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Comentários ao Evangelho


A grave responsabilidade dos que cuidam da vinha do Senhor
 
AUTOR: MONS. JOÃO CLÁ DIAS, EP
 
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Do mesmo modo que outrora ao povo eleito, Deus nos trata como uma vinha escolhida para mais facilmente alcançarmos a bem-aventurança eterna. Que frutos daremos ao seu Dono?

“Naquele tempo, Jesus disse aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo: 33 Escutai esta outra parábola: Certo proprietário plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas, e construiu uma torre de guarda. Depois, arrendou-a a vinhateiros, e viajou para o estrangeiro. 34 Quando chegou o tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos vinhateiros para receber seus frutos. 35 Os vinhateiros, porém, agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram. 36 O proprietário mandou de novo outros empregados, em maior número do que os primeiros. Mas eles os trataram da mesma forma. 37 Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho, pensando: ‘Ao meu filho eles vão respeitar’. 38 Os vinhateiros, porém, ao verem o filho, disseram entre si: ‘Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua herança!’ 39 Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram. 40 Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros? 41 Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: ‘Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo’. 42 Então Jesus lhes disse: ‘Vós nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos? 43 Por isso, Eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos'” (Mt 21, 33-43).

Monsenhor Joao Cla Scognamiglio Cla Dias..jpgI – A vinha, símbolo de realidades sobrenaturais

Em nossos dias, por vivermos numa civilização excessivamente industrializada, nem todos estamos familiarizados com o processo da produção de vinho, e é possível que para muitos a figura da vinha não tenha maior significado. Hoje compramos esta bebida já engarrafada, talvez desconhecendo vários detalhes do longo processo iniciado com a uva. É uma tarefa que exige esforço, dedicação e conhecimento dos segredos do cultivo de cada tipo de vide, do melhor modo de cuidá-la e da época certa para a vindima, segundo a qualidade do vinho que se deseja obter. É preciso levar as uvas para um lagar, espremê-las – o método tradicional consiste em pisá-las -, deixar repousar o mosto até a fermentação e decantá-lo para então ser, eventualmente, depositado em barris, em certos casos durante anos, e, por fim, ser envasado. Trata-se de uma arte que só se adquire depois de longa experiência, acumulada no decorrer de gerações em que a tradição familiar vai aprimorando as técnicas: é o métier dos vinicultores. Assim, eles acabam criando enorme apreço por seus vinhedos.

Ora, Deus idealizou e criou a uva, impulsionando o homem ao seu cultivo, para que representasse a realidade – quão mais elevada! – de sua relação com o povo eleito, como veremos nas leituras do 27º Domingo do Tempo Comum.

Israel, vinha escolhida do Senhor

O cultivo da vide se havia estendido amplamente na Terra Prometida e em outras regiões do mundo antigo, desde épocas remotas. Ainda que o quintal da casa fosse muito pequeno, não faltava lugar para alguma videira; e mesmo que seus cachos produzissem uma só talha de vinho, isso bastava para fazer a alegria da família, sobretudo por ter sido preparado por seus próprios membros. Entretanto, para se ter uma vinha considerável era mister dispor de boa terra, vigiá-la e defendê-la contra ladrões e animais. Com este objetivo costumava-se nela edificar um posto de guarda, além de circundá-la com uma cerca – como ainda se faz em diversos lugares – construída com as pedras soltas retiradas do terreno, de forma a constituírem uma pequena muralha.

“A vinha do Senhor é a casa de Israel” (Is 5, 7a), diz o refrão do Salmo Responsorial, que continua com eloquência: “Arrancastes do Egito esta videira, expulsastes as nações para plantá- la; até o mar se estenderam seus sarmentos, até o rio os seus rebentos se espalharam” (Sl 79, 9.12). Foi o que de fato aconteceu, pois Ele tirou os israelitas da escravidão e expulsou os povos que habitavam Canaã para ali instalar a sua vinha, entregando-lhes aquela terra desde o Mar Mediterrâneo até seus longínquos confins. Israel, separado dentre todas as nações para ser o povo predileto, cumulado de privilégios e de dons, mais tarde seria chamado a converter os outros. Deus firmou com ele uma aliança e prometeu protegê-lo, se cumprisse a Lei, praticasse o culto e não se entregasse à idolatria. Enfim, como recorda a primeira leitura (Is 5, 1-7), extraída do Livro do Profeta Isaías, era uma vinha especialmente escolhida e cuidada pelo Senhor.

Por seus frutos ruins, Deus abandona a vinha

Todavia, pelos lábios do profeta Ele lamenta que a videira não tenha dado os frutos desejados: “esperava que ela produzisse uvas boas, mas produziu uvas selvagens” (Is 5, 2). Estas não servem para elaborar vinho, nem sequer como alimento, pois são agrazes. Quando consumidas deixam o céu da boca áspero, os dentes embotados e a língua com uma acidez e um ardor que fazem perder o paladar. Isaías compõe este poema em meio às festas do início do outono, período da colheita das uvas, na exata quadra histórica em que a Assíria ameaçava invadir Israel, que em pouco tempo seria deportado para outras regiões.1 É então que Deus cobra dos hebreus todos os benefícios de que foram objeto, dizendo: “O que poderia Eu ter feito a mais por minha vinha e não fiz? […] Pois bem, a vinha do Senhor dos exércitos é a casa de Israel, e o povo de Judá sua dileta plantação; eu esperava deles frutos de justiça – e eis injustiça; esperava obras de bondade – e eis iniquidade” (Is 5, 4.7).

Quando temos um ente querido sobre o qual deitamos rios de benevolência, embora o façamos com desinteresse, sem visar a reciprocidade, o instinto de sociabilidade pede de algum modo uma devolução. E, em consequência, nada há de mais duro que sermos retribuídos com o mal. É uma das provas mais terríveis e dolorosas que existem!

Profeta Isaias..jpg

Pelos lábios do profeta Isaías, Deus
lamenta que a videira não tenha
dado os frutos desejados

Profeta Isaías – Basílica de
São Marcos, Veneza

Deus amou seus eleitos de uma maneira extraordinária e queria ver florescer a santidade entre eles, porém só Lhe deram os amargos frutos do pecado. E assim como os grãos de sal se dissolvem à medida que são acrescentados a um recipiente com água, até um ponto exato de saturação em que se cristaliza no fundo, ou como um pai tem paciência com o filho desviado até que este ultrapasse os limites e provoque a sua cólera, também Deus decide, em certo momento, castigar o povo rebelde.

A essa punição alude o Salmo Responsorial: “Por que razão vós destruístes sua cerca, para que todos os passantes a vindimem, o javali da mata virgem a devaste, e os animais do descampado nela pastem?” (Sl 79, 13-14). Era o que acontecia aos hebreus ao longo dos séculos: quando a ingratidão atingia um auge, Deus deixava cair a cerca e os animais invadiam e arrasavam a vinha, ou seja, Israel era dominado pelos pagãos que o rodeavam, e desgraças sem conta lhe eram infligidas para que sentisse que com suas próprias forças não era nada, e só se desenvolvia graças a um dom divino. E conclui o salmista, pedindo auxílio: “Voltai-vos para nós, Deus do universo! Olhai dos altos céus e observai. Visitai a vossa vinha e protegei-a! Foi a vossa mão direita que a plantou; protegei-a, e ao rebento que firmastes! E nunca mais vos deixaremos, Senhor Deus! Dai-nos vida, e louvaremos vosso nome! Convertei-nos, ó Senhor Deus do universo, e sobre nós iluminai a vossa face! Se voltardes para nós, seremos salvos!” (Sl 79, 15-16.19-20).

Ambos os textos do Antigo Testamento são complemento ao Evangelho, o qual é muito mais profundo e rico em significado.

II – A vinha, seu Dono e os vinhateiros homicidas

A passagem apresentada neste 27º Domingo do Tempo Comum faz parte da pregação de Nosso Senhor nos últimos dias de sua vida mortal, na terça-feira da Semana Santa. Após a entrada triunfal em Jerusalém, no Domingo de Ramos, a luta contra aqueles que tramavam o deicídio tornou-se mais acirrada, a começar pela expulsão dos vendilhões do Templo, prosseguindo com uma série de enfrentamentos públicos, nos quais resplandeceu a divindade de Cristo. São Mateus se distingue dos demais evangelistas pela precisão com que registra toda a contenda, que terá seu auge no capítulo 23.

O Divino Mestre fala aos dirigentes de Israel

“Naquele tempo, Jesus disse aos sumos sacerdotes e aos anciãos do povo: 33a Escutai esta outra parábola: Certo proprietário plantou uma vinha, pôs uma cerca em volta, fez nela um lagar para esmagar as uvas, e construiu uma torre de guarda”.

Nesta parábola Jesus Se dirige às altas autoridades de Israel: os sumos sacerdotes e anciãos do povo, nata da sociedade daquele tempo e responsáveis por guiá-la. Todos eram homens letrados, profundos conhecedores da Escritura e, sem dúvida, ao iniciar o Mestre a narração, eles tinham presente a profecia e o Salmo que contemplamos hoje, e muitos outros textos sagrados, nos quais Israel é comparado a uma vinha (cf. Jr 2, 21; Ez 15, 1-6; 19, 10-14; Os 10, 1; Ct 2, 15; etc.).

Segundo a descrição de Nosso Senhor – harmônica com as referidas passagens do Antigo Testamento -, podemos imaginar o protagonista desta parábola como um varão de grande capacidade de trabalho e muitas posses, que despendeu cuidados extremos para cultivar sua vinha com a maior perfeição. Colocou-a “em fértil encosta” (Is 5, 1) iluminada pelo Sol, onde há arejamento e a água escorre, deixando a terra drenada, o que favorece a produção da uva. Isto significa que Deus deu ao povo eleito uma natureza privilegiada e condições propícias para receber o que há de mais valioso: a vida sobrenatural. Limpou convenientemente o terreno e cercou-o (cf. Is 5, 2a), ou seja, removeu da alma dos israelitas certas misérias que prejudicavam o desenvolvimento da graça e protegeu-os para impedir que outros lhes fizessem qualquer mal. Plantou ainda “videiras escolhidas” (Is 5, 2b), quis cumulá-los de dons extraordinários, tendo em vista que no seio desta nação estava sendo preparada a ascendência d’Aquele que seria o seu Filho Unigênito Encarnado e de sua Mãe, Maria Santíssima. Como diz São João Crisóstomo, “Ele nada omitiu no que dizia respeito à solicitude por eles”.2

Os arrendatários da vinha: novo e principal aspecto da parábola

33b “Depois, arrendou-a a vinhateiros, e viajou para o estrangeiro”.

Naquele tempo, na Palestina, não era raro o aluguel de terrenos de plantio. Os arrendatários dividiam o lucro com o dono, pagando o que lhe correspondia conforme o contrato. Não nos esqueçamos de que o esforço para preparar a vinha tinha sido do segundo, o qual havia comprado a terra e montado toda a infraestrutura necessária para dela se tirar proveito.

O presente versículo nos oferece a peculiaridade desta parábola, considerando os demais textos do Antigo Testamento que tratam da vinha, pois não se centra na relação desta com o proprietário, e sim entre ele e os agricultores contratados. A vinha é Israel, o dono é Deus. Ele encarrega alguns de cultivá-la, e parte para longe, “para deixar os vinhateiros trabalharem ao seu livre-arbítrio”.3 Eis a realidade pungente e clara: Deus não parece habitar junto aos seus escolhidos nem convive com eles de forma visível, mas põe à sua frente homens notáveis chamados a governá-los, autoridades religiosas incumbidas de guiá-los no caminho da salvação. E “assim como o colono, ainda quando cumpre o seu dever, não agradará ao seu amo se não lhe entregar as rendas da vinha, assim também o sacerdote não agrada tanto ao Senhor por sua santidade, como ensinando ao povo de Deus a prática da virtude”.4 Deste modo, pelo contexto da parábola, o Divino Mestre evidencia a classe à qual era destinada.

Parábola dos maus vinhateiros.jpg
Parábola dos maus vinhateiros (detalhe)
Biblioteca do Mosteiro de Yuso, San Millán de la Cogolla (Espanha)

Resumo da histórica infidelidade dos dirigentes do povo

34 “Quando chegou o tempo da colheita, o proprietário mandou seus empregados aos vinhateiros para receber seus frutos. 35 Os vinhateiros, porém, agarraram os empregados, espancaram a um, mataram a outro, e ao terceiro apedrejaram. 36 O proprietário mandou de novo outros empregados, em maior número do que os primeiros. Mas eles os trataram da mesma forma”.

Os empregados, mandados pelo senhor da vinha para receber os frutos, simbolizam os profetas enviados por Deus ao longo de toda a história de Israel para cobrar os lucros dos que deveriam reger a nação, de acordo com as determinações d’Ele. Não obstante, esses emissários foram perseguidos e mortos – como o próprio Jesus denunciou (cf. Mt 23, 30-31.37; Lc 11, 47- 51) -, porque sua pregação contrariava as más inclinações reinantes e, sobretudo, os interesses dos dirigentes da sociedade. Sua presença tornava-se um estorvo que era preciso eliminar. São Jerônimo resume esta reprovável atitude: “golpearam-nos como a Jeremias (Jr 37, 15), mataram-nos como a Isaías (Hb 11, 37), lapidaram-nos como a Nabot (I Rs 21, 15) e a Zacarias, a quem mataram entre o Templo e o altar (II Cr 24, 21)”.5 É a fúria do pecador contra aqueles que vêm lembrá-lo de que a propriedade do povo eleito pertence a Deus; fúria contra os que representam a Lei e o direito; fúria contra os que exigem o cumprimento da vontade do Senhor. “Por que esse terreno não é nosso?”, queixam-se. É, no fundo, uma inconformidade com a autoridade de Deus.

Jesus profetiza o deicídio

37 “Finalmente, o proprietário enviou-lhes o seu filho, pensando: ‘Ao meu filho eles vão respeitar’. 38 Os vinhateiros, porém, ao verem o filho, disseram entre si: ‘Este é o herdeiro. Vinde, vamos matá-lo e tomar posse da sua herança!’ 39 Então agarraram o filho, jogaram-no para fora da vinha e o mataram”.

Por fim, num extremo de amor, Deus não manda mais um profeta, mas seu Filho querido para convidar os israelitas a serem fiéis à Aliança. No entanto, eles O matam. A parábola neste trecho não poderia ser mais explícita: encontrando-Se próximo à Paixão, não por acaso quis o Divino Mestre deixar bem clara a verdade e fazer uma profecia sobre Si mesmo. Era a ocasião
de manifestar que o Senhor dera ao seu povo toda espécie de dons, regalias e proteção, e amparou-o de inúmeras formas. Porém, em determinado momento, vendo que não cuidava da vinha e se utilizava de todos os benefícios para o próprio interesse, e até contra Ele, confia ao seu Filho a missão de convertê-lo. Contudo, o delírio de tomar posse da herança do dono, a cobiça dos bens alheios, o desejo de apropriação e o ódio à superioridade levam os vinhateiros – os chefes da nação – a atentarem contra a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo.

40 “Pois bem, quando o dono da vinha voltar, o que fará com esses vinhateiros? 41 Os sumos sacerdotes e os anciãos do povo responderam: ‘Com certeza mandará matar de modo violento esses perversos e arrendará a vinha a outros vinhateiros, que lhe entregarão os frutos no tempo certo'”.

Os presentes, acostumados ao hábito oriental de considerar a interpretação das parábolas como sinal de inteligência e cultura, estavam preocupados em decifrar com acerto as palavras do Divino Mestre, que vislumbravam dizer-lhes respeito. Por isso, sem pensar muito, deram uma rápida solução. Não compreenderam que “o Senhor lhes pergunta não porque ignore o que vão responder, mas para que se condenem com sua própria resposta”.6 O veredicto dos sumos sacerdotes e dos anciãos do povo era na verdade uma acusação, como tornam patente as posteriores palavras de Nosso Senhor. Como comenta São João Crisóstomo, “eles pronunciaram uma sentença contra si mesmos […]. E, justamente, se [Jesus] lhes propôs uma parábola, foi porque queria que eles pronunciassem sua sentença. Foi o que aconteceu a Davi, quando ele próprio sentenciou na parábola do profeta Natã”.7

O Pai exaltará o Filho assassinado

42 “Então Jesus lhes disse: Vós nunca lestes nas Escrituras: A pedra que os construtores rejeitaram tornou-se a pedra angular; isto foi feito pelo Senhor e é maravilhoso aos nossos olhos? 43 Por isso, Eu vos digo: o Reino de Deus vos será tirado e será entregue a um povo que produzirá frutos”.

Na construção das casas do tempo havia pedras postas nos ângulos para fixar e manter as demais, conferindo firmeza ao edifício. Para este fim eram usadas as de maiores dimensões, pois tinham a função de sustentar a construção, e, por suas características peculiares, às vezes não eram adequadas nas anteriores etapas da obra. Isto ocorria, sobretudo, no caso das pedras que rematavam as cúpulas. Ao usar esta figura como símbolo de Si mesmo, o Redentor mostra que o Filho, a quem eles recusaram e haveriam de matar, Deus O põe no mais alto patamar. E, aplicando a parábola diretamente a seus interlocutores, os adverte de que, por não terem dado os frutos que deveriam, serão desprezados, postos de lado e privados de seus privilégios, que serão transferidos a outros povos.

Parábola dos maus vinhateiros (detalhe) - Codex Aureus de Echternach.jpg
Parábola dos maus vinhateiros (detalhe) – Codex Aureus de Echternach
Museu Nacional Germânico, Nuremberg (Alemanha)

A parábola é lindíssima e tão clara – ao contrário de outras, à primeira vista misteriosas para o público – que nem sequer os Apóstolos ou aqueles a quem era dirigida pediram a Jesus sua explicação. Tais destinatários, ademais, receavam que Ele manifestasse de maneira ainda mais categórica a grave acusação que sobre eles pesava.

Deus castiga os indivíduos e os povos

A conclusão de Jesus deixa patente como o Senhor não só castiga em plano individual aqueles que, dando-Lhe as costas, abraçam as vias da perdição, mas chamará a juízo também as nações. Assim sendo, a parábola contém uma lição para o nosso tempo, pois parece evidente que Ele pode punir a humanidade. Hoje comprovamos que o relativismo, o materialismo, o egoísmo, a falta de virtude e de amor a Deus tomaram conta do mundo, o qual está pervadido por um espírito oposto ao d’Ele e se tornou como a vinha escolhida que não deu as uvas desejadas. É possível que essa videira receba a recompensa descrita na primeira leitura e no Evangelho.

Por tal motivo convém escutar, na segunda leitura (Fl 4, 6-9), a exortação de São Paulo na Epístola aos Filipenses: “ocupai-vos com tudo o que é verdadeiro, respeitável, justo, puro, amável, honroso, tudo o que é virtude ou de qualquer modo mereça louvor” (4, 8). É a pureza de alma que falta a este mundo, onde se cometem pecados ovantes contra a castidade, são adotadas modas cada vez mais impudicas, presencia-se a dissolução familiar e o desaparecimento da virgindade. Tudo isso vai atraindo a indignação de Deus e, se não houver um surto de conversão que sustente o braço da cólera divina, ignoramos o que sobrevirá sobre nossa geração. Uma vez que Ele não tolera o pecado, quando intervirá? Não sabemos, mas devemos nos compenetrar pessoalmente da importância de praticar a virtude, seja em família ou na vida consagrada, com espírito de oração, fé e piedade, pedindo que o Senhor Se compadeça de nós e conceda graças especialíssimas para haver uma mudança no rumo dos acontecimentos. Só assim “a paz de Deus” (Fl 4, 7) estará conosco, e não a sua ira.

III – Nós também somos vinha do Senhor

Os comentários sobre este Evangelho ficariam incompletos se limitássemos a sua aplicação àqueles que planejaram a morte de Cristo, ou mesmo à humanidade em seu conjunto. Na parábola dos vinhateiros homicidas cumpre encontrarmos uma lição para cada um de nós, pois as palavras de Nosso Senhor ecoam para os homens de todas as épocas históricas. Com efeito, a vinha de que fala a Liturgia pode ser considerada a alma de todo católico, a quem Deus ama com predileção, a ponto de lhe dirigir a pergunta: “O que poderia Eu ter feito a mais por minha vinha e não fiz?”.

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Sagrado Coração de Jesus
Casa Monte Carmelo, Caieiras (SP)

Os dotes que recebemos, desde o ser, a inteligência, a vontade, a sensibilidade, a vocação específica, tudo nos é entregue pelo Senhor da vinha. Dentre estes favores, nenhum é digno de maior apreço que a vida divina, como ensina São Rábano Mauro: “Em sentido moral, a cada um se entrega sua vinha para que a cultive, ao ser-lhe administrado o Sacramento do Batismo, a fim de que trabalhe por meio dele. É-lhe enviado um servo, outro e um terceiro, quando a Lei, o Salmo e a profecia falam, e em virtude de cujos ensinamentos deve-se agir bem. Mas o enviado é morto e lançado fora, se despreza a sua pregação ou, o que é pior, se blasfema contra ele. Mata o herdeiro que traz em si todo aquele que ultraja o Filho de Deus e ofende o Espírito de sua graça. Uma vez perdido o mau cultivador, a vinha é entregue a outro, como acontece com o dom da graça, que o soberbo menospreza e o humilde recolhe”.8

Deus vela sempre por nós e, ao longo dos anos, nos trata com muito mais carinho, vigilância e amor do que qualquer vinhateiro no que se refere à sua plantação. Ele vai preparando as circunstâncias, atendendo, colocando anteparos para que os obstáculos não nos façam cair. Em troca, o que espera de nós? Que sejamos uma videira que dê o fruto excelente das obras de perfeição, do qual saia depois o bom vinho da santidade. Por isso virá cobrar os frutos. Cabe-nos trabalhar para produzi-los, conscientes de que tudo quanto possuímos tem sua origem n’Ele. Até mesmo a força para praticar a virtude nos é incutida por Deus, como um dom que nos permite adquirir méritos com vistas à nossa eterna salvação.

Um oportuno exame de consciência

Como cuido, então, desta vinha que sou eu? Zelo por ela com todo o esmero e restituo a Deus o que Lhe pertence? Estou constantemente com a atenção posta nas realidades sobrenaturais, com desejo de beneficiar o próximo, compenetrado de que fui chamado a dar glória a Deus e reparar o Sapiencial e Imaculado Coração de Maria dos inúmeros pecados que hoje se cometem? Estou atento à chegada dos empregados do Dono da vinha?

Uma palavra dita do púlpito, um conselho de alguém que busca a minha santificação, uma admoestação da consciência… Mais ainda, os rogos de Nossa Senhora e o amparo do meu Anjo da Guarda. O que eu faço a esses empregados? Apedrejo-os, bato neles e os mato, sufocando sua voz? Pois se não quero de modo algum entregar a Deus o que é d’Ele e uso de seus dons para o meu gozo pessoal ou, pior, para ofendê-Lo, estou, no fundo, batendo, apedrejando, matando os empregados, e até o Filho do Divino Dono. É indispensável precaver-me, porque o Reino dos Céus que recebi no dia de meu Batismo poderá ser-me retirado e dado a outros. Quanta matéria para um exame de consciência! Como me encontro agora? Diante destas palavras, qual é a minha reação? Estou me esquivando, desvio a atenção ou coloco-me diante da obrigação de prestar contas pela vinha que sou eu?

Se a consciência me acusar, devo lembrar-me do ensinamento de São Paulo, na segunda leitura: “Não vos inquieteis com coisa alguma, mas apresentai as vossas necessidades a Deus, em orações e súplicas, acompanhadas de ação de graças. E a paz de Deus, que ultrapassa todo o entendimento, guardará os vossos corações e pensamento em Cristo Jesus” (Fl 4, 6-7). Graças à maternal intercessão de Maria Santíssima tudo tem solução, desde que eu reconheça que procedi mal e preciso mudar de vida. Peçamos a Nossa Senhora, então, misericórdia e forças para nos emendarmos e aderirmos com entusiasmo à vontade do Dono da vinha. (Revista Arautos do Evangelho, Outubro/2014, n. 154, p. 8 a 15)

 
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