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Espiritualidade


Cortesia: a musicalidade do convívio humano
 
AUTOR: FELIPE RODRIGUES DE SOUZA
 
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O homem de hoje sofre de uma verdadeira sede de novidades. Não há um lugar onde ele entre, um restaurante, um consultório médico, uma padaria, enfim, em que não esteja ligada uma televisão ou um rádio, noticiando o último acontecimento. Misérias, calamidades e tristezas na maior parte das vezes...

Perseguido e atraído assim pela avalanche de novidades oferecidas pela mídia, o homem moderno se relaciona cada vez menos com seus semelhantes, e está mais ao par do que acontece do outro lado do mundo do que com aqueles que lhe são mais próximos.

Essa overdose de imagens e informações destruiu quase por completo o relacionamento humano, ou, ao menos, transformou-o numa troca de relações frias e maquinais onde a consideração e a estima não conseguem vencer o interesse pessoal, o egoísmo. Paulatinamente a globalização foi isolando as pessoas…

Criou-se um estilo de vida no qual os homens, cada vez mais, vivem em multidões, em grandes cidades, e quase não se conhecem. Aí, nestes imensos aglomerados, levam uma vida tão absorvida pelo trabalho, que não têm tempo sequer de conversarem. E isso intensifica-se a cada dia.

Esse processo trouxe como consequência o desaparecimento daquilo que poderíamos chamar “personalidade” – a qual se desenvolve no convívio – e transformou a sociedade numa “massa”. A sociedade assim constituída, não toma em consideração as características de cada indivíduo, mas quer igualar a todos. E procura fazer com que todos tenham, tanto quanto possível, os mesmos gostos, os mesmos hábitos, os mesmos modos de ser e pensar, quase diríamos, as mesmas “caras”. Já não há mais modelos nem líderes, bons nem maus, mas uma igualdade amorfa, quase irracional…

Há pouco utilizamos a palavra personalidade. O que entendemos por personalidade?

Cada homem recebe de Deus determinadas características para espelhá-Lo de forma inédita e irrepetível. Há, portanto, em cada homem “uma tendência a contemplar, compreender e refletir de preferência certa perfeição divina.” Uma como que luz primordial, que “é a virtude dominante que uma alma é chamada a refletir, imprimindo nas demais [virtudes] sua tonalidade particular.”[1]

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Stella difert stella. (1Cor 15,41) Cada estrela é diferente da outra, diz o Apóstolo. Com maior razão os homens o são. Até mesmo entre os santos isso se dá, e com mais intensidade. Diferenças de personalidades, de talentos, de gostos, enfim, quantos aspectos poderiam ser analisados. Que dizer da diferença que há entre um São Tomás de Aquino, luminar da inteligência humana, e um São João Maria Vianney, que mal conseguiu concluir os estudos para ser ordenado sacerdote, mas que discernia os espíritos e “lia” os pensamentos? Ou então uma Santa Catarina de Sena, agraciada com tantas aparições e fenômenos místicos, e uma Santa Teresinha do Menino Jesus, encerrada no silêncio de um claustro e padecendo de uma tuberculose que provocou sua morte prematura? Para não ir mais longe, quanta diferença no colégio apostólico…

Deus quer que desenvolvamos nossa personalidade. E se correspondermos à graça, ela tomará um realce extraordinário. E a justaposição destas personalidades forma a imensa “coleção” de Deus. Mas, para que esta coleção atinja o píncaro de seu brilho e colorido, é necessário que cada “peça” leve sua personalidade à plenitude. Isso é o contrário da “massificação”.

Porém, como unir com harmonia tantas diferenças? O único meio de tornar possível a coexistência das mais variadas formas de pensar, dos modos de ser mais antagônicos, das reações mais diversas e inusitadas, é através da caridade cristã. Sem uma grande disposição de sacrifício, de aceitar muitas vezes a vontade de outro, de suportar as contrariedades inevitáveis da vida em sociedade, torna-se impossível o relacionamento humano.

Esta forma de caridade aplicada ao convívio pode ser chamada de cortesia. O que é a cortesia? “É o laço cheio de respeito, de distinção e afeto capaz de transpor esse abismo que há de pessoa a pessoa, e colocá-las numa relação harmônica como as notas de uma música. A cortesia é a musicalidade do convívio humano.”[2]

Esse estado de espírito é tão incomum em nossos dias que temos dificuldade em compreendê-lo. Não há nele nenhuma utilidade prática, nenhum lucro, e, sobretudo, nem sempre é agradável ser cortês… Como, então, explicá-lo? Ele só é possível pela prevalência do espírito sobre a matéria, das qualidades do sobrenaturais em detrimento às naturais.

Mas, há possibilidade de existir essa ordem de coisas que norteie assim uma sociedade? Embora todas as aparências que nos circundam manifestem o contrário, esta ordem de coisas não apenas é possível, como já existiu: o Ancien Regime é um exemplo. Nesta época, sobretudo na França, “entre os elementos que constituíam a douceur de vivre [doçura de viver], ocupava lugar de destaque aquele modo distinto de proceder ou de falar, conhecido pela expressão politesse [polidez]. Esta qualidade do francês de então se encontrava difundida por todas as classes sociais, e se baseava numa espécie de necessidade inata de devotamento, abnegação e dom de si mesmo.”[3]

Isso nem sempre é fácil. A constante atitude de dignidade, o modo de falar trabalhado que requer uma atenção contínua na linguagem, as fórmulas de cortesia e todos os outros numerosos requisitos exigidos nesta forma de relacionamento, denotam a vitória da graça sobre o pecado, da virtude sobre a espontaneidade.

Conta-se que Santa Teresa de Ávila escreveu em certa ocasião, quando precisou passar alguns dias na casa da duquesa de Lacerda, na Espanha, que preferia o Carmelo, pois a vida era mais fácil e cômoda que a vida na corte…

Nessa época, a cortesia era o predicado por excelência da nobreza. “No gentil homem do século XVIII a expressão da fisionomia, o porte, o gesto, o traje exprimem a ideia de que a existência de elites sociais não só é justa, mas desejável, e que a superioridade de cultura, de maneiras e de gostos de seus membros deve naturalmente manifestar-se com um máximo de precisão, realce e requinte.”[4]

Tudo isso beneficiava o nobre, porque o tornava mais elevado, alteava-lhe o espírito. Mas beneficiava a sociedade inteira, porque todos começavam a imitar os gestos da corte.

Um coruscante relato do grande escritor francês, Lenotre, o atesta: “os cocheiros demonstram previdência, bom humor, honestidade, educação e probidade. Nunca exteriorizam a menor queixa, a mais leve discussão. (…) Ainda estou à procura de um caso de grosseria; nunca vi uma briga, até mesmo nos lugares onde, a multidão sendo compacta, não se podia dar dez passos sem esbarrar em alguém. Quem por descuido for esbarrado, apressar-se-á em pedir desculpas, ao mesmo tempo em que o outro lhe pedirá perdão. Os dois se cumprimentam, e o caso está encerrado”[5]

“O afã de ser amável e atencioso comportava a ideia de que quando se é anfitrião deve-se ter o prazer de praticar sacrifícios para agradar o próximo. E isso se manifestava em toda a escala social, desde o camponês ao próprio Rei.”[6]ancien-regime.jpg

Estoura a Revolução Francesa. Com ela, veladamente, o panteísmo se insinua sob o disfarce da igualdade. Pretende despersonalizar os indivíduos e produzir, a ferro e fogo, uma organização social onde as pessoas não sejam mais que números. Tal como num rebanho, onde a cabeça de gado não passa de uma cifra. Por isso, a Revolução Francesa fez morrer a cortesia, pois que esta é a harmonia entre as coisas diferentes. Acabando com as diferenças, desapareceu a cortesia. Mas, com isso, morre também a personalidade e tudo se transforma em “massa”.

Fascinado, ou melhor, iludido por uma falsa efígie da liberdade, o homem terminou por se tornar escravo. De quem? Não o sabemos… Alguns julgaram que a solução para a nova doença estava na fraternidade. E desta vez acertaram, pois a cortesia nada mais é que o amor ao próximo, por amor de Deus. Entretanto, erraram na composição do remédio…

Esse processo levou séculos para se desenrolar, mas chegou a um ponto difícil de ser cogitado pelos tutores da Revolução Francesa. Ele terminou? Nada o parece indicar… Pelo contrário, o horizonte apresenta um aspecto cada vez mais nublado e assustador. Onde ainda chegará este processo revolucionário? Seu futuro está em suas mãos, caro leitor. Sim, é no coração do homem que nascem a virtude e o pecado. Cada um de nós tem nas mãos as armas para derrotar esse inimigo da sociedade que pode ser resumido no egoísmo, vício contrário à caridade, ao amor a Deus. Só depois que Deus triunfar nos corações poderemos colher novamente os frutos da cortesia na sociedade humana, reflexo sublime das luzes e alcandores da sociedade celeste que nos aguarda. Comecemos a vitória pelos nossos próprios corações.

[1] CLÁ DIAS, João S. O Dom de Sabedoria na mente, vida e obra de Plinio Corrêa de Oliveira. Tese de doutorado em Teologia – Pontifícia Universidade Bolivariana. Medellín, 2010, p. 375.
[2] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência para jovens. 29 jun. 1974. Arquivo ITTA.
[3] CLÁ DIAS, João S. Despreocupados… rumo à guilhotina: A autodemolição do Ancien Regime. São Paulo: Artpress, 1993, p. 14.
[4] CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Pintando a Alma Humana. Catolicismo, Maio de 1951.
[5] LENOTRE, G. Gens de la Vieille France. Paris: Librarie Académique, 1919, p. 40-43.
[6] CLÁ DIAS, João S. Despreocupados… rumo à guilhotina: A autodemolição do Ancien Regime. São Paulo: Artpress, 1993, p. 21.

 
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