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Comentários ao Evangelho


Bastará dizer “Senhor, Senhor!” para se salvar?
 
AUTOR: MONS. JOÃO SCOGNAMIGLIO CLÁ DIAS, EP
 
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Fazer a vontade do "Pai que está nos Céus" não consiste principalmente em realizar estupendas obras pronunciando o nome de Jesus só com os lábios, mas sim em ter o coração em amorosa conformidade com as leis do Senhor.

“Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos: 21 ‘Nem todo aquele que Me diz: ‘Senhor! Senhor!’, entrará no Reino dos Céus, mas o que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos Céus. 22 Naquele dia, muitos vão Me dizer: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos? Não foi em teu nome que expulsamos demônios? E não foi em teu nome que fizemos muitos milagres?’  23 Então Eu lhes direi publicamente: ‘Jamais vos conheci. Afastai-vos de Mim, vós que praticais o mal’. 24 Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as põe em prática, é como o homem prudente, que construiu sua casa sobre a rocha. 25 Caiu a chuva, vieram as enchentes, os ventos deram contra a casa, mas a casa não caiu porque estava construída sobre a rocha. 26 Por outro lado, quem ouve estas minhas palavras e não as põe em prática é como o homem sem juízo, que construiu sua casa sobre a areia. 27 Caiu a chuva, vieram as enchentes, os ventos sopraram e deram contra a casa, e a casa caiu, e sua ruína foi completa!'” (Mt 7, 21-27).

I – Pertencemos a Cristo por natureza e por conquista

Se alguém de nós obtivesse poder para tirar do nada um esquilo, consideraria, com toda justiça, esse ser vivo inteiramente seu, pois, se não fosse pela sua ação criadora, o animal jamais teria começado a existir. Julgar-se-ia, portanto, com toda liberdade para mandá-lo subir no seu ombro, levá-lo para brincar no jardim, ou até trancá-lo numa gaiola, caso quisesse fugir. E se, em lugar de possuir uma mera natureza irracional, o animalzinho tivesse a capacidade de pensar, deveria tributar uma gratidão sem limites a quem lhe deu a vida.

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“Sagrado Coração de Jesus” – Catedral
de Piacenza (Itália)

Algo semelhante acontece conosco, homens e mulheres. Tendo sido tirados do nada pelo Criador, Ele Se tornou credor de nosso reconhecimento como Senhor pleno e absoluto. “Se Deus é todo-poderoso ‘no Céu e na Terra’ (Sl 135, 6), é porque os fez. Por isso, nada lhe é impossível, e Ele dispõe à vontade de sua obra; Ele é o Senhor do universo”, ensina o Catecismo da Igreja Católica.1 E São Luís Maria Grignion de Montfort, o célebre santo da devoção mariana, afirma: “Por natureza, todas as criaturas são escravas de Deus”.2

Ora, não somos esquilos, nem plantas, nem minerais, mas criaturas racionais que, pelo pecado original, haviam perdido a possibilidade de herdar o Reino Celeste e de gozar eternamente do convívio com as Três Pessoas da Santíssima Trindade.

Para reparar tal perda, o Verbo Se fez carne, morreu crucificado e ressuscitou. Esse incomensurável ato de amor abriu-nos as portas do Céu e restabeleceu, através do Batismo e da graça, o gênero de relacionamento havido no Paraíso com o Criador. Em consequência, Cristo passou a ser Senhor do universo também por direito de conquista. “Pertencemos Àquele que nos redimiu, Àquele que por nós venceu o mundo, não com armas de guerra, mas com a irrisão da Cruz”,3 afirma Santo Agostinho. E São Luís Grignion acrescenta: “Não nos pertencemos, como diz o Apóstolo (I Cor 6, 19), e sim a Ele, inteiramente, como seus membros e seus escravos, comprados que fomos por um preço infinitamente caro, o preço de seu sangue. Antes do Batismo o demônio nos possuía como escravos, e o Batismo nos transformou em escravos de Jesus Cristo e só devemos viver, trabalhar e morrer para produzir frutos para o Homem-Deus (Rm 7, 4), glorificá-lo em nosso corpo e fazê-lo reinar em nossa alma, pois somos sua conquista, seu povo adquirido, sua herança”.4

Assim, por sua Morte e Ressurreição, tornou-Se o Verbo encarnado Senhor por excelência de todos os homens, tanto no tocante à sua natureza divina quanto à humana. Enquanto Deus, Cristo tem direito sobre todos os seres criados, não apenas por tê-los tirado do nada, mas também por sustentá-los na existência a cada instante, conforme canta o salmista: “Se apartares o teu rosto, turbar-se-ão; tirar-lhes-ás o espírito, e deixarão de ser, e voltarão ao seu pó de que saíram” (Sl 103, 29). Ao nos redimir, essa relação de servidão entre a criatura e o Criador estendeu-se também à sua humanidade divina, pois “a Ascensão de Cristo ao Céu significa sua participação, em sua humanidade, no poder e na autoridade do próprio Deus. Jesus Cristo é Senhor: possui todo poder nos Céus e na Terra”.5

II – Não basta dizer ou fazer

A passagem do Evangelho que a Igreja nos apresenta neste domingo corresponde ao trecho final do Sermão da Montanha, no qual o Divino Mestre, estando ainda no início da sua vida pública, compendiou as qualidades morais características daqueles que almejam alcançar a salvação.

Jesus acaba de alertar seus ouvintes para dois obstáculos à prática da virtude – a dificuldade de entrar pela “porta estreita” e a atuação dos falsos profetas – e na passagem considerada nesta liturgia, vai acrescentar mais um: a vã confiança daqueles que pensam ser suficiente dizer “Senhor, Senhor” para entrar no Reino dos Céus.

As palavras devem frutificar em boas obras

“Naquele tempo, disse Jesus a seus discípulos:
21 ‘Nem todo aquele que Me diz: ‘Senhor! Senhor!’, entrará no Reino dos Céus, mas o que põe em prática a vontade de meu Pai que está nos Céus'”.

Com o uso da expressão “Senhor, Senhor!”, chama Jesus a atenção dos seus discípulos para nossa contingência em relação ao Criador e a necessidade de começarmos por admiti-la, para podermos entrar no Reino dos Céus.

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Se alguém de nós obtivesse poder para
tirar do nada um esquilo, consideraria,
com toda justiça, esse ser vivo inteira-
mente seu, pois, se não fosse pela sua
ação criadora, o animal jamais
teria começado a existir

Esse reconhecimento, porém, não pode ficar numa mera declamação vazia, como ocorre quando a pessoa não vive em consonância com o que afirma. É preciso pôr em prática “a vontade de meu Pai que está nos Céus”. Inútil será, pois, no dia do Juízo, chamar Jesus de “Senhor” sem ter cumprido os seus Mandamentos, porque diante do Supremo Juiz de nada servem os artifícios da linguagem, nem a diplomacia ou a habilidade pessoal. “O caminho do Reino dos Céus é a obediência à vontade de Deus, e não a mera repetição de seu nome”,6 sentencia Santo Hilário.

Como sempre acontece no Evangelho, e especialmente neste Sermão da Montanha, Nosso Senhor fala aqui para os séculos futuros. Mas nem por isso deixa de fazer uma grave recriminação aos escribas e aos fariseus daquela época. Sendo mestres e conhecendo bem as Escrituras, ninguém melhor qualificado do que eles para avaliar a profundidade teológica das palavras “Senhor, Senhor!” e pronunciá-las com toda propriedade e reverência. Entretanto, esquecidos da necessidade de amar a Deus com todo o coração, toda a alma e todo o entendimento (cf. Mt 22, 37), reduziram a prática da Lei a um complicado ritual de exterioridades. Conheciam, mas não amavam; possuíam a ciência, mas não a faziam frutificar em boas obras. Faltava-lhes o principal: viver de acordo com os preceitos divinos que ensinavam.

Afirma sobre este versículo São Jerônimo: “Por certo não se confiará naqueles que, sendo embora apreciados pela integridade da fé, vivem torpemente e destroem com suas más obras a integridade da doutrina. Ambas as condições são, pois, necessárias aos servos de Deus: demonstrar a obra pela palavra, e a palavra pela obra”.7 Convém assinalar, por fim, com Fillion, o uso das palavras “de meu Pai”. Com elas “Jesus proclama- Se abertamente Filho de Deus e anuncia que veio a este mundo para ensinar aos homens a vontade de seu Pai”.8

Também as meras obras não bastam, se o coração não está em Deus

22 “Naquele dia, muitos vão Me dizer: ‘Senhor, Senhor, não foi em teu nome que profetizamos? Não foi em teu nome que expulsamos demônios? E não foi em teu nome que fizemos muitos milagres?’
23 Então Eu lhes direi publicamente: ‘Jamais vos conheci. Afastai-vos de Mim, vós que praticais o mal'”.

No dia do Juízo haverá “muitos” que, além de chamar hipocritamente a Deus de “Senhor, Senhor!”, alegarão ter feito durante a vida obras merecedoras do prêmio eterno: “Não foi em teu nome que profetizamos? Não foi em teu nome que expulsamos demônios? E não foi em teu nome que fizemos muitos milagres?”.

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Ao nos redimir, essa
relação de servidão
entre criatura e
Criador estendeu-se
tambémà human-
idade divina
“Nosso Senhor
Flagelado” – Palácio
Cardinalício do
Seminário dos
Arautos do Evangelho,
Caieiras

Aos que assim tentarem ludibriar o Supremo Juiz, Este lhes replicará: “Jamais vos conheci. Afastai-vos de Mim, vós que praticais o mal”. Porque eles realizaram boas obras, sem contudo fazer interiormente “a vontade do Pai que está nos Céus”. Seus corações estavam postos na procura das coisas materiais, no desejo da projeção social ou em qualquer outro objetivo afastado da salvação eterna. Em consequência, apresentar-se-ão diante do Senhor em estado de pecado.9

Já vimos, no versículo anterior, como as belas palavras, de si, são incapazes de conduzir ao Céu. Aqui Jesus vai mais longe, ao afirmar não ser suficiente a mera prática de obras boas para alcançar a salvação eterna. E para tornar seu ensinamento luminosamente claro aos ouvintes de todos os séculos, o Divino Mestre menciona as mais estupendas ações que o homem pode realizar nesta Terra – profecias, milagres e exorcismos – e acrescenta que foram feitas invocando o nome do Senhor. Como explicar serem elas destituídas de merecimentos?

A resposta, no-la dá São Jerônimo: “Profetizar, fazer obras admiráveis e expulsar demônios, mesmo quando seja pelo poder divino, não constitui mérito algum para quem realiza tais coisas. […] Saul, Balaão e Caifás vaticinaram; conforme lê-se nos Atos dos Apóstolos, os sete filhos de Cevas expulsavam, aparentemente, os demônios; e conta-se que Judas, com sua alma de traidor, operou muitos prodígios como os demais Apóstolos, quando tinha já concebido a ideia de trair”.10

São João Crisóstomo deixa claro que aqui se faz referência a verdadeiros milagres, e não a meros prodígios, ao observar que a resposta de Jesus, e já antes a pergunta feita, “provam que efetivamente eles haviam feito milagres”.

E ante a demonstração de assombro dos réus, vendo-se rejeitados pelo Divino Juiz, explica: “Se, eles se espantaram por se verem condenados depois de ter operado milagres, tu, porém, não tens motivo para ficares pasmo. Pois a graça pertence inteira a quem a dá, e eles não acrescentaram coisa alguma de sua parte. Com toda justiça são castigados, pois desconheceram e foram ingratos com quem de tal maneira os honrou, dando-lhes a graça de operar milagres, embora sendo indignos dela”.11

Não podemos esquecer, por fim, que nos versículos anteriores aos aqui comentados, Nosso Senhor alerta o povo contra os falsos profetas (cf. Mt 7, 15-20). Eles não faltarão até o fim dos tempos, mas, adverte-nos Maldonado, “embora façam verdadeiros milagres”, jamais devemos dar-lhes crédito, “pois não é só por seus milagres, mas pelos seus frutos, ou seja, pelos seus costumes, que saberemos se são verdadeiros ou falsos profetas”.12

Eis aqui, portanto, um critério seguro para conhecer quem faz “a vontade de meu Pai que está nos Céus”. Não são os que realizam estupendas obras pronunciando o nome de Jesus com os lábios, sem tê-Lo no coração, mas aqueles que praticam os Mandamentos do Decálogo e regem seu dia a dia pela doutrina moral contida no Sermão da Montanha. “Pois o que o Senhor nos quer fazer ver é que, sem a vida reta, de nada valem a fé nem os milagres”, conclui o Crisóstomo.13

Essa submissão interior à vontade do Pai, frutificada em santidade de vida, é a única forma cabal de reconhecermos nossa pertença a Jesus enquanto Criador e Redentor.

III – Construir a casa sobre a rocha

Feitas as advertências sobre os obstáculos que nos desviam do caminho do Céu, o Divino Mestre vai concluir o Sermão da Montanha com uma das mais belas parábolas: a da casa construída sobre a rocha.

Aplicação à nossa vida espiritual

24 “Portanto, quem ouve estas minhas palavras e as põe em prática, é como o homem prudente, que construiu sua casa sobre a rocha”.

Dentre as distintas perfeições de Deus refletidas pelas criaturas, cabe aos minerais simbolizar a perenidade do Criador, que não teve princípio nem terá fim. Passam os homens, passam as aves, passa a História, as rochas, porém, permanecem ao longo dos milênios…

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Aos que assim tentarem ludibriar
o Supremo Juiz, Este lhes replicará:
“Jamais vos conheci”
 “Cristo Rei” – Igreja de Santa Maria
dell’Ammiraglio, Palermo, Itália

Por isso têm sido elas frequentemente empregadas na Sagrada Escritura para simbolizar a eterna e inabalável fortaleza de Deus. “O Senhor é o rochedo perene”, afirma o profeta Isaías (Is 26, 4). E diz o Salmista: “O Senhor é o meu rochedo, minha força e meu libertador” (Sl 17, 3). O próprio Cristo vai aplicar a Si mesmo essa imagem com base em um versículo dos salmos: “A pedra rejeitada pelos arquitetos tornou-se a pedra angular” (Sl 117, 22 – cf. Mt 21, 42; Mc 12, 10; Lc 20, 17). No mesmo sentido, dirá o Apóstolo: “Essa rocha era o Cristo” (I Cor 10, 4).

Na passagem que hoje comentamos, Jesus retoma esse simbolismo e equipara a casa construída sobre rocha à integridade moral do homem prudente, ou seja, à obediência à Lei de Deus na sua plenitude, porque na expressão “estas minhas palavras” quis o Divino Mestre incluir, conforme ensina Santo Agostinho, “todos os preceitos nos quais se fundamenta a vida do cristão”.14

Esta esplêndida parábola tem, portanto, uma nítida aplicação para nossa vida espiritual. O que é “construir sobre a rocha”? É alicerçar todos os nossos atos numa piedade profunda e sincera, numa vida interior bem levada, numa confiança inabalável na ajuda da graça, e no amor ao próximo, de que é Ele o exemplo vivo. Construir sobre a rocha é basear o edifício de nossa vida espiritual em Deus, que é a Rocha eterna.

Quem põe isso em prática adquire o hábito da virtude a ponto de chegar a realizar as boas obras quase que por segunda natureza, conforme atesta a vida dos santos. Mas, para alcançar tal grau de perfeição, é preciso se esforçar por “fazer a vontade do Pai” todos os dias, a todo momento.

O hábito da virtude nos protege contra as tentações

25 “Caiu a chuva, vieram as enchentes, os ventos deram contra a casa, mas a casa não caiu porque estava construída sobre a rocha”.

“Essa chuva que se esforça por arrastar a casa é o demônio; as enchentes são todos os anticristos, que são sábios contra Cristo; os ventos são as maldades espirituais que se movem nos ares”15 – afirma São Jerônimo. Crisóstomo, por sua vez, comenta: “O Senhor chama aqui, figuradamente, de chuvas, enchentes e ventos as desgraças e calamidades humanas, tais como calúnias, insídias, tristezas, mortes, perdas de patrimônio, prejuízos de estranhos e, enfim, tudo quanto pode chamar-se males da vida presente”. 16

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 “Quando os homens confiam em suas próprias
forças, sucumbem; mas quando se prendem
à pedra firmíssima, não podem
ser arrastados”
 “Morro do Corcovado com o Cristo Redentor”,
Rio de Janeiro

Poderíamos acrescentar várias outras interpretações em sentido análogo, oriundas de renomados comentaristas. Mas basta-nos considerar serem aqui a chuva, as enchentes e os ventos, imagem dos dias de contrariedade pelos quais todos havemos de passar. Nesses momentos, será preciso lembrar, como nos adverte São Beda, que “quando os homens confiam em suas próprias forças, sucumbem; mas quando se prendem à pedra firmíssima, não podem ser arrastados”.17

Qual é essa “pedra firmíssima”? Já vimos ser ela Cristo. E o fruto obtido por quem constrói sobre essa rocha inabalável, ouvindo e pondo em prática suas palavras, é a vida virtuosa.

Vem agora muito a propósito lembrar o comentário do Crisóstomo, para quem a virtude traz como privilégio “o viver com segurança, o não ser presa fácil de nenhuma desgraça, o pairar acima de tudo quanto nos possa prejudicar”.18 Com efeito, só quem pratica habitualmente boas obras por amor a Deus “goza de calma em meio ao euripo e ao mar revolto das coisas humanas. Pois é isso justamente o maravilhoso: que havendo no mar, não bonança, mas violenta tempestade e grande agitação e tentações sem conta, nada pode turbar o homem virtuoso”.19

No mesmo sentido, acrescenta Santo Ambrósio: “O fundamento de todas as virtudes encontra- se na obediência à Lei divina, a qual faz com que a casa por nós edificada não se abale pela torrente das paixões, nem pelo transbordamento do erro espiritual, nem pela chuva mundana, nem pelas nebulosas disputas dos hereges”.20

A serenidade de espírito – poderosa proteção contra as más inclinações e as tentações do demônio – é o prêmio obtido, já nesta Terra, pelos que trilham as vias da perfeição e apóiam sua vida espiritual em sólidos princípios eternos.

As racionalizações constroem nossa vida espiritual sobre areia

26 “Por outro lado, quem ouve estas minhas palavras e não as põe em prática é como o homem sem juízo, que construiu sua casa sobre a areia.
27 Caiu a chuva, vieram as enchentes, os ventos sopraram e deram contra a casa, e a casa caiu, e sua ruína foi completa!”.

Assim como o edifício fundado na rocha simboliza o homem prudente que pratica boas obras, a casa edificada sobre areia representa a fragilidade daquele cujas ações são estéreis, por não estarem orientadas para a Eternidade.

Ora, há pessoas que constroem sua vida espiritual, não sobre a rocha, mas sobre outros materiais. São aquelas que fazem racionalizações para poderem pecar, isto é, recorrem a falsos argumentos com os quais revestem suas más ações de uma aparência de bem, porque é impossível à criatura humana praticar o mal pelo mal.21

Acabam elas por arquitetar doutrinas que abrem campo para a plena satisfação das suas más inclinações. Um exemplo infelizmente muito frequente: racionalizam de modo a concluir que seria uma contradição o Decálogo proibir ao homem dar livre curso aos instintos postos na natureza humana pelo próprio Deus; e com isso ocultam à própria consciência o desequilíbrio interior, consequência do pecado original. “Ignorar que o homem tem uma natureza lesada, inclinada ao mal, dá lugar a graves erros no campo da educação, da política, da ação social e dos costumes”, ensina o Catecismo.22

Aos que assim deturpam a verdadeira doutrina de Cristo, bem se poderiam aplicar as severas palavras dirigidas por Santo Irineu aos valentinianos: “Afastados da verdade, merecidamente chafurdam em todo erro e são lançados de um lado para o outro por ele, julgando de forma diferente os mesmos temas em ocasiões diversas, sem nunca chegar a estabelecer uma opinião estável, pois mais desejam ser sofistas de palavras que discípulos da verdade. Não estão eles fundados sobre uma rocha, mas sobre areia, que contém em si uma infinidade de pedras. Por isso imaginam muitos deuses, e sempre têm o pretexto de estarem em busca da verdade (porque são cegos), mas sem nunca conseguir achá-la”.23

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Peçamos a Maria Santíssima, perfeita “Serva do Senhor”, as graças
necessárias para vencer nossa tendência a um amor tíbio, que
nos faz não levar até as últimas consequências
a entrega a Cristo Jesus
“Anunciação”, por Fra Angélico – Museu do Prado

Ai daqueles que engendram racionalizações para praticar o mal! Sua casa, adverte Jesus, está construída sobre areia, e quando vierem as dificuldades e provações, a ruína será completa.

IV – Levar às últimas consequências nossa entrega a Cristo

No Evangelho deste domingo Jesus nos ensina que, uma vez conhecidos os princípios da Religião Católica, já não podemos fazer a nossa vontade nem seguir os nossos critérios pessoais, quando eles se afastam da Lei de Deus.

Pertencemos ao Criador, e viver nessa perspectiva ajudar-nos-á a construir o edifício da nossa santidade sobre os mais firmes alicerces. Pois, no dia do Juízo, de nada nos servirá conhecermos a fundo a doutrina da Igreja, ou até sermos muito versados na ciência teológica, se não vivermos aquilo que proclamamos, ou seja, se ficarmos nas meras palavras ou em atos vazios de significado sem que o nosso coração esteja em amorosa conformidade com as leis do Senhor.

Peçamos, pois, ao finalizar esta meditação, as graças necessárias para vencer nossa tendência a percorrer com um amor tíbio o caminho da perfeição, a não levar até as últimas consequências a entrega a Cristo Jesus; para, pelo contrário, imitar Maria Santíssima, modelo de caridade ardente, que em tudo Se comportou como perfeita “Serva do Senhor” (Lc 1, 38). (Revista Arautos do Evangelho, Março/2011, n. 111, p. 10 – 17)

 
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