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Comentários ao Evangelho


Basta evitar o mal para se alcançar o Céu?
 
AUTOR: MONSENHOR JOÃO CLÁ DIAS, EP
 
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Cada um de nós recebeu de Deus uma enorme quantidade de dons, tanto sobrenaturais quanto naturais, concedidos com vistas ao cumprimento da nossa vocação específica. Segundo o uso que deles fizermos, seremos servos bons e fiéis ou... servos maus e preguiçosos.

“Naquele tempo, Jesus contou esta parábola a seus discípulos: 14‘Um homem ia viajar para o estrangeiro. Chamou seus empregados e lhes entregou seus bens. 15A um deu cinco talentos, a outro deu dois e ao terceiro, um; a cada qual de acordo com a sua capacidade. Em seguida viajou. 16 O empregado que havia recebido cinco talentos saiu logo, trabalhou com eles, e lucrou outros cinco. 17 Do mesmo modo, o que havia recebido dois lucrou outros dois. 18 Mas aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco na terra, e escondeu o dinheiro do seu patrão. 19 Depois de muito tempo, o patrão voltou e foi acertar contas com os empregados. 20 O empregado que havia recebido cinco talentos entregou-lhe mais cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me entregaste cinco talentos. Aqui estão mais cinco que lucrei’. 21 O patrão lhe disse: ‘Muito bem servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!’. 22 Chegou também o que havia recebido dois talentos, e disse: ‘Senhor, tu me entregaste dois talentos. Aqui estão mais dois que lucrei’. 23 O patrão lhe disse: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!’. 24 Por fim, chegou aquele que havia recebido um talento, e disse: ‘Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. 25 Por isso fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence’. 26 O patrão lhe respondeu: ‘Servo mau e preguiçoso! Tu sabias que eu colho onde não plantei e que ceifo onde não semeei? 27 Então devias ter depositado meu dinheiro no banco, para que, ao voltar, eu recebesse com juros o que me pertence’. 28 Em seguida, o patrão ordenou: ‘Tirai dele o talento e dai-o àquele que tem dez! 29 Porque a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado. 30 Quanto a este servo inútil, jogai-o lá fora, na escuridão. Ali haverá choro e ranger de dentes!'” (Mt 25, 14-30).

Monsenhor Joao Cla Dias.jpgI – O pecado de omissão

Quando temos a infelicidade de violar a Lei de Deus por pensamento, palavra ou obra, costumamos ser em seguida interpelados pela nossa consciência. Tal como acontece com uma criança que se ruboriza ao ser-lhe mostrado o mal que fez, a sindérese aponta imediatamente à nossa razão o princípio moral transgredido, convidando-nos para o arrependimento.

Contudo, no pecado por omissão, esse processo interior não se desenvolve de forma tão nítida e eficiente. Por isso nos é menos difícil perceber a malícia de uma ação concreta do que a responsabilidade pelo descumprimento, por vezes grave e prolongado, de deveres inerentes a nosso estado, cargo, situação social ou função. Com efeito, quantas vezes, ao fazermos exame de consciência, consideramos apenas a necessidade de evitar o mal, e olvidamos o imperativo de obrar o bem?

Para nos alertar contra esse gênero de pecados – que, embora sejam de si menos graves que os de transgressão,1 constituem um ponto obscuro da nossa vida espiritual pela facilidade com que passam despercebidos – ser-nos-á de valiosa utilidade o Evangelho proposto pela Liturgia para o 33º Domingo do Tempo Comum. Contempla ele uma parábola conhecidíssima, porém muito rica de significados, como veremos a seguir.

II – Um homem distribui seus bens

“Naquele tempo, Jesus contou esta parábola a seus discípulos: 14a‘Um homem ia viajar para o estrangeiro'”.

Não havendo na época de Nosso Senhor os meios de transporte atuais, deslocar-se para outro país demandava muito tempo. Numa viagem “para o estrangeiro”, o percurso não era calculado em horas, como hoje, mas em meses, e, às vezes, até em anos. Portanto, deve ter sido bastante prolongada a ausência do homem da parábola. Quem era ele?

Os autores são unânimes em identificá-lo com o próprio Jesus, que parte da Terra para o Céu, onde vai tomar posse do seu Trono: “Esse homem, pai de família é sem dúvida Cristo”,2 afirma São Jerônimo. E São Gregório Magno pergunta: “Quem é esse homem que empreende uma viagem, senão nosso Redentor, o qual subiu ao Céu com a mesma carne que havia assumido?”.3

Deus nos dá bens de imenso valor

14b”Chamou seus empregados e lhes entregou seus bens”.

Com estas palavras, a parábola deixa muito claro pertencerem ao senhor os bens por ele distribuídos antes da viagem. Aqueles que os recebem, portanto, não podem usá-los de forma arbitrária, mas devem administrá-los em favor do proprietário.

Fillion frisa o fato de tratar-se não de empregados assalariados, mas de servos, os quais estavam “estritamente obrigados, a este título, a cuidar dos interesses de seu patrão”. 4 E para melhor fundamentar esse importante aspecto da parábola, o famoso exegeta lembra o forte sentido possessivo da expressão grega “?δ?ους δο?λους”, traduzida por São Jerônimo na Vulgata como “servos suos”.5

Representam eles cada um dos cristãos, evidenciando a nossa dependência em relação ao Criador. Somos servos de Deus, e até a mais alta das criaturas, Maria Santíssima, pôde com propriedade dizer: “Eis aqui a escrava do Senhor” (Lc 1, 38).

Comenta a este propósito Santo Afonso de Ligório: “De todos os bens que de Deus recebemos – tanto os de natureza quanto os de fortuna ou da graça – nenhum nos pertence a título de propriedade, de modo a podermos dispor deles a nosso gosto, pois somos apenas seus administradores. Temos, portanto, obrigação de empregá-los todos segundo a vontade de Deus, soberano Senhor de todas as coisas. Por isso também, no dia da morte, teremos de prestar estritas contas ao Juiz, Jesus Cristo”.6

15 “A um deu cinco talentos, a outro deu dois e ao terceiro, um; a cada qual de acordo com a sua capacidade. Em seguida viajou”.

O talento (τ?λαντον) era uma medida de peso em uso na Antiguidade. Originário da Babilônia e muito difundido no Oriente Próximo nos três séculos anteriores a Nosso Senhor, correspondia à quantidade de água necessária para encher uma ânfora. Porém, seu valor variou muito conforme o tempo e o lugar: dos quase sessenta quilogramas do talento pesado babilônico até os vinte e seis do talento ático.

Este último constituía também uma unidade monetária que equivalia a seis mil dracmas de prata. Portanto, embora a quantia entregue a cada servo não possa ser determinada com exatidão – nem seja isso relevante para efeitos do nosso comentário -, podemos estimar terem eles recebido respectivamente 130, 52 e 26 quilos de prata para administrar.

Trata-se de uma importância não pequena que visa representar o alto valor dos dons e qualidades concedidos a cada um de nós para serem adequadamente utilizados ao longo da vida.

Diferentes atitudes diante do valor recebido

16 “O empregado que havia recebido cinco talentos saiu logo, trabalhou com eles, e lucrou outros cinco”.

O primeiro servo, diz o texto evangélico, “saiu logo”. Sua atitude mostra-nos a necessidade de não perdermos tempo no cumprimento da missão a nós atribuída. As ações relativas à glória de Deus não admitem remansos, nem demoras: é preciso estar constantemente procurando obter rendimentos dos talentos recebidos.

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“Com apenas um talento, podes também ser
glorioso”, ensina São João Crisóstomo
“São João Crisóstomo”
Catedral de Cuenca (Equador)

Este servo “trabalhou com eles” e conseguiu para seu senhor cem por cento de lucro. Significa isso que, quando utilizamos os dons de Deus para sua maior glória e expansão do seu Reino, Ele os faz crescer. Pois os nossos predicados são passíveis de aumento, tanto em quantidade quanto em qualidade.

17 “Do mesmo modo, o que havia recebido dois lucrou outros dois”.

O mesmo aconteceu com o segundo servo: por ter atuado “do mesmo modo” que o primeiro, duplicou a quantidade recebida.

18 “Mas aquele que havia recebido um só, saiu, cavou um buraco na terra, e escondeu o dinheiro do seu patrão”.

O terceiro, pelo contrário, nem cogitou em usar para proveito do patrão o único talento recebido, mas tratou de devolver exatamente aquilo que recebera. Não quis ter o trabalho de fazer render bens que não lhe pertenciam, pois se interessava apenas pelo próprio benefício.

“A cada um de acordo com sua capacidade”

Antes de entrar na análise da segunda parte da parábola, recordemos que ninguém foi criado ao acaso. Muito pelo contrário, Deus, em sua infinita Sabedoria, tem um desígnio específico para cada um, de maneira que todo homem pode se considerar como filho único de Deus.

Ou seja, todo ser humano é irrepetível, o que torna exclusivo seu chamado e sua missão. Ao distribuir os seus dons, Deus dá mais a uns e a outros menos, “não por mera liberalidade ou por mesquinhez”, 7 mas conforme a capacidade de quem os recebe e em função da respectiva vocação.

Assim, cada um de nós tem, na sua medida, dons naturais e sobrenaturais a desenvolver. Deles deve se servir em benefício próprio e dos outros, mas sempre visando a maior glória do Criador e a salvação das almas.

“Façamos render para proveito de nosso próximo, dinheiro, fervor, capacidade de direção, enfim, tudo quanto temos. Porque talento aqui significa a faculdade específica de cada um, em matéria de governo, de riquezas, de doutrina ou qualquer outra coisa semelhante. Que ninguém, portanto, diga: ‘Tenho só um talento, nada posso fazer’. Não. Com apenas um talento, podes também ser glorioso” – ensina São João Crisóstomo.8

III – A hora da prestação de contas

19 “Depois de muito tempo, o patrão voltou e foi acertar contas com os empregados”.

O texto evangélico frisa que o patrão voltou “depois de muito tempo”, sublinhando assim o caráter escatológico da parábola. E a expressão “foi acertar contas” significa o Juízo particular e depois o Juízo final, durante os quais Nosso Senhor nos pedirá satisfação dos talentos e dons que Ele nos concedeu ao longo da nossa existência terrena.

“Vem participar da minha alegria”

20 “O empregado que havia recebido cinco talentos entregou-lhe mais cinco, dizendo: ‘Senhor, tu me entregaste cinco talentos. Aqui estão mais cinco que lucrei'”.

O primeiro dos servos a prestar contas ao patrão apresenta-lhe um rendimento máximo porque, como vimos, se esforçou diligentemente no intuito de aumentar o capital recebido, fazendo tudo quanto estava a seu alcance para isso. A resposta do patrão vai estar à altura de sua dedicação.

21 “O patrão lhe disse: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!'”.

Ele começa por chamá-lo de “servo”, lembrando que todos nós somos contingentes e estamos na absoluta dependência de Deus: “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Mas, logo a seguir, qualifica-o de “bom e fiel”, porque agiu sem egoísmo, procurando o maior lucro para o seu senhor.

Causa certa surpresa, entretanto, o fato de o patrão elogiá-lo por ter sido “fiel na administração de tão pouco”, quando lhe dera cinco talentos de prata, ou seja, uma verdadeira fortuna. Mas tudo se esclarece ao aplicarmos a parábola à vida sobrenatural: o que recebemos na Terra é insignificante comparado ao que teremos no Céu.

Na promessa “eu te confiarei muito mais”, se compreende a participação dos homens no governo do universo, desde o Céu. Afirma Santo Ambrósio: “Do mesmo modo como os anjos governam, assim governarão também os que mereçam a vida dos anjos”.9 E sobre o recurso a intermediários no agir divino, ensina São Tomás:

“A maior perfeição consiste em que algo seja bom em si mesmo e ao mesmo tempo causa de bondade para os outros. […] É assim que Deus governa as coisas, de modo a instituir algumas delas, causas de outras no governo”.10

Quanto à expressão “participar da minha alegria”, comenta São João de Ávila, a quem Sua Santidade Bento XVI deseja proclamar em breve Doutor da Igreja: “Que alegria é essa? A mesma de Deus. Diz Ele: ‘Alegra-te, servo de Deus, que foste fiel; entra no gozo de teu Senhor’, a gozar do que Ele goza, a viver do que Ele vive, a ser com Ele um espírito e a ser Deus por participação”.11

Participar na felicidade sem limites da Santíssima Trindade, vendo Deus face a face e amando-O como Ele Se ama, guardadas as devidas proporções, é o prêmio reservado àqueles que fizerem render os talentos recebidos.

22 “Chegou também o que havia recebido dois talentos, e disse: ‘Senhor, tu me entregaste dois talentos. Aqui estão mais dois que lucrei’. 23 O patrão lhe disse: ‘Muito bem, servo bom e fiel! Como foste fiel na administração de tão pouco, eu te confiarei muito mais. Vem participar da minha alegria!'”.

O mesmo ocorre com o servo que teve igual empenho em relação aos bens, entretanto menores, a ele entregues para administrar, porque Deus premia cada um segundo o uso que fez dos dons recebidos.

Terrível situação do servo infiel

24 “Por fim, chegou aquele que havia recebido um talento, e disse: ‘Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste. 25Por isso fiquei com medo e escondi o teu talento no chão. Aqui tens o que te pertence'”.

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“Quanto a este servo inútil, jogai-o lá fora, na escuridão. Ali haverá choro e ranger de dentes!”“O inferno” – Basílica Catedral de São Jorge,Ferrara (Itália)

Quanto ao terceiro servo, terrível é sua situação! Chegada a hora de prestar contas, percebe que se tinha deixado levar pelo egoísmo e pela falta de zelo. Em lugar de utilizar os dons para a glória de Deus e salvação das almas, pensou apenas em suas próprias conveniências.

Ora, quando Deus nos concede determinadas qualidades, quer que elas sejam usadas em benefício dos outros, conforme adverte São Pedro: “Como bons administradores da multiforme graça de Deus, cada um coloque à disposição dos outros os dons que recebeu” (I Pd 4, 10). Afinal, a Lei não se resume no amor a Deus e ao próximo como a si mesmo? Como o bem é eminentemente difusivo, o servo negligente deveria ter exclamado com São Paulo: “Ai de mim se eu não anunciar o Evangelho!” (I Cor 9, 16).

Sobre a necessidade de assim procedermos, explica um moralista contemporâneo: “O cristão deixa de ser fiel, não só na medida em que renega sua fé, mas também na medida em que não se esforça por fazê-la frutificar. […] É uma lei, não de ‘moral’, mas da vida. […] Toda fecundidade implica saída de si mesmo, saída que é risco e doação”.12

Em síntese, afirma Santo Agostinho: “Toda a culpa do servo reprovado reduz-se a isto: não quis dar. Guardou íntegro o valor recebido, mas o Senhor queria seus lucros. Deus é avaro no relativo à nossa salvação”.13

Medo e revolta ao ser descoberto

Diante do bom exemplo dos dois servos anteriormente chamados, aquele que recebeu um talento certamente se deu conta de seu mau procedimento. Poderia ter reconhecido sua culpa e pedido perdão, mas a parábola, como vimos, representa o momento do Juízo, quando não há mais tempo para fazer render os talentos recebidos. “Qualis vita, finis ita”: a pessoa será julgada pelo que fez e pelo que deixou de fazer.

Antes, quando deveria ter trabalhado em favor do seu senhor, o servo se iludiu, pensando que ele jamais retornaria; ou, então, julgou ser possível encontrar uma boa desculpa na hora de prestar-lhe contas; ou fez qualquer outra racionalização para justificar sua indolência. Agora ele está “com medo”, por ver a impossibilidade de ocultar sua negligência.

Ao invés de reconhecer que errou, revolta-se contra o patrão, acusando-o de injusto: “Senhor, sei que és um homem severo, pois colhes onde não plantaste e ceifas onde não semeaste”. É o que sempre acontece quando a pessoa, por culpa própria, não faz render os talentos a ela confiados: procura falsas razões para justificar o mal realizado. Porque o ser humano é um monólito de lógica.14

Em ocasiões como essa, afirma o moralista acima mencionado, inculpa-se a Providência pela “injustiça existente no mundo, imputa- -se ao Altíssimo a responsabilidade por esse mal quando, na realidade, é a ineficácia do homem que engendrou tanta miséria que se ergue insultante contra o plano de Deus”.15

Temerária insolência, porque Deus conhece perfeitamente o nosso interior. Diante d’Ele, inútil é qualquer racionalização. No Juízo, não haverá como ludibriá-Lo. A vida do pecador se apresentará sem justificativas, tal como tiver decorrido aos olhos d’Aquele por Quem ele deveria ter feito render os talentos recebidos. É o que mostram os versículos seguintes.

Interpelado por suas próprias palavras

26 “O patrão lhe respondeu: ‘Servo mau e preguiçoso! Tu sabias que eu colho onde não plantei e que ceifo onde não semeei? 27 Então devias ter depositado meu dinheiro no banco, para que, ao voltar, eu recebesse com juros o que me pertence'”.

A resposta do patrão é categórica! Além de repreender a preguiça do servo, faz voltar contra ele o pretexto sofístico apresentado.

Se, de fato, conhecia a presumida severidade do patrão, por que não agiu em consequência, tirando ao menos o lucro que os juros bancários lhe dariam? Quer dizer, se ao receber esses dons os tivesse posto à disposição de outros, ao menos teria obtido algum rendimento.

Comenta a esse propósito São Gregório Magno: “O servo é interpelado com suas próprias palavras, quando lhe diz o Senhor: ‘Colho onde não plantei e ceifo onde não semeei’. É como se lhe dissesse: ‘Se, na tua opinião, exijo aquilo que não dei, com muito maior razão exigirei de ti o que te entreguei para obter lucros'”.16

Novos benefícios para quem agiu bem

28 “Em seguida, o patrão ordenou: ‘Tirai dele o talento e dai-o àquele que tem dez! 29 Porque a todo aquele que tem será dado mais, e terá em abundância, mas daquele que não tem, até o que tem lhe será tirado'”.

Surpreendente é esta primeira parte do veredicto pronunciado pelo patrão: retirar do servo infiel o talento e dá-lo ao que já tinha dez.

Os dons que Deus nos outorga, mesmo os naturais, se não forem devidamente exercitados, tendem a definhar. Vemos acontecer algo semelhante no organismo humano: quando um membro fraturado é imobilizado, seus músculos se tornam flácidos no período de inação. Do mesmo modo, os predicados morais ou intelectuais não utilizados se debilitam e rumam para o desaparecimento.

Assim o afirma São Jerônimo: “Muitos, embora sendo sábios por natureza e dotados de agudeza de espírito, se foram negligentes e corromperam por indolência sua bondade natural […] perdem a bondade natural e veem passar a outros o prêmio que lhes havia sido prometido”.17

A negligência do “servo mau e preguiçoso” se transformará em novas vantagens para quem soube bem aplicar seus talentos. Os dons deixados de lado revertem para os mais generosos. É um belo aspecto desta parábola: o que é rejeitado ou mal usado, Deus recolhe e dá a outros, para o fazerem render.

Ora, se assim acontece com os bens materiais ou espirituais, mais válido ainda é esse princípio no campo das realidades sobrenaturais: diante do egoísmo, Deus retrai suas graças e a alma se torna estéril.

Nossa Senhora Auxiliadora.jpg
Na parábola falta a figura da Mãe do Senhor, a qual nos ajudará a fazer render os talentos recebidos“Maria Auxiliadora” – Basílica de Maria Auxiliadora,
Turim (Itália)

Condenação eterna do servo inútil

30 “Quanto a este servo inútil, jogai-o lá fora, na escuridão. Ali haverá choro e ranger de dentes!”.

Última e triste consequência do pecado: desprovido do seu talento, o “servo inútil” é condenado ao inferno, onde servirá não ao seu patrão, mas sim a Satanás.

Tamanho castigo apenas por ter deixado de usar os talentos recebidos?

Sim, porque “os pecados de omissão, que com frequência acompanham uma vida moralmente ‘honrada’, contrariam diretamente o plano bíblico a respeito do homem, uma vez que Deus lhe confiou a perfeição de sua obra: continuá-la e completá-la”.18

O objetivo da parábola é justamente mostrar de forma viva e atraente nossa obrigação de utilizar os dons que Deus nos concedeu para sua glória e para a salvação das almas, bem como o castigo destinado àqueles que assim não procederem.

Por isso, adverte São Gregório Magno: “Quem não tem caridade, perde todo o bem que possui, fica privado do talento que havia recebido e, segundo as palavras do próprio Deus, é lançado nas trevas exteriores”.19

IV – Progredir sempre!

Desse modo, a Liturgia deste domingo nos lembra uma verdade essencial: o progresso na vida espiritual não é uma opção, mas uma obrigação; temos de devolver a Deus muito mais do que Ele nos confiou para fazer render. Tanto mais que Ele nos assiste a cada passo com a sua graça, ajudando-nos a bem cumprir essa missão.

Nossa gratidão deve ser proporcional; portanto, precisa ser maior em relação aos dons sobrenaturais, pois o que recebemos de graças é incalculável! Uma única Comunhão, por exemplo, já seria suficiente para justificar a vida inteira de um homem. Ele poderia passá- -la toda preparando-se para, no fim, receber uma vez em seu coração Nosso Senhor sacramentado; e depois, na ação de graças, dizer- -Lhe: “‘Nunc dimittis servum tuum’ (Lc 2, 29). Deixai agora partir em paz vosso servo, porque acolhi o próprio Jesus Cristo em Corpo, Sangue, Alma e Divindade nas Espécies Eucarísticas. Porque a Luz que veio iluminar as nações penetrou na minha alma assumindo-a e santificando- a”. E, contudo, a Sagrada Eucaristia está aí, continuamente à nossa disposição, para nos cumular de favores espirituais extraordinários…

Todos nós temos capacidades e dons, e a consequente obrigação de desenvolvê-los em favor do próximo, de fazer apostolado com nossos semelhantes, de maneira a também eles poderem participar desses benefícios que recebemos gratuitamente de Deus. Caso contrário, tomaremos o triste caminho do terceiro servo.

Trata-se, pois, de sacrificarmos os nossos interesses pessoais e fazermos bem aos irmãos, nunca nos colocando no centro das atenções, as quais devem se voltar unicamente para Deus, a Quem tudo pertence.

Na realidade, o Senhor verdadeiro, que vai cobrar-nos no dia do Juízo, esse Senhor não viajou, mas está sempre entre nós, e nos acompanha a cada passo rumo à eternidade, ajudando- nos em todas as necessidades.

Entretanto, se de algo nossa consciência nos acusar ao meditarmos sobre esta passagem do Evangelho, lembremos que na parábola falta uma figura: a Mãe do Senhor. Ela sempre está ao nosso lado, acompanhando-nos e advogando por nossa causa diante de seu Divino Filho. Peçamos, pois, que essa afetuosa Mãe nos obtenha, em qualquer situação na qual nos encontremos, um irresistível influxo de graças, de maneira a fazermos render ao máximo os talentos recebidos.

Notas:

1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, II-II, q.79, a.4, Resp.
2 SÃO JERÔNIMO. Commentariorum in Evangelium Matthæi, l.4.
3 SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homiliarum in Evangelia. l.1, h.9, c.1.
4 FILLION, Louis-Claude. La Sainte Bible commentée. Paris: Letouzey et Ané, 1912, t.VII, p.164.
5 Cf. Idem, ibidem.
6 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. Obras Ascéticas. Madrid: BAC, 1956, v.II, p.642.
7 SÃO JERÔNIMO, op. Cit., ibidem.
8 SÃO JOÃO CRISÓSTOMO Homilia 73, c.2. In: Homilias sobre el Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1956, v.II, p.558-559.
9 SANTO AMBRÓSIO. Expositio Evangelii Secundum Lucam. l.VIII, c.96.
10 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I, q.103, a.6, Resp.
11 SÃO JOÃO DE ÁVILA. bras Completas. Madrid: BAC, 1953, v.II, p.289.
12 FERNÁNDEZ, Aurelio. Teologia Moral. Burgos: Aldecoa, 1992, v.I, p.249.
13 SANTO AGOSTINHO. Sermo 94.
14 “Todo pecado pressupõe um grande erro no entendimento, sem o qual seria psicologicamente impossível. […] É psicologicamente impossível para o homem que a vontade humana se lance à possessão de um objeto se este não é apresentado pelo entendimento como um bem” (ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología moral para seglares. 7.ed. Madrid: BAC, 1996, v.I, p.232).
15 FERNÁNDEZ, op. Cit., p.250.
16 SÃO GREGÓRIO MAGNO, op. cit., c.3.
17 SÃO JERÔNIMO, op. Cit., ibidem.
18 FERNÁNDEZ, op. cit., p.250.
19 SÃO GREGÓRIO MAGNO, op. cit., c.6.

(Revista Arautos do Evangelho, Nov/2011, n. 119, p. 12 à 19)

 

 
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