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História da Igreja


A torrente do Cédron
 
AUTOR: IR. RODRIGO FUGIYAMA NUNES, EP
 
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Não foi por acaso que o Filho supremamente santo e inocente passou por aquele lugar. Ele era a vítima propiciatória oferecida ao Pai para remissão dos pecados dos homens.

Primeira cena. Alguns homens sentados em círculo. Nos rostos dos mais jovens vê-se a expressão do medo, e até de verdadeiro terror. Os mais idosos permanecem estáticos: seus corações foram endurecidos pela rotina. Os últimos raios de Sol se ocultam por trás do horizonte, abandonando às trevas o espetáculo que em breve se dará. Uma colossal imagem de bronze preside a sinistra assembleia: a de Moloc, deus terrível e sanguinário, em cuja boca aberta crepita um fogo devorador.

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Pilar de Absalão visto do Monte
das Oliveiras

As sombras oscilantes produzidas pelas chamas tornam o ambiente ainda mais tétrico. Entreveem-se os tambores, por enquanto mudos, que alguns trazem consigo. O silêncio só é interrompido pelo sibilar do vento nas árvores circunvizinhas, como se fosse o gemido da natureza em protesto pelo que vai acontecer.

Em certo momento, rufam os tambores e um cortejo desordenado avança em direção da horrenda imagem. Nele são conduzidas as vítimas do sacrifício: crianças recém-nascidas que, antes de sentirem as brisas do amor materno, conhecerão os ardores do fogo maldito que as vai devorar. Pior! Seus próprios pais são os algozes que as entregam àquele deus insaciável, cuja ira só se aplaca consumindo a carne de pobres inocentes.

Rumo ao ato de obediência supremo

Segunda cena. Doze homens se encontram reunidos numa sala de jantar, em Jerusalém. Eram treze, mas pouco antes um deles saíra para executar um encargo e ainda não voltara. Após cearem, começam a cantar um antigo hino hebraico do qual distinguimos estas palavras: “Louvai o Senhor porque Ele é bom; porque eterna é a sua misericórdia” (Sl 117, 1). E partem em direção a um horto próximo da cidade, no qual costumam rezar.

Antes de ultrapassar as muralhas, os Onze e o Varão que os guia descem por uma rua empedrada que data do tempo dos Macabeus e passam junto à piscina de Siloé. Para chegar ao seu destino, precisam atravessar um vale escuro e sombrio cortado pela torrente do Cédron.

Alguns minutos depois, a comitiva alcança seu destino: o Horto das Oliveiras. E o Varão majestoso que a preside Se distancia dos outros, para orar. Seus discípulos dormem, deixando-O só, enquanto Ele, num supremo ato de obediência dirá: “Pai faça-se a vossa vontade, e não a minha” (Lc 22, 42).

Terríficas lembranças do culto aos ídolos

O que há de comum entre essas duas cenas? Nada, dir-se-ia à primeira vista. São até perfeitamente antagônicas. Mas detenhamo-nos um instante num dos locais por onde o Filho de Deus passara: a torrente do Cédron.

Nos tempos bíblicos, era uma “torrente de inverno”, pois só fluía nessa estação do ano. A baixada por ela percorrida desde o Túmulos dos Juízes até o lado oriental de Jerusalém era sombria, profunda e rica em vegetação. Algo difícil de imaginar hoje em dia, pois a desaparição dos bosques circundantes e o acúmulo de escombros tornaram a região ressequida e menos escarpada.

Na etimologia hebraica, Cédron bem pode significar “águas escuras”, nome motivado pela cor característica daquela correnteza. Segundo um autor contemporâneo, essa coloração se devia ao fato de nela terem sido lançados os restos mortais das crianças sacrificadas a Moloch e as cinzas de todos os objetos utilizados no culto aos falsos deuses.1

Aqui começam a se unir as duas cenas. Quantos atos de cruel idolatria terão sido cometidos junto dessa torrente? Não sabemos. Talvez seja inadequado situar a primeira cena exatamente no lugar atravessado por Jesus e os Apóstolos. Mas sem dúvida ela se repetiu com frequência algumas centenas de metros mais ao sul, na planície onde confluem os vales da Geena e do Cédron.

Nessa pequena planície, considerada pelos israelitas como local de abominação, os habitantes de Jerusalém jogavam as imundícias da cidade. Ela estava marcada pelas “terríficas lembranças do culto aos ídolos e aos mortos”2 e fora registrada com sinal de ignomínia no Segundo Livro dos Reis: “Profanou também Tofet, no vale do filho de Enom, a fim de que ninguém fizesse passar pelo fogo seu filho ou sua filha em honra de Moloc” (II Re 23, 10).

Trilhando a via do Profeta Davi

Não foi por acaso que passou por aquele lugar o Filho supremamente santo e inocente, Vítima propiciatória oferecida ao Pai para remissão dos pecados dos homens. Tudo na vida da Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, até os mínimos detalhes, tem uma transcendência fora do comum. Como não ver nessa coincidência de lugares um forte simbolismo?

Junto ao local onde eram oferecidos os sacrifícios cruéis e pecaminosos, passava o Cordeiro Divino pouco antes de sua Paixão. Aquele que Se dispunha a realizar o Holocausto puro e sem mancha, que reconciliava de modo perfeito e definitivo os homens com Deus, cantava um hino dos seus antepassados, louvando a Bondade e a Misericórdia do Senhor.

Outro simbólico detalhe chama nossa atenção. Na parte inferior daquele vale, muito perto do ponto onde Nosso Senhor o atravessou, erguia-se o túmulo de Absalão. Davi, que chorara desconsoladamente ao receber a notícia de sua morte, mandou erigir ali uma coluna em honra do filho usurpador.

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Vista da parte sul do Vale do Cédron, onde se encontra com o Vale da Geena

Pois bem, quando o Rei Profeta teve de fugir de Jerusalém para escapar desse filho traidor, muito provavelmente passou por esse mesmo caminho.3 Assim, percorrendo a trilha de seu antepassado, dirigia-se o Cordeiro de Deus ao local onde renovaria ao Pai celeste o oferecimento de sua vida e derramaria as primeiras gotas de seu Preciosíssimo Sangue, pouco antes de receber o ósculo do discípulo infame. Aguardavam-No os inenarráveis sofrimentos da Paixão, passados os quais viria a glória inefável da Ressurreição. “Cristo tornou-Se obediente até a morte, e morte de cruz. Por isso Deus O exaltou soberanamente” (Fl 2, 8-9).

* * *

Não fosse pela falta de espaço, nossas considerações simbólicas poderiam ir um pouco além. O Vale da Torrente do Cédron, também chamado de Vale de Josafá, seria, segundo certos autores, o local onde Cristo reunirá os vivos e os mortos no fim dos tempos, para o Juízo Final. Este apaixonante tema, infelizmente, terá de ficar para outra ocasião… (Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2014, n. 152, pp. 24-25)

1 Cf. MIER, Francisco de. Sobre la Pasión de Cristo: síntesis teológica, exegética y pastoral. Madrid: BAC, 2005, p.5.
2 GARCÍA CORDERO, OP, Maximiliano. Biblia Comentada. Libros proféticos. Madrid: BAC, 1961, v.III, p.391.
3 Assim o afirma, por exemplo, o professor da Universidade de Salamanca, padre Manuel Tuya, em: TUYA, OP, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v.V, p.1.270

 
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