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São José de Anchieta: O “Canário de Coimbra”
 
AUTOR: DIÁC. THIAGO DE OLIVEIRA GERALDO, EP
 
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Na profícua vida do "Apóstolo do Brasil", há aspectos pouco conhecidos, como o fato de ser inspirado poeta e dramaturgo.

Canonizado em 3 de abril, São José de Anchieta reúne em sua personalidade inúmeras qualidades próprias à grande missão a que estava destinado. Aliou grandes virtudes a relevantes talentos naturais como mestre, gramático e artista. São José de Anchieta - Colégio São Luís_São Paulo.jpgEnsinou aos índios os ofícios de pedreiro, carpinteiro e ferreiro, além de ajudá-los como enfermeiro. Seu ardor apostólico lhe valeu o elogio de “zeloso salvador das almas”,1 feito pelo Beato Inácio de Azevedo, seu contemporâneo. No entanto, seu mais famoso título é o de “Apóstolo do Brasil”, dado pelo Administrador Apostólico Bartolomeu Simões Pereira, Prelado do Rio de Janeiro, em sua homilia durante as cerimônias fúnebres do Santo.

Um dos mais conhecidos milagres

Os relatos de sua vida são ricos em milagres, alguns dos quais bem conhecidos, como a ressurreição do índio Diogo. Este nativo morreu na vila de Santos, na casa do nobre Domingos Dias, e todos o tinham por católico. Algo surpreendente se passou no velório: o corpo do Diogo se moveu, causando grande espanto entre os presentes. Aproxima-se então Grácia Rodrigues, a senhora da casa e uma das testemunhas que prestaram juramento a respeito da veracidade do fato, e o índio lhe pede para chamar o padre Anchieta, a fim de ser batizado. Segundo ele, o Santo viera-lhe ao encontro, mandando que retornasse à vida.

Todos responderam ser impossível, pois o sacerdote se encontrava em São Vicente. Replicou Diogo dizendo estar o santo a apenas duas léguas de distância, perto de um riacho. Apesar de perplexos, alguns foram rapidamente ao local, encontrando Anchieta já a caminho. Quando chegou, o missionário ordenou ao índio que dissesse em público o motivo de sua ressurreição.

Então ele passou a narrar que os portugueses o haviam instruído na Fé cristã, sem contudo batizá-lo. Ele pensou não ser necessário o Batismo, sendo suficiente levar uma vida correta. Entre as abundantes lágrimas dos presentes, o Santo batiza-o e diz ter sido bem empregado todo o esforço de sua vida apenas para salvar esta alma.

Título singular recebido em Coimbra

Além de fatos extraordinários como esse, há aspectos menos conhecidos desta grande personalidade, como o de ser hábil poeta, cujas obras, feitas nas circunstâncias mais difíceis, manifestam o inegável talento dessa alma inocente. Qualidade essa favorecida pela formação recebida em sua juventude.

Nascido a 19 de março de 1534, em San Cristóbal de La Laguna, na ilha de Tenerife, uma das principais do famoso arquipélago das Canárias, José de Anchieta em sua primeira infância recebeu a formação dos padres dominicanos na cidade natal. Com 14 anos, embarcou para Portugal, ingressando no prestigioso e recém-formado Real Colégio das Artes, em Coimbra, orgulho do Rei Dom João III, que não poupou meios financeiros para dotá-lo dos melhores professores da Europa.

O jovem José aí se distinguiu por sua habilidade na língua latina e a facilidade em compor versos. Durante esses anos de estudos, Anchieta foi cognominado pelos amigos e professores de “Canário de Coimbra”, 2 em alusão ao melodioso canto desse pássaro e ao arquipélago de sua proveniência. Mal sabia ele o quanto esse dom lhe seria um útil instrumento de evangelização no longínquo Brasil…

Antes mesmo de se tornar religioso, José consagrou sua virgindade a Nossa Senhora na Catedral de Coimbra. Posteriormente, em 1551, entraria para a Companhia de Jesus, que havia recebido a aprovação pontifícia em 1540.

Devido a problemas de saúde e seu ardente desejo apostólico, os médicos consideravam o clima brasileiro propício à sua saúde. Assim, contando apenas 19 anos de idade, chegou ele ao Novo Continente, ao qual consagraria os 44 anos restantes de sua vida.

Todos corriam para a catequese

Ao se defrontar com a realidade do Brasil, Anchieta soube se fazer pequeno com os pequenos, para assim torná-los grandes na ordem espiritual. O Canário de Coimbra, que compunha poemas latinos em estilo clássico com toda facilidade, agora se empenha em aprender a língua nativa, o que consegue em poucos meses. Escreveria ele uma gramática tupi, facilitando o trabalho dos demais missionários.

Vista atual da Universidade de Coimbra_Portugal.jpg
Durante seu período de formação em Coimbra, o jovem José se distinguiu
pela sua facilidade em compor versos

Diversas vezes em suas cartas, o Santo se refere à candura dos índios e ao modo admirativo com que ouviam as pregações. Anchieta ganhara o coração deste povo com uma catequese simples e direta.

Empenhou-se ele em escrever versos, que logo se transformaram em cantos populares na boca dos índios, transmitindo a verdade da Fé de forma inocente. Mais bonitos ainda eram os versos declamados nas peças teatrais. Anchieta não só redigia os textos, mas montava o cenário e treinava os atores, sem negligenciar os mínimos detalhes, para que a população assistisse com agrado à catequese. Nas representações teatrais, todos acorriam à Igreja, deixando as aldeias vazias. Desta forma, o Santo fazia com que os espíritos daqueles novos católicos se elevassem contemplando as maravilhas da Fé.

Entre as mais famosas peças encontra-se a de São Lourenço, provavelmente apresentada em Niterói, a 10 de agosto de 1583, na qual figuram Anjos, demônios, imperadores romanos, São Lourenço, São Sebastião – padroeiro do Rio de Janeiro -, e personagens como o Temor de Deus e o Amor a Deus. Os assistentes ficavam na ponta dos pés de entusiasmo, tudo sendo interpretado pelos próprios nativos.

Podemos imaginar a reação do auditório ao ouvir as seguintes palavras pronunciadas em língua tupi pelo Anjo da Guarda, logo após aprisionar os demônios:

“Alegrai-vos, / filhos meus, por mim. / Aqui estou para vos proteger. / Vim do Céu / para junto de vós / a ajudar-vos sempre. / Iluminando esta aldeia / junto de vós estou. / Não me afastarei daqui. / De custodiar a aldeia / encarregou-me Nosso Senhor”.3

O enorme esforço para a realização de obras desse porte, com os parcos recursos disponíveis, era recompensado pelos frutos espirituais colhidos naquelas almas sedentas de Deus.

Versos que se tornavam o encanto dos índios

Os cânticos com rimas improvisadas eram muito do agrado dos indígenas. E ainda hoje, no imenso Brasil, em algumas regiões se observa a herança desse costume em canções populares.

Esta forma de cântico requer destreza de pensamento, a qual nunca faltou ao Canário de Coimbra. Acompanhando os gostos daquelas almas, Anchieta escrevia versos que se tornavam o encanto dos índios. Um bom exemplo desse tipo de literatura encontramos na poesia composta em honra de Santa Inês, em simples quadras rimadas, que mostram a candura de sua alma:

“Cordeirinha linda, / como folga o povo, / porque vossa vinda / lhe dá lume novo. / Cordeirinha santa, / de Iesu querida, / vossa santa vinda / o diabo espanta. / Por isso vos canta, / com prazer, o povo, / porque vossa vinda / lhe dá lume novo”.4

As encenações teatrais, os poemas, as cantigas, tudo tinha como objetivo a glória de Deus e o bem das almas. São José de Anchieta elevava os índios de sua vida banal para os grandiosos panoramas da fé. Em suas cartas, mais de uma vez declara que essas pobres almas muitas vezes se adiantavam na prática da Fé Católica aos seus colonizadores. Eram as graças dispensadas pela Divina Providência a esta nação nascida sob o signo da Cruz de Cristo estampada nas naus de Cabral.

Estacio de Sá em São Vicente, por Benedito Calixto - Palácio de São Joaquim, Rio de Janeiro.jpg

Eram justamente a vida ilibada do apóstolo e a sabedoria de suas
palavras que moviam os índios à conversão

Estácio de Sá em São Vicente, por Benedito Calixto (no centro, padre Nóbrega
abençoa São José de Anchieta) – Palácio de São
Joaquim, Rio de Janeiro

O eficaz apostolado realizado por Anchieta defluía de sua santidade. Eram justamente a vida ilibada do apóstolo e a sabedoria de suas palavras que moviam os índios à conversão, como atesta este bonito fato narrado por Pero Rodrigues, contemporâneo do Santo: “Ouvindo-o um dia pregar, uma mulher simples, com muita devoção, usou desta semelhança: ‘o Espírito Santo põe na boca do padre o que há de dizer, assim como a pomba na boca do filhote o que há de comer'”.5

Cativo na “cova dos leões”

Podemos pensar ter São José de Anchieta escrito seu mais belo poema em um momento de reflexão e de calma. Mas não foi assim.

Os calvinistas de origem francesa estabelecidos no Rio de Janeiro, em 1555, haviam feito acordo com os ferozes tamoios contra os portugueses estabelecidos ao sul. E para evitar ataques que poderiam causar pavorosos estragos tanto entre os portugueses como entre os índios católicos, procurou-se chegar a um armistício com os tamoios. A fim de garantir as negociações de paz, ofereceram-se como reféns o padre Manuel da Nóbrega acompanhado por José de Anchieta, que nessa época ainda não era sacerdote, mas já se tornara modelo de virtude que inspirava respeito e admiração até nos inimigos.

Para tal, a 7 de maio de 1563, desembarcam os dois religiosos em Iperoig, atual Ubatuba. Entre as ameaças que sofreram, conta-se uma ocorrida na véspera da Solenidade de Corpus Christi, no dia 9 de junho. Enquanto passeavam pela praia, o padre Nóbrega e Anchieta avistaram no horizonte uma pequena embarcação suspeita e correram para alertar o cacique Pindobuçu, que atuava como seu protetor, mas não o encontraram.

Quando os malfeitores, liderados pelo índio Paranapuçu, desembarcaram com intenção de matar os religiosos, se depararam com eles rezando de joelhos diante de uma imagem de Nossa Senhora e desistiram de seu intento. Paranapuçu confessaria mais tarde que seu coração se transformou ao ver os missionários e perdeu completamente a força diante deles.

Pouco depois, em 21 de junho, o padre Nóbrega teve que retornar a São Vicente, a fim de adiantar as negociações de paz e Anchieta permaneceu sozinho por mais três meses no cativeiro como um Daniel na cova dos leões, amansando-lhes os corações.

Puro de corpo e livre no espírito

Enganar-nos-emos se pensarmos que o cativeiro de São José de Anchieta e a perspectiva de uma morte violenta a qualquer momento fossem para ele causa de temor e angústia. Pelo contrário, ele estava sempre disposto a entregar de bom grado sua vida e regar as terras brasileiras com seu sangue se o sacrifício servisse para obter almas cristãs que servissem Nosso Senhor.

O próprio padre Nóbrega se lamenta por ter deixado Anchieta sozinho, sabendo que a qualquer desentendimento entre as partes do armistício seria o suficiente para que o Santo perdesse a vida. Numa das cartas que o padre Nóbrega dirigiu ao Santo, assim se expressou: “Irmão, se ainda estais vivo…”.6 E estava! Vivo para Deus, pois a cada dia vencia uma batalha mais terrível.

Anchieta havia consagrado sua pureza à Virgem Santíssima e queria preservá-la intacta a todo custo. Consideremos, entretanto, a situação em que ele se encontrava durante o cativeiro e as provocações a que se expunha a cada momento. Certa noite estava rezando diante de um crucifixo. Aproximou-se, então, uma índia com intenções bem definidas e encontrou Anchieta de joelhos, imóvel. Chamou-lhe pelo nome, mas ele não respondeu. Depois de muito insistir, ela diz: “Estás vivo, ou morto?”. E o santo respondeu com voz firme: “Estou morto…”. Estava, de fato, morto para o pecado e vivo para Deus. A resposta foi pronunciada com tanta seriedade que a índia fugiu, gritando pela aldeia: “O Deus deste abaré [padre em língua tupi] me persegue e me quer matar”.7

O mais belo dos poemas do Santo

Mas o fator decisivo para manter sua integridade encontra-se na devoção a Nossa Senhora. Foi justamente neste cativeiro, correndo riscos físicos e espirituais, que o Canário de Coimbra escreveu seu mais belo canto: o Poema à Virgem.

Sao_Jose de Anchieta escreve o poema a Nossa Senhora na praia de Iperoig, por Benedito Calixto - Museu Anchieta, São Paulo.jpg
Enquanto seu corpo era cativo dos
tamoios, sua alma voava livre na
contemplação da Rainha dos Céus

São José de Anchieta prometeu à Mãe de Deus compor um poema em sua honra, caso sua alma saísse incólume de todos os perigos morais. E enquanto seu corpo era cativo dos tamoios, sua alma voava livre na contemplação da Rainha dos Céus. Nas palavras do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, “ele soube encontrar acentos próprios, para louvar a mais elevada das criaturas, Aquela que, cantada pelos profetas já antes de seu nascimento, viu-se chamar Bem-Aventurada por todas as gerações que Lhe sucederam”.8

Sobre a areia úmida da praia, traçava cuidadosamente os versos de seu poema em língua latina. Contam os índios que, enquanto ele escrevia, uma graciosa ave lhe pousava nos ombros como a inspirar-lhe a composição. Teve de memorizar os quase 5.800 versos, compostos ao longo de quatro meses, pois ali não havia tinta nem papel. Somente depois de liberto, Anchieta conseguiu transcrevê-los.

O epílogo deste poema é belíssimo e mostra a alma já vitoriosa de Anchieta: “Eis os versos que outrora, ó Mãe Santíssima, / Te prometi em voto, / vendo-me cercado de feros inimigos, / pobre refém, tratava as suspiradas pazes, / tua graça me acolheu / em teu materno manto / e teu véu me velou intactos corpo e alma. / A inspiração do Céu, / eu muitas vezes desejei penar / e cruelmente expirar desejei em duros ferros. / Mas sofreram merecida repulsa meus desejos: / só a heróis / compete tanta glória”.9

A devoção de São José de Anchieta a Nossa Senhora, tão filialmente refletida naqueles versos escritos na praia, mais do que nas areias, ficou gravada no coração do Brasil e de filhos que se tornaram profundamente marianos. Sem dúvida, o mais belo canto do Canário de Coimbra foi ter ensinado a devoção a Maria Santíssima ao povo brasileiro. (Revista Arautos do Evangelho, Junho/2014, n. 150, p. 21 a 25)

 
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