fariseus

20 “Porque Eu vos digo: Se a vossa justiça não for maior que a justiça dos mestres da Lei e dos fariseus, vós não entrareis no Reino dos Céus”.

Os escribas e fariseus conheciam perfeitamente a Lei e sabiam pesar cada ato em função dela. Apresentavam-se como a “lei viva”, mas era justamente isto o que não se podia afirmar deles.

Como já foi dito acima, sua justiça fundava-se nas exterioridades. “Quanto ao repouso sabático, haviam eles multiplicado as interdições, entrando nos mais ínfimos detalhes. Sobre a questão das impurezas, deram livre curso à imaginação e acrescentaram à legislação mosaica as mais minuciosas prescrições”.16

Jesus nos adverte aqui ser indispensável, para entrar no Reino dos Céus, praticar uma virtude “maior” que a dos fariseus e mestres da Lei. Ou seja, não se prender às exterioridades, nem fazer enganosas racionalizações, mas cumprir de fato em sua integridade, amorosamente, os Dez Mandamentos.

III – Jesus condena a moral farisaica

Nos versículos seguintes, Nosso Senhor utiliza várias vezes as expressões “Vós ouvistes…” e “Eu vos digo…” para confrontar a moral de exterioridades, praticada pelos fariseus, com a verdadeira moral. Cristo, Ele mesmo, é a Palavra eterna, posta aqui em contraposição à palavra dos fariseus. A Lei antiga e imutável vai ser levada agora até as últimas consequências, denunciando as interpretações errôneas daqueles que se apresentavam diante do povo como “mestres” infalíveis.

Participação no pecado de homicídio

21 “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não matarás! Quem matar será condenado pelo tribunal’. 22 Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encoleriza com seu irmão será réu em juízo; quem disser ao seu irmão: ‘patife!’ será condenado pelo tribunal; quem chamar o irmão de ‘tolo’ será condenado ao fogo do inferno. 23 Portanto, quando tu estiveres levando a tua oferta para o altar, e aí te lembrares que teu irmão tem alguma coisa contra ti, 24 deixa a tua oferta aí diante do altar, e vai primeiro reconciliar- te com o teu irmão. Só então vai apresentar a tua oferta”.

Os fariseus consideravam o homicídio um pecado gravíssimo, mas não reputavam ser falta moral encolerizar-se com o irmão, ou dizer-lhe toda espécie de desaforos.

Nosso Senhor mostra-lhes que quem assim procede também será réu no dia do Juízo, pois, ao se deixar levar deste modo pelo ódio, ele já encetou as vias conducentes ao homicídio, participando em certa medida desse crime e merecendo por isso análogo castigo.

Mais ainda. Com sua palavra e exemplo, ensinou Jesus que na Nova Aliança o relacionamento entre os homens deve, pelo contrário, pautar-se pelo respeito, consideração e estima de forma a não dar ocasião a qualquer queixa recíproca.

Preparemo-nos para o dia do Juízo

25 “Procura reconciliar-te com teu adversário, enquanto caminha contigo para o tribunal. Senão o adversário te entregará ao juiz, o juiz te entregará ao oficial de justiça, e tu serás jogado na prisão. 26 Em verdade Eu te digo: dali não sairás, enquanto não pagares o último centavo”.

O “adversário” de que fala Nosso Senhor neste versículo simboliza, sob certo prisma, Ele mesmo: o Bem substancial do qual nos tornamos inimigos ao pecar.17 O mais necessário e urgente, portanto, é procurar primeiro nos reconciliar com Ele, reconhecendo as nossas faltas, pedindo perdão por elas e fazendo firme propósito de doravante não nos desviarmos das retas vias do Redentor. Pois, cedo ou tarde, terminará nossa peregrinação terrena e compareceremos diante do Supremo Juiz, que pronunciará uma sentença justíssima e inapelável. Se nesse dia nosso divino Adversário ainda tiver algo a declarar contra nós, a dívida será saldada, na melhor das hipóteses, no fogo do Purgatório, do qual não se sai sem pagar até o último centavo.

Trata-se, portanto, de agir com total integridade no caminho rumo ao derradeiro julgamento. De nada valerão racionalizações com as quais burlamos nossa consciência, porque jamais será possível ludibriar a Deus. Ele está dentro de nós e nós estamos dentro d’Ele. Tudo se faz em sua presença, e todos os nossos atos virão à tona no dia do Juízo Final para serem conhecidos pela humanidade e pelos anjos.

Vigilância e fuga das ocasiões

27 “Ouvistes o que foi dito: ‘Não cometerás adultério’. 28 Eu, porém, vos digo: Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração. 29 Se o teu olho direito é para ti ocasião de pecado, arranca-o e joga-o para longe de ti! De fato, é melhor perder um de teus membros, do que todo o teu corpo ser jogado no inferno. 30 Se a tua mão direita é para ti ocasião de pecado, corta- a e joga-a para longe de ti! De fato, é melhor perder um dos teus membros, do que todo o teu corpo ir para o inferno”.

A Lei de Moisés condenava o adultério e castigava-o com a morte (cf. Lv 20, 10). Mas a moral farisaica, fundada em ritos e exterioridades, em nada se importava com a lascívia dos olhares ou dos maus desejos.

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 A Lei de Moisés condenava o adultério, mas a moral farisaica em nada
se importava com a lascívia dos olhares e dos maus desejos
 Detalhe do quadro “Nosso Senhor com a mulher adúltera”
– Catedral de Ávila (Espanha)

“Todo aquele que olhar para uma mulher, com o desejo de possuí-la, já cometeu adultério com ela no seu coração”: refere-Se aqui Nosso Senhor ao nono Mandamento do Decálogo, o qual condena também o pecado interior: “Não cobiçaras a mulher do teu próximo” (Dt 5,21).

Logo a seguir, o Divino Mestre frisa a radicalidade com que devem ser praticados os Mandamentos, exortando-nos a levar até os últimos extremos o princípio da fuga das ocasiões de pecado. “Vigiai e orai para não cairdes em tentação” (Mt 26, 41), dirá Ele no Horto das Oliveiras. A oração é indispensável, mas não suficiente: é também necessário vigiar e afastar-se completamente daquilo que conduz ao pecado, sobretudo em matéria de castidade.

Uma concessão temporária em desacordo com a Lei Natural

31 “Foi dito também: ‘Quem se divorciar de sua mulher, dê-lhe uma certidão de divórcio’. 32 Eu, porém, vos digo: Todo aquele que se divorcia de sua mulher, a não ser por motivo de união irregular, faz com que ela se torne adúltera; e quem se casa com a mulher divorciada comete adultério”.

Moisés estabeleceu no Deuteronômio que “se um homem toma uma mulher e se casa com ela, e esta não lhe agrada, porque descobriu nela algo inconveniente, ele lhe escreverá um atestado de divórcio e assim despedirá a mulher” (Dt 24, 1). Ora, as interpretações laxistas dessa passagem bíblica deram margem a escandalosos abusos, a ponto de ser o divórcio, segundo o Cardeal Gomá, “um mal gravíssimo do povo judeu, no tempo de Jesus”.18

Com efeito, explica Fillion: “As palavras ‘algo inconveniente’, utilizadas pelo Deuteronômio, eram de si vagas. Mas tinham recebido de Hillel e dos de sua escola um interpretação escandalosa, que abria de par em par as portas para a paixão. Admitiam que a mulher, mesmo fidelíssima, podia ser despedida por qualquer motivo ou, digamos melhor, por qualquer frívolo pretexto: um prato mal preparado, a vista de uma mulher mais formosa – atreviam- -se a dizer os rabinos – eram razão para o divórcio”.19

Acrescia-se a isto o fato de o divórcio não ser conforme à Lei Natural.20 Como mais adiante afirmará o próprio Nosso Senhor, tratava-se de uma concessão temporária feita por Moisés devido à dureza de coração dos hebreus, “mas não foi assim desde o princípio” (Mt 19, 8).

Comenta a este propósito São Cromácio de Aquileia: “Com razão, nosso Senhor e Salvador, eliminada aquela permissão, restaura agora os preceitos de sua antiga constituição. Ordena, pois, conservar como lei indissolúvel a união do matrimônio casto, mostrando que a lei conjugal estava instituída originariamente por Ele”.21

A fé elimina o mau costume de jurar

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“Aprendei a chamar pecado ao pecado,
e a não lhe chamar libertação e progr-
esso, ainda que toda a moda e a
propaganda fossem contrárias”
(João Paulo II)

33 “Vós ouvistes o que foi dito aos antigos: ‘Não jurarás falso’, mas ‘cumprirás os teus juramentos feitos ao Senhor’. 34 Eu, porém, vos digo: Não jureis de modo algum: nem pelo céu, porque é o trono de Deus; 35 nem pela terra, porque é o suporte onde apoia os seus pés; nem por Jerusalém, porque é a cidade do Grande Rei. 36 Não jures tampouco pela tua cabeça, porque tu não podes tornar branco ou preto um só fio de cabelo”.

A Lei de Moisés, afirma o padre Tuya, “proibia expressamente o falso juramento, mas, ressalvado isso, a casuística rabínica fez um prodígio de subtilezas e distinções para justificar os juramentos”.22 No tempo de Jesus, o abuso de jurar a qualquer propósito alcançara um grau inacreditável, e isso O levou a condenar expressamente, neste Sermão da Montanha, todo tipo de juramento: “Não jureis de modo algum”. Os três versículos do sintético texto de São Mateus, acima transcritos, indicam bem a gravidade desse mal.

Ocorria que, levados pelo orgulho, julgaram os fariseus haver maior honra e mérito em “fazer todas as coisas por Deus, obrigando-se por juramento”; e do preceito “não tomarás o nome de Deus em vão” deduziram, por uma interpretação forçada: “logo, tomarás o nome de Deus sempre que seja como garantia de algo que não seja falso”.23

Entre os cristãos, pelo contrário, devem reinar a sinceridade e a confiança, fruto da retidão de almas habitualmente em estado de graça, conforme ensina Santo Hilário de Poitiers: “A fé elimina o costume de jurar. Fundamenta na verdade a atividade de nossa vida e, rechaçando a inclinação para mentir, prescreve a lealdade tanto no falar como no ouvir. […] Portanto, quem vive na simplicidade da fé não precisa recorrer a juramentos”.24

“Aprendei a chamar de pecado o pecado”

37 “Seja o vosso ‘sim’: ‘Sim’, e o vosso ‘não’: ‘Não’. Tudo o que for além disso vem do Maligno”.

Nossa vida deve ser um perpétuo “sim” a tudo quanto Cristo espera de nós, e um firme “não” às propostas e sugestões do demônio. A isso nos convida o Papa João Paulo II: “Aprendei a pensar, a falar e atuar segundo os princípios da simplicidade e da clareza evangélica: ‘Sim, sim; não, não’. Aprendei a chamar de branco ao branco, e preto ao preto – mal ao mal, e bem ao bem. Aprendei a chamar pecado ao pecado, e a não lhe chamar libertação e progresso, ainda que toda a moda e a propaganda fossem contrárias”.25

IV – Não devemos fazer concessões em matéria moral

A leitura do Evangelho deste domingo nos reporta a um dos problemas mais graves do mundo moderno: a terrível perda do senso moral que assola as almas de tantos dos nossos contemporâneos.

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“Vivemos num contexto cultural
marcado pela mentalidade hedonista
e relativista, que não ajuda a discernir
o bem do mal e a maturar um justo
sentido do pecado” (Bento XVI)

Com efeito, afirma o Papa Bento XVI, “vivemos num contexto cultural marcado pela mentalidade hedonista e relativista, que propende para eliminar Deus do horizonte da vida, não favorece a aquisição de um quadro claro de valores de referência e não ajuda a discernir o bem do mal e a maturar um justo sentido do pecado”.26

Companheiro inseparável da mentalidade descrita pelo Santo Padre é um falso e deletério conceito de liberdade, sintetizado por um dos mais famosos lemas de Maio de 68, É proibido proibir!, segundo o qual toda regra ou preceito devem ser banidos.

Hoje, portanto, mais do que nunca, é preciso lembrar que a Lei de Deus não é um castigo pelo pecado dos nossos primeiros pais, mas sim um precioso meio de nos tornar mais semelhantes a Ele. Pois, ao contrário do afirmado pelos revolucionários da Sorbonne, são as faltas praticadas pelo homem – e não os preceitos divinos – que tolhem sua liberdade: “O pecador se torna escravo do pecado” (Jo 8, 34).

No Céu, a Lei reluzirá gloriosa para aqueles que a praticaram nesta vida, os bem- -aventurados; enquanto se apresentará como eterna censura aos que se revoltaram contra ela e foram condenados ao fogo eterno. Dessa inexorável alternativa, ninguém escapa: quem não está na Lei da misericórdia divina, cai na Lei da justiça de Deus. Não há uma terceira opção.

Aproveitemos esta Liturgia do 6º Domingo do Tempo Comum para analisarmos nossa consciência à procura de alguma racionalização que nos esteja conduzindo a concessões morais, em nossa vida profissional ou particular. Que Maria Santíssima jamais permita nos desviarmos das abençoadas sendas da integridade de alma, ajudando-nos a nunca dar consentimento a nenhuma relativização da Lei de Deus.

1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. A Luz da Fé – Comentários ao Credo, Pai-nosso, Ave Maria e Mandamentos. Lisboa: Verbo, 2002, p.133. – No mesmo sentido, ensina o Catecismo da Igreja Católica que o homem tinha então o domínio de si mesmo e “estava intacto e ordenado em todo o seu ser” (n.377).
2 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.400.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., p.134.
4 CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n.16.
5 Ensina o Doutor Angélico: “Dado que, deste modo, a Lei Natural foi destruída pela lei da concupiscência, era necessário que o homem fosse reconduzido às obras da virtude e restabelecido na vida. Para isso era necessária a lei da Escritura” (SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., p.134).
6 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.2070.
7 SAN AGUSTÍN. Enarrationes in Ps. 57, 1. In: Obras de San Agustin. Madrid: BAC, 1965, v.XX, p.417.
8 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Madrid: Rialp, 2000, v.III, p.53. 9 GRANDMAISON, SJ, Léonce de. Jésus-Christ, sa personne, son message, ses preuves. 6.ed. Paris: Beauchesne, 1928, v.II, p.14.
10 Idem, ibidem.
11 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I-II, q.107, a.2, resp.
12 Cf. idem, ibidem.
13 Sobre este tema ver, por exemplo, PIO XII. Soyez les Bienvenues – Discurso sobre os erros da moral de situação, 18/4/1952.
14 Catecismo da Igreja Católica, n.2072.
15 SAN JUAN CRISÓSTOMO. Homilías sobre el Evangelio de Mateo, 16, 4, apud ODEN, Thomas C. e SIMONETTI, Manlio. La Biblia comentada por los Padres de la Iglesia. Madrid: Ciudad Nueva, 2004, p.153.
16 ROBERT, A. et TRICOT, A. Initiation Biblique. Tournai: Desclée & Cie., 1948, p.729.
17 Outros comentaristas, como Maldonado, consideram ser o adversário “aquele a quem ferimos, a quem chamamos raca ou néscio, que tem motivos para acusar-nos diante de Deus; o caminho é o tempo desta vida e o juiz é Cristo, o qual dirá: ‘O que fizestes a algum destes pequeninos, a Mim o fizestes'” (MALDONADO, SJ, Juan de. Comentarios a los cuatro Evangelios. Madrid: BAC, 1950, v.I, p.263).
18 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Barcelona: Casulleras, 1930, v.II, p.178.
19 FILLION, op. cit., v.II, p.104- 105.
20 Cf. Catecismo da Igreja Católica, n.2384.
21 CROMACIO DE AQUILEYA. Comentario al Evangelio de Mateo, 24, 1, 1-3, apud ODEN e SIMONETTI, op. cit., p.169.
22 TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.II, p.115.
23 Idem, ibidem.
24 SAN HILARIO DE POITIERS. Sobre el Evangelio de Mateo, 4, 23, apud ODEN e SIMONETTI, op. cit., p.172.
25 JOÃO PAULO II. Homilia na Santa Missa em preparação para a Páscoa dos universitários (26/03/1981).
26 BENTO XVI. Discurso aos participantes no curso anual sobre foro íntimo, promovido pela Penitenciaria Apostólica, 11/3/2010.

(Revista Arautos do Evangelho, Fev/2011, n. 110, p. 10 à 17)

 
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