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Loucura de amor a Deus
 
AUTOR: IRMÃ JULIANE VASCONCELOS ALMEIDA CAMPOS, EP
 
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O exemplo de São João de Deus continua mais vivo do que nunca nos nossos dias, pois no seu heroico testemunho "brilharam valores humanos e cristãos que, ainda hoje, se revestem de uma importância fundamental".

Em sua primeira carta aos Coríntios, o Apóstolo assinala ser a linguagem da Cruz de Cristo “loucura para os que se perdem” (I Cor 1, 18). Pois o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, sendo para ele desatinos (cf. I Cor 2, 14).

Ora, muitas vezes, em sua sabedoria divina, o Paráclito pede tomar atitudes apresentadas aos olhos humanos como desvarios, exigindo uma submissão a Deus sem reservas e um completo esquecimento de si mesmo. Bem exprime esta realidade a piedosa súplica feita, em uma conhecida Consagração ao Espírito Santo: “Que meu amor a Jesus seja perfeitíssimo, até chegar à completa alienação de mim mesmo, àquela celestial loucura que faz perder o senso humano de todas as coisas, para seguir as luzes da fé e os impulsos da graça”.1

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Ao retornar, encontrou o
menino resplandecente,
tendo na mão uma
romã, sobre a qual
reluzia uma cruz
“Vida de São João de Deus”
Hospital San Juan de Dios,
Granada (Espanha)

Foi justamente essa generosidade de alma, limítrofe ao desconcertante, pedida pela Providência a um jovem português chamado João Cidade. Após uma vida cheia de aventuras, sempre à busca de um ideal, encontrou Jesus nos mais necessitados e, com o coração apaixonado por Cristo, fez-se de “louco” pelos enfermos, pobres e desvalidos.

Fuga do lar paterno

De sua infância muito pouco se conhece. Nasceu no Alentejo, na vila de Montemor-o-Novo, em 8 de março de 1495, filho único de André Cidade e Teresa Duarte. Nesse lar modesto e profundamente piedoso, hauriu duas coisas que marcaram sua vida: uma profunda devoção à Mãe de Deus e a liberal hospitalidade concedida com frequência aos peregrinos.

Certo dia de 1503, o menino, com apenas oito anos de idade, fugiu do lar, deixando consternados os pais, que nunca mais tiveram notícias dele! Não há nos relatos de sua vida explicação para tão inusitada atitude. Sabe-se apenas haver sido ele caridosamente acolhido em Oropesa, Espanha, por Francisco Cid, mayoral – chefe dos pastores – do Conde de Oropesa, que o tratou como a um filho.

Na calma função de pastor, João atingiu a idade adulta. O efeito das longas jornadas passadas na contemplação das belezas naturais haveria de se refletir em sua fisionomia. Dois olhos escuros e penetrantes revelavam o profundo pensamento de uma alma manifestamente religiosa, acostumada a meditar nas maravilhas de Deus e deixar- se tomar por inteiro por elas. Dir-se-ia haver em seu espírito uma mistura de teólogo e místico: ao mesmo tempo raciocinava e “via”.

De pastor a soldado

De tal forma João Cidade era estimado na casa do mayoral, que este ofereceu-lhe a filha em casamento. João recusou a vantajosa proposta e alistou-se, em 1522, nas tropas espanholas enviadas para defender Fuenterrabia. Sentia em si o desejo de grandes horizontes, almejava heroicas aventuras com as quais satisfizesse o ardor do seu coração idealista.

De regresso, passou mais alguns anos em Oropesa. Mas já não era o pastor inexperiente de outrora: havia se deparado, nas estradas, com numerosos doentes, pobres e estropiados sucumbindo por falta de quem deles cuidasse. Condoído dessas desgraças, não conseguia continuar na monotonia da existência pastoril. Entretanto, não via ainda com clareza o rumo de sua vida, e acabou alistando- se, em 1526, para nova campanha militar, desta vez contra as forças otomanas que assediavam Viena.

Vencendo, a Europa ficou livre da ameaça turca e os voluntários foram licenciados. João Cidade resolveu, então, se dirigir a Portugal a fim de rever os pais, depois de mais de vinte anos de ausência. Porém, ao chegar em sua cidade natal, encontrou apenas um velho tio. A mãe falecera pouco depois de sua saída de casa, tomada de desgosto pelo desaparecimento do filho, e o pai ingressara num convento franciscano, onde também não tardou a extinguir- -se. Isso causou-lhe um enorme sentimento de culpa na alma.

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Dois olhos escuros e pene-
trantes revelavam o prof-
undo pensamento de uma
alma manifestamente
religiosa

Vendo rompidos os últimos elos com o passado, sua alma idealista e afoita levou-o a optar novamente pela vida castrense. Partiu para Gibraltar e de lá embarcou para Ceuta. Contudo, a estadia na África foi breve. As circunstâncias da região e do próprio exército tornavam extremamente penosa a perseverança na Fé. Aconselhado por um sacerdote franciscano, logo retornou a Espanha.

A vontade de Deus:”Granada será tua cruz!”

De novo em Gibraltar, João Cidade suplicava a Deus que desse um rumo à sua vida errante. “Senhor […], tenhais por bem ensinar-me o caminho por onde tenho de seguir, a fim de Vos servir e ser para sempre vosso escravo”2, rogava ajoelhado diante de Jesus Crucificado. Era o ano de 1535. João atingira 40 anos de idade, sem conhecer ainda a vontade divina a seu respeito.

Após fazer diversos trabalhos avulsos, tornara-se livreiro ambulante. Conta-se que, certo dia, ao cruzar uma região desabitada, viu um menino solitário, descalço, machucando seus pezinhos nas pedras do caminho. Quis oferecer-lhe os próprios sapatos, mas estes ficaram enormes… Carregou-o então às costas por um longo percurso e, ao chegar numa fonte, depôs o pequeno à sombra de uma árvore e foi buscar água. Ao retornar, o encontrou resplandecente, tendo na mão direita uma romã – granada, em espanhol – aberta, sobre a qual reluzia uma cruz.3 Estendendo- lhe a fruta, exclamou:

– João de Deus! Granada será tua Cruz!

Dizendo isso, o menino desapareceu… João Cidade viu nessas palavras a resposta às suas orações: a vontade de Deus conduziu-o a Granada.

Conversão radical

Alguns meses havia ele passado na tranquila atividade de livreiro, quando na festa de São Sebastião, em 20 de janeiro de 1537, foi assistir à Missa celebrada por São João de Ávila, o Apóstolo da Andaluzia. No sermão, o famoso pregador discorreu ardorosamente sobre a penitência, o heroísmo do martírio, a entrega total a Deus e a imolação do próprio corpo para proclamar a verdade de Cristo.

Essas santas palavras penetraram a fundo na alma de João Cidade. Compreendeu como tinham sido vazios de boas obras os seus quarenta anos de vida e, terminada a Eucaristia, pedia perdão por seus pecados em altos brados, golpeando-se e rasgando as próprias vestes, em sinal de arrependimento.

Alguém o conduziu ao santo pregador, com o qual se confessou, expondo- lhe a situação de sua alma. Discernindo no penitente os sinais de uma grande vocação, o padre Ávila o tomou por filho espiritual, dizendo-lhe: “Animai-vos muito em Nosso Senhor Jesus Cristo, e confiai na sua misericórdia, pois Ele levará a bom termo esta obra que começou. Sede fiel e constante naquilo que começastes”.

Saindo dali confortado, começou a penitenciar-se publicamente. Foram vários dias nos quais tomou atitudes tão estranhas para aquela gente de Granada, que o insultavam, agrediam e desprezavam como a um louco. Ele sentia nessas manifestações de repúdio muita consolação, lembrando os sofrimentos Jesus na Paixão. Desfez- se de todos os seus livros, móveis e até de seu vestuário, e ficava em praça pública gritando, macerando-se, osculando o chão cheio de lama e pedindo perdão por seus pecados, fazendo-se louco, pela loucura da Cruz.

Cenas idênticas repetiram-se nos dias seguintes. Para os habitantes de Granada, não havia dúvida: João Cidade perdera o juízo. “Como tinha tão grande habilidade em simular a loucura, quase todos o tiveram por louco”, sintetiza seu primeiro biógrafo. Foi, pois, internado no Hospital Real, onde viviam em lamentável promiscuidade enfermos mentais, mendigos e doentes desamparados.

Começa o exercício da vocação

O principal “remédio” aplicado aos loucos nessa época eram chicotadas e algemas… “para que, com a dor e o castigo, percam a fúria e voltem a si”. Assim se fez com São João de Deus: atado de mãos e pés, era impiedosamente açoitado.

O santo sofria tudo com resignação e mesmo com alegria, por amor a Cristo Flagelado. Quando, porém, presenciava idênticas brutalidades contra os outros doentes, protestava de modo veemente, invectivando os “enfermeiros” com indignação. Em represália, estes lhe redobravam os castigos.

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Depois de alguns dias, julgou chegada a hora de sair de tal situação e passou a dar mostras de estar tranquilo e senhor de si. “Pouco a pouco, todos começam a descobrir no penitente voluntário uma claridade interior que em nada se parece com a negra loucura que lhe atribuíam”.4 Libertaram-no, então, das algemas e o deixaram circular livremente pelo prédio, onde cuidava dos enfermos com carinho e bondade, e se incumbia das mais árduas tarefas.

Em seu coração havia nascido com força um anelo: “Jesus Cristo me conceda tempo e me dê a graça de ter um hospital, onde possa recolher os pobres desamparados e faltos de juízo, e servi-los como desejo”.

O primeiro hospital: 46 leitos de velhas esteiras

Refletindo sobre como fazia falta na Igreja uma Congregação dedicada especialmente ao cuidado dos enfermos, João Cidade decidiu tomar a iniciativa. Conseguiu facilmente autorização para sair do Hospital Real, onde não só já era considerado curado, mas visto com admiração. Em seguida, a conselho do padre Ávila, partiu em peregrinação ao Santuário mariano de Guadalupe, na Estremadura, desejoso de pedir a proteção de Maria Santíssima para sua grande missão.

Percorreu, a pé e descalço, os quatrocentos quilômetros de caminho. Ali chegou tão andrajoso que o sacristão, desconfiando tratar-se de um ladrão à espera de oportunidade para roubar alguma joia da imagem sagrada, decidiu expulsá-lo a pontapés do recinto. Ao dar, porém, o primeiro golpe, ficou com a perna paralisada e sem vida. Condoído de sua aflição, o santo rezou com ele a Nossa Senhora, alcançando-lhe no mesmo instante a cura.

Depois de passar algumas semanas em recolhimento, encetou a viagem de volta a Granada, aonde chegou a fins de 1539. À falta de melhor recurso, começou por juntar e vender feixes de lenha. Com o dinheiro assim obtido, oferecia alimento e agasalho aos necessitados que vagavam à noite pelas ruas da cidade.

Embora tudo fizesse para passar despercebido, atraiu a admiração de numerosas pessoas, as quais deram- lhe generosos donativos. Conseguiu assim alugar uma pequena casa na qual instalou seu primeiro hospital: 46 leitos de velhas esteiras, guarnecidos de surrados cobertores. Para lá levou os enfermos e desamparados que encontrou. Durante o dia cuidava deles e vendia feixes de lenha; à noite, percorria a cidade pedindo esmolas.

João Cidade torna-se João de Deus

O número de carentes, porém, aumentava em proporção maior que a dos recursos. Agravou-se a situação quando um incêndio destruiu o Hospital Real. Para compensar tal perda, os olhos se voltaram para São João de Deus. O Arcebispo de Granada abriu, com um vultoso donativo, uma subscrição, à qual aderiram outras numerosas personalidades, possibilitando-lhe comprar um antigo convento carmelita, onde instalou seu novo hospital, com 200 leitos e um grande albergue noturno.

Por essa ocasião, juntaram-se ao santo seus dois primeiros discípulos: António Martín e Pedro Velasco, antigos inimigos reconciliados e convertidos por ele. Sem dar-se conta, começara já a fundação de uma ordem religiosa…

Certo dia, foi visitar o presidente da Real Chancelaria de Granada, Dom Sebastião Ramírez de Fuenleal, Arcebispo de Tuy. Este perguntou- lhe como se chamava.

– João Cidade. Mas o nome que mereço é João Pecador. De fato, era assim como costumava designar-se.

Quis saber, então, o Arcebispo qual nome lhe dera aquele Menino resplendente de luz que o enviara a Granada.

– Chamou-me João de Deus.

– Pois seja este o teu nome – concluiu o Prelado, dando-lhe para usar um traje apropriado: um hábito composto de três peças – blusão, calça e capa -, em honra da Santíssima Trindade.

“Jesus, Jesus, nas tuas mãos me encomendo”

João de Deus recorria incessantemente aos ricos e aos fidalgos, e recebia avultadas somas, as quais, porém, eram insuficientes para as despesas já avolumadas. Sua caridade o levava a acumular dívidas. Como saldá- las? Aconselhado pelo Arcebispo de Granada, Dom Pedro Guerrero, dirigiu-se a Valladolid, onde se encontrava a Corte Real, para solicitar auxílio ao Soberano e aos grandes da nobreza.

Empreendeu a viagem de quase mil e quatrocentos quilômetros, ida e volta, uma vez mais a pé. Retornou meses depois, com os recursos imprescindíveis, mas depauperado e enfermo. Apesar de sua relutância em abandonar os pobres e enfermos, deixou o hospital nas mãos de António Martín, recomendou a seus filhos espirituais a prática da humildade e o amor aos pobres, e deixou-se trasladar para a mansão dos Pisa-Osório, em obediência à determinação do Arcebispo.

Ali assistiu à sua última Missa, celebrada pelo próprio Dom Pedro e recebeu os últimos Sacramentos. O Arcebispo prometeu-lhe também saldar as dívidas restantes e cuidar da continuidade de sua obra.

Ao anoitecer, depois de ouvir a leitura da Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, pediu para deixarem-no inteiramente só. Seus anfitriões respeitaram esse desejo, mantendo, porém, a porta semicerrada. Ouviram-no durante toda a noite sussurrar orações.

Nos primeiros albores de 8 de março de 1550 – quando completava 55 anos de idade -, levantou-se do leito, pôs-se de joelhos, abraçou um crucifixo e pronunciou com voz forte suas derradeiras palavras: “Jesus, Jesus, nas tuas mãos me encomendo”. E assim faleceu, permanecendo seu corpo inerte genuflexo, enquanto um suave perfume inundava a habitação.

Exemplo para nossos dias

A semente plantada por São João de Deus logo germinou e frutificou. Em 1586, São Pio V erigia a Ordem dos Irmãos Hospitaleiros de São João de Deus, cujos membros continuaram a maravilhosa obra de caridade cristã do fundador, nos quatro cantos do mundo. Hoje, muitos dos mais de duzentos hospitais da Ordem, que atendem centenas de milhares de enfermos, são considerados modelo no seu gênero, inclusive do ponto de vista médico.

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Hospital São João de Deus, em Granada e quarto onde o santo
morreu, na Mansão dos Pisa-Osório

O exemplo de “João Pecador” – proclamado por Leão XIII patrono dos enfermos e hospitais, juntamente com São Camilo de Lelis – continua mais vivo do que nunca em nossos dias, pois no seu heroico testemunho “brilharam valores humanos e cristãos que, ainda hoje, se revestem de uma importância fundamental” 5, como afirma o Arcebispo Emérito de Évora. Nesses valores, acrescenta ele, “está o caminho de superação de muitas crises atuais provocadas por egoísmos e concepções de vida fechadas nos estreitos e falsos limites de prazer material”.6

1 Consagração ao Divino Paráclito. In: ROYO MARÍN, OP, Antonio. El gran desconocido: el Espírito Santo y su dones. Madrid: BAC, 2004, p.230.
2 CASTRO, OH, Francisco de. História da vida e obras de São João de Deus. Braga-Montemor-o-Novo: Franciscana; Hospital Infantil de São João de Deus, 1999, p.51. Salvo indicação em nota, os trechos citados entre aspas neste artigo serão todos transcritos desta obra, omitindo-se a referência da página.
3 Este é o símbolo da Ordem dos Hospitaleiros de São João de Deus: uma romã aberta, encimada por uma cruz.
4 AMEAL, João. Vida de São João de Deus. Edição comemorativa do quinto centenário do nascimento de São João de Deus. Lisboa: Grifo, 1995, p.68.
5 GOUVEIA, Maurílio. Duas palavras de apresentação. Por S. Ex.a Rev.ma o Senhor Arcebispo de Évora. In: AMEAL, op. cit., folheto anexo.
6 Idem, ibidem.

(Revista Arautos do Evangelho, Março/2011, n. 111, p. 30 – 33)

 
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