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Comentários ao Evangelho


A justa medida do fervor eucarístico
 
AUTOR: MONS. JOÃO SCOGNAMIGLIO CLÁ DIAS, EP
 
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Considerar a magnitude da generosidade divina manifestada na Eucaristia ajuda a medir qual deve ser nosso ardor por este inigualável Sacramento.

12No primeiro dia dos Ázimos, quando se imolava o cordeiro pascal, os discípulos disseram a Jesus: “Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?” 13 Jesus enviou então dois dos seus discípulos e lhes disse: “Ide à cidade. Um homem carregando um jarro de água virá ao vosso encontro. Segui-o 14 e dizei ao dono da casa em que ele entrar: ‘O Mestre manda dizer: onde está a sala em que vou comer a Páscoa com os meus discípulos?’ 15 Então ele vos mostrará, no andar de cima, uma grande sala, arrumada com almofadas. Aí fareis os preparativos para nós!” 16 Os discípulos saíram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus havia dito, e prepararam a Páscoa. 22 Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: “Tomai, isto é o meu Corpo”. 23 Em seguida, tomou o cálice, deu graças, entregou-lhes e todos beberam dele. 24 Jesus lhes disse: “Isto é o meu Sangue, o Sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos. 25 Em verdade vos digo, não beberei mais do fruto da videira, até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”. 26 Depois de terem cantado o hino, foram para o Monte das Oliveiras (Mc 14, 12-16.22-26).

Monsenhor Joao Cla Dias EP.jpgI – O Homem-Deus dá-Se em alimento aos homens

A luz da fé é imprescindível para contemplar, ainda que por poucos instantes, a elevação e beleza do mistério da Encarnação do Verbo, pois o entendimento humano, abandonado à sua mera capacidade, não chega a alcançá-lo. Se não fosse o auxílio da graça, jamais seria possível admitir que Deus quis Se manifestar ao mundo desta forma, promovendo a união da natureza divina com a humana na Segunda Pessoa da Santíssima Trindade. Jesus é verdadeiramente Homem, com inteligência, vontade e sensibilidade – além de ter assumido um corpo padecente, cuja origem foi miraculosa, mas que se desenvolveu de modo normal, conforme as leis da natureza – e, ao mesmo tempo, Ele é plenamente Deus. Deus reclinado numa manjedoura; Deus a discutir no Templo com os doutores da Lei; Deus que mora com seus pais em Nazaré; Deus que abraça a vida pública; Deus que é crucificado… Quantos atos de adoração e gratidão deveríamos fazer cada vez que consideramos este mistério, e com quanto fervor conviria pedir a Nosso Senhor o aumento de nossa fé n’Ele!

Ora, se tal é nossa admiração ante a grandeza do Verbo que “Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14), não menos ardorosa deve ser a nossa atitude perante a Sagrada Eucaristia, o mistério que resume todas as maravilhas realizadas por Deus para a nossa salvação.1 Como bem observa o padre Monsabré, “a Encarnação é a obra-prima de Deus. Mas esta mesma obra-prima, pessoal e viva, Jesus Cristo, Filho de Deus Encarnado, não se contenta em proclamar, à maneira das obras-primas humanas, a glória do sublime Artista que a criou. Soberanamente inteligente, bom e poderoso, Ele também quis produzir uma obra capital entre todas aquelas que seu Pai celeste O mandou executar. Esta obra é a Eucaristia”.2

Assim, na Encarnação, o Filho eterno de Deus Se vela na carne; na Eucaristia, Jesus oculta não só sua Pessoa Divina, mas sua humanidade, sob as espécies de pão e vinho. Na Encarnação, Ele passou a viver e a agir como nós, do interior da santidade incriada, substancial e infinita de Deus. Na Eucaristia, Ele quer, com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, habitar em nosso interior. Na Encarnação, a comunicação e a união foram somente com uma ­natureza singular, a humanidade santíssima de Cristo; na Eucaristia, Jesus Se une a todo aquele que O recebe, conforme Ele mesmo disse: “Quem come a minha Carne e bebe o meu Sangue permanece em Mim e Eu nele” (Jo 6, 56). Tal união entre Deus e o homem é a mais íntima que se possa imaginar, inferior apenas à união hipostática. É algo tão grandioso que causa assombro!

O Evangelho de hoje, trazendo à nossa consideração o relato da instituição deste Sacramento, “entre todos o mais importante e o que remata os demais”,3 convida a meditar sobre sua inesgotável riqueza e a crescer na devoção a ele. O próprio Salvador ansiava por este momento, como o manifestou aos discípulos, no início da Santa Ceia: “Tenho desejado ardentemente comer convosco esta Páscoa, antes de sofrer” (Lc 22, 15).

II – O mistério da Fé por excelência

Encontrava-Se o Divino Mestre a caminho de Jerusalém quando, pela terceira vez, anunciou aos discípulos sua Paixão (cf. Mt 20, 17-19; Mc 10, 32-34; Lc 18, 31-34). Mais tarde, já depois do Domingo de Ramos, Ele lhes revelou a data exata deste acontecimento: “Sabeis que daqui a dois dias será a Páscoa, e o Filho do Homem será traído para ser crucificado” (Mt 26, 2).

Entrementes, os sumos sacerdotes e os ­anciãos do povo, reunidos na casa de Caifás, conspiravam contra Jesus e deliberavam sobre os meios de O prender com astúcia e O matar. Mas, como temiam provocar tumulto na multidão, decidiram agir só após o término da festa (cf. Mt 26, 4-5). Foi então que Judas Iscariotes foi ter com eles, oferecendo-lhes sua pérfida contribuição para o crime. Prometeram-lhe trinta moedas de prata, “e desde aquele instante, procurava uma ocasião favorável para entregar Jesus” (Mt 26, 16).

A Ceia que inaugurou a verdadeira Páscoa

12 No primeiro dia dos Ázimos, quando se imolava o cordeiro pascal, os discípulos disseram a Jesus: “Onde queres que façamos os preparativos para comeres a Páscoa?”

As comemorações da Páscoa, principal festividade judaica, se estendiam ao longo de uma semana, sendo o primeiro dia reservado à ceia solene em que se comia o cordeiro pascal, seguindo as indicações dadas por Deus aos israelitas na época da saída do Egito (cf. Ex 12, 1-14). Como o pão fermentado era proibido durante este período, consumiam-se pães sem levedura, e daí a solenidade ser designada também como festa dos Ázimos.

Judas entrega Jesus - NotreDame des Fontaines - Labrigue.jpg
Foi então que Judas Iscariotes foi ter com eles, oferecendo- -lhes sua pérfida
contribuição para o crime

Ora, Nosso Senhor Jesus Cristo é o verdadeiro Cordeiro Pascal, “o Cordeiro imaculado e sem defeito algum, aquele que foi predestinado antes da criação do mundo” (I Pd 1, 19). Portanto, a cerimônia que os Apóstolos se empenhavam em preparar seria o início da realização de tudo o que a Páscoa israelita prefigurava, pois na Santa Ceia daquela noite Ele consagraria “o princípio de seu sacrifício, ou seja, de sua Paixão, entregando-Se a seus discípulos nos mistérios de seu Corpo e Sangue”.4

Um suave convite a Judas

13a Jesus enviou então dois dos seus discípulos e lhes disse: “Ide à cidade”.

Sendo Judas Iscariotes o responsável pela logística do Colégio Apostólico, cabia-lhe tomar as providências para a celebração. Porém, a narração de outro Evangelista indica terem sido Pedro e João os discípulos que Nosso Senhor encarregou deste trabalho (cf. Lc 22, 8). Com divina delicadeza e bondade, o Mestre ­deixava transparecer a Judas que tinha conhecimento do crime por ele tramado com os sinedritas. Se houvesse no traidor um resquício de amor a Deus e de bom senso, o proceder de Jesus lhe teria aguilhoado a consciência, levando-o a dar-se conta da imensa gravidade daquele pecado e a desistir de seu intento. Entretanto, nada disso ocorreu, pois seu coração estava completamente endurecido no mal.

Podemos fazer aqui uma aplicação à nossa vida espiritual. Às vezes, pessoas com quem convivemos – seja um superior, um colega ou até um inferior – nos dão a entender que percebem em nós um defeito mal combatido ou nos alertam para uma situação má na qual nos encontramos. Em face desses convites, teremos fechado nossa alma, imitando a perversidade de Judas?

O Divino Mestre quis evitar perturbações durante a Ceia

13b “Um homem carregando um jarro de água virá ao vosso encontro. Segui-o 14 e dizei ao dono da casa em que ele entrar: ‘O Mestre manda dizer: onde está a sala em que vou comer a Páscoa com os meus discípulos?’ 15 Então ele vos mostrará, no andar de cima, uma grande sala, arrumada com almofadas. Aí fareis os preparativos para nós!”

O recinto escolhido pelo Redentor, como cenário do ato de suma importância que iria realizar, era uma ampla sala decorada com distinção e categoria (cf. Lc 22, 12). Belos tapetes, tecidos, cortinas e requintada mobília compunham agradavelmente o ambiente. De acordo com o costume do tempo, nos banquetes as mesas eram dispostas em forma de “U” e os comensais não comiam sentados como hoje, mas reclinados em divãs distribuídos no lado externo da mesa. O lado interno ficava livre a fim de permitir o serviço. O lugar de honra – que na ocasião deveria ser ocupado por Nosso Senhor – ficava ao centro.

Última Ceia por Giovanni Canavesio - Afresco da capela de Notre-Dame-des-Fontaines, La Brigue (França).jpg
Se houvesse no traidor um resquício de amor a Deus e de bom senso, o proceder de
Jesus lhe teria aguilhoado a consciência

Traição de Judas e Última Ceia, por Giovanni Canavesio – Afrescos da capela de
Notre-Dame-des-Fontaines,  La Brigue (França)

Judas, ávido por se informar a respeito das circunstâncias e do local da ceia – pois julgava ser este um momento oportuno para entregar Nosso Senhor -, decerto ouvia atento estas indicações. Mas Jesus desejava celebrar a Páscoa sem nenhuma interrupção; “não queria ser perturbado por seus inimigos antes que chegasse ‘sua hora’ e, sobretudo, antes da doação e do amoroso legado da Sagrada Eucaristia que queria deixar à sua Igreja”.5 Por isso instruiu os dois Apóstolos de modo a tornar impossível ao traidor descobrir com antecedência onde seria a refeição, demonstrando-lhe ainda, indiretamente e de maneira majestosa, que estava a par de tudo. Ante esta nova lição, Judas mais uma vez recalcitra e sua maldade recrudesce.

A tibieza dos Apóstolos

16 Os discípulos saíram e foram à cidade. Encontraram tudo como Jesus havia dito, e prepararam a Páscoa.

São Pedro e São João executaram com toda a presteza a missão que o Mestre lhes confiara. Além de providenciar o cordeiro sem defeito, de um ano – o qual se imolava no Templo, depois do meio-dia, com um rito apropriado à Páscoa -, prepararam também os outros alimentos prescritos pela Lei, tais como os pães ázimos e as ervas amargas, as quais representavam os sofrimentos do povo hebreu durante o cativeiro no Egito.6

Analisemos, nesta passagem, outro aspecto da atitude dos dois Apóstolos. Ao encontrar “tudo como Jesus havia dito”, ambos puderam comprovar quanto suas palavras eram densas de significado e sabedoria. Seria de se esperar que, impressionados por tal constatação – certamente acompanhada de graças especiais -, eles indagassem de Nosso Senhor a razão exata da escolha daquele lugar e o simbolismo do que iria acontecer ali. Nada no Evangelho, todavia, indica esta iniciativa da parte dos Apóstolos, por não estarem habituados a refletir sobre a transcendência do que o Divino Mestre lhes dizia, bem como de seus exemplos, atitudes e gestos. Quão diferente era a postura de Nossa Senhora que, dotada de ciência infusa, conferia todas essas coisas no seu coração (cf. Lc 2, 51)!

E nós? Quantas oportunidades nos são oferecidas para aprofundarmos nossos conhecimentos sobre a doutrina católica, penetrarmos em algum aspecto da Fé ou um ponto da moral, e não manifestamos interesse! Não será isto uma falta? Peçamos hoje perdão a Jesus, por intercessão de sua Mãe Santíssima, por nossas negligências nessa linha.

Por outro lado, qual era o estado de alma dos demais Apóstolos? No trecho do Evangelho selecionado para esta Solenidade omitem-se alguns versículos intermediários, os quais narram o início da Ceia e o momento em que o Salvador revelou aos Doze que um deles O trairia. A pergunta que então Lhe fizeram, um após o outro – “Porventura sou eu?” (Mc 14, 19) -, pode ser interpretada como um sintoma do ­estado de tibieza no qual se encontravam. As palavras de Jesus tocaram-lhes a alma a fundo, e cada um, cônscio de sua própria falta de fervor, se pôs o problema: “Não será um recado para mim?”. É também um indício desta situação espiritual o fato de não desconfiarem de Judas. Conviviam com ele, sabiam que “era ladrão e, tendo a bolsa, furtava o que nela lançavam” (Jo 12, 6), mas não suspeitaram que ele fosse capaz de infâmia maior.

Comunhão dos Apóstolos - Igreja do Sagrado Coração de Jesus Santander (Espanha).jpg
Os Apóstolos conviviam com Judas e sabiam que era ladrão, mas não
suspeitavam que fosse capaz de infâmia maior

Comunhão dos Apóstolos – Igreja do Sagrado Coração de Jesus,
Santander (Espanha)

Em tal atmosfera de entibiamento geral e, pior ainda, com a traição aninhada no coração de um dos Apóstolos, é que Nosso Senhor Jesus Cristo vai instituir o Sacramento do Amor.

A palavra de Jesus é criadora

22 Enquanto comiam, Jesus tomou o pão e, tendo pronunciado a bênção, partiu-o e entregou-lhes, dizendo: “Tomai, isto é o meu Corpo”. 23 Em seguida, tomou o cálice, deu graças, entregou-lhes e todos beberam dele. 24 Jesus lhes disse: “Isto é o meu Sangue, o Sangue da Aliança, que é derramado em favor de muitos. 25 Em verdade vos digo, não beberei mais do fruto da videira, até o dia em que beberei o vinho novo no Reino de Deus”.

As palavras destes versículos – as quais são repetidas quase sem variações pelos outros sinópticos e por São Paulo (cf. Mt 26, 26-29; Lc 22, 17-20; I Cor 11, 23-25) – constituem o fundamento de nossa fé na Eucaristia.

Tudo o que é revelado por Deus é mistério da Fé, mas a Eucaristia o é por excelência. Quando o sacerdote profere a fórmula da Consagração, temos de acreditar que o pão e o vinho que vemos, provamos, cheiramos e até tocamos com a língua, e cuja aparência não mudou em nada, passaram a ser Corpo, Sangue, Alma e Divindade de Nosso Senhor Jesus Cristo. Os sentidos nos enganam – e não só em assuntos de fé! -, pois eles percebem apenas os acidentes e não captam a substância. Mas, graças à fé que ilumina a inteligência, sabemos que ali está Jesus Sacramentado.

Qual é a razão que nos leva a aceitar esta verdade? A afirmação de Nosso Senhor: “Isto é o meu Corpo… Este é o cálice do meu Sangue…”. Porque a palavra d’Ele é divina; logo, é criadora, é lei, é “viva, eficaz” (Hb 4, 12), produz aquilo que significa e “permanece eternamente” (Is 40, 8). Ao cego que Lhe suplicou a cura, bastou-Lhe responder “Vai, a tua fé te salvou” (Mc 10, 52), e o homem recuperou a visão naquele instante. E quando Ele ordenou ao morto de quatro dias, “Lázaro, vem para fora!” (Jo 11, 43), este retornou à vida ipso facto. Do mesmo modo, se Ele, “Filho todo-poderoso de Deus, capaz das maiores e mais incompreensíveis maravilhas, me diz, ao me mostrar o pão, ‘Isto é o meu Corpo’, estou obrigado a tomar suas palavras ao pé da letra”.7

O Doutor Angélico aponta vários motivos para explicar a conveniência de ocultar-Se à nossa sensibilidade a substância do Corpo e Sangue de Cristo. Entre outros, assim o estabeleceu a Providência Divina porque se víssemos Nosso Senhor claramente na Hóstia, não teríamos coragem de comungar.8 Ele foi muito bondoso conosco, cobrindo-Se com o véu das Sagradas Espécies.

A alegria de Deus em dar-Se

26 Depois de terem cantado o hino, foram para o Monte das Oliveiras.

Belíssimo é este versículo final, tanto pelo episódio que narra quanto por seu profundo simbolismo. Antes de partirem para o Monte das Oliveiras, onde se iniciaria o drama da Paixão, Jesus cantou junto com os Apóstolos um lindo hino de ação de graças intitulado Hallel, próprio da liturgia hebraica para a celebração da Páscoa. Como seria magnífica a voz de Nosso Senhor Jesus Cristo entoando este cântico, com o qual manifestava sua alegria por haver instituído a Eucaristia e ­pelo fato de Nossa Senhora e Ele mesmo terem comungado!

Adoração eucarística.jpg
Se víssemos Nosso Senhor claramente
na Hóstia, não teríamos coragem de
comungar
Adoração eucarística na Basílica de
Nossa Senhora do Rosário, Caieiras (SP)

Esta passagem – que, de si, nos levaria a vastas considerações – ressalta o infinito desejo de dar-Se que há no seio da Santíssima Trindade. Deus, imutável e eterno, não necessitava da criação. Este foi um supremo ato de liberalidade, de entrega e de generosidade, cujo ápice é a Eucaristia, pois criar para comunicar sua felicidade aos seres inteligentes e Se colocar sempre à disposição deles, já é muito; mas criar para, em certo momento, o Verbo encarnar-Se e, sendo Deus, oferecer-Se aos homens como alimento, é inimaginável! Nem sequer os Anjos poderiam cogitar algo tão ousado!

O dever da reciprocidade

Vemos nesta ousadia o quanto Deus ama a cada um de nós. Ele promoveu a ordem do universo com vistas à Eucaristia, porque quer unir-nos a Ele de uma forma extraordinária e tornar-Se nosso escravo. Sim, pois quando o sacerdote pronuncia a fórmula da Consagração, Ele obedece à sua voz, opera a transubstanciação e renova-se de forma incruenta o Sacrifício do Calvário. A Eucaristia é, portanto, símbolo da escravidão de Deus a nós, mas, sobretudo, da nossa escravidão a Ele, pois se Ele assim Se entrega a nós, também é preciso nos entregarmos a Ele sem reservas!

É a esta inteira confiança e reciprocidade em relação a Jesus Eucarístico que a Solenidade de Corpus Christi nos convida. Afastemos de nosso horizonte o egoísmo, o pragmatismo, os interesses pessoais e contemplemos, cheios de alegria e entusiasmo, esta doação de Deus a nós e, ademais, a possibilidade que Ele nos concede de Lhe retribuirmos com semelhante amor, guardadas as devidas proporções entre Criador e criatura. Tal há de ser nosso empenho!

III – A Eucaristia, Maria e nós

Expressão ímpar da benignidade de Nosso Senhor Jesus Cristo na Eucaristia é o fato de podermos adorá-Lo exposto no ostensório. Se o Sol traz vantagens para nossa saúde física, muito maior é o benefício que o Criador do Sol prodigaliza à nossa saúde espiritual quando estamos diante de Jesus-Hóstia!

Nossa consciência diante da Eucaristia

No entanto, como nem sempre nossas disposições correspondem ao que Ele espera de nós, é oportuno nos determos num exame de consciência. No meu dia a dia, como é minha devoção à Eucaristia? Tenho o hábito de nela centrar minha atenção, atividades e preocupações? Ao passar diante do Santíssimo Sacramento, numa igreja, procuro adorá-Lo com fervor? Ou me deixo levar pela rotina? Comungo na Santa Missa, persuadido de que Nosso Senhor Jesus Cristo sai do cibório contente por unir-Se a mim e, ao penetrar em meu ser, me santifica a alma e o corpo? Após a Comunhão, minha ação de graças tem a adequada solidez e fervor? Eu Lhe agradeço por me ter feito seu tabernáculo, estabelecendo comigo um relacionamento que jamais terá com um sacrário material, por mais precioso que este seja, e por haver entrado em consonância comigo, purificando minhas intenções, me dado forças sobrenaturais, robustecendo-me as virtudes e os dons do Espírito Santo?

Devo me lembrar de que entre os que receberam a Eucaristia na Santa Ceia estava o traidor de Jesus…9 Será que, como ele, alguma vez tive a infelicidade de comungar sacrilegamente, isto é, tendo cometido uma falta grave que me havia despojado da graça de Deus? Suplicarei a Nosso Senhor, com energia, que isto nunca me venha a suceder!

Com seu Sagrado Coração transbordante de afeto, mas também de justiça, Jesus cobra de cada um de nós no dia de hoje: “O que tens feito deste benefício extraordinário, o maior tesouro que te deixei?”. E de seus lábios ouvirei a recriminação pelas vezes em que O recebi com tibieza; ou às pressas, tomado por distrações voluntárias; ou em meio a uma culposa insensibilidade; ou ainda maculado pelo pecado, caso tenha incorrido nesta desgraça…

O mais excelso tabernáculo

É possível que, chegando a este ponto da leitura, sintamos a consciência nos acusar. Voltemo-nos então a Nossa Senhora, em cujo claustro virginal – o mais perfeito dos tabernáculos – o Menino Jesus viveu ao longo de nove meses.

Não é difícil imaginar a impostação de espírito d’Ela durante este período de gestação. Por mais que estivesse ocupada com seus afazeres diários ou conversando com outras pessoas, todo o seu ser se concentrava no Divino Hóspede que Ela trazia em Si. Eis o verdadeiro recolhimento! Todos os pensamentos, sentimentos e emoções d’Ela convergiam para Nosso Senhor Jesus Cristo, e, fortemente apaixonada por Ele, adorava-O enquanto Deus e amava-O enquanto Filho seu. Foi Ela a única Mãe que pôde amar seu Filho com total intensidade, sem o menor receio de amá-Lo mais do que a Deus… porque era o próprio Deus! Abismada em sua humildade e no completo esquecimento de Si mesma, considerava-Se como “Aquela que não é”, e reverenciava continuamente “Aquele que é”, em seu seio puríssimo. Magnífico espetáculo de despretensão e excelsitude inconcebíveis! Um coração materno feito de magnanimidade, do qual sobem e descem movimentos grandiosos, ­semelhantes às ondas do mar ou ao som de melodias celestiais… Ora se eleva num arrebatamento pelo Infinito, ora se debruça cheio de ternura sobre o pequenino Infante.

Última Ceia - Igreja de São João Batista, Quejana (Espanha).jpg
Ó minha Mãe, Vós que tanto amais a Jesus, fazei com que Ele Se apodere
do meu coração!

Última Ceia – Igreja de São João Batista, Quejana (Espanha)

Também eu, quando comungo, acolho em meu interior o Verbo Encarnado com seu Corpo, Sangue, Alma e Divindade, e Ele ali permanece, como num trono, durante certo tempo. Com os olhos fixos no exemplo marial de compenetração, enlevo e gratidão a Deus, baterei no peito implorando perdão a Jesus por todas as minhas Comunhões gélidas e, dirigindo-me à Santíssima Virgem, Lhe pedirei: “Ó Maria, Vós, que confundíeis o vosso pensamento com o de Nosso Senhor Jesus Cristo; Vós, que consonáveis vossa vida com a d’Ele; o que pensais, ó Mãe, de minha indiferença para com Aquele que, sendo meu Criador e Redentor, Vós me destes por Irmão? Ó minha Mãe, Vós que tanto amais a Jesus, fazei com que eu O ame! Vós, que tudo podeis junto a Nosso Senhor, obtende-me que Ele Se apodere de meu coração. Amá-Lo é tudo! Adorá-Lo é tudo! Se eu O amar como devo, a vosso exemplo, a Eucaristia será o centro da minha existência, o lugar sagrado de minha felicidade, a fonte de minha generosidade. Ó minha Mãe, seja esta a vossa obra em minha alma!”. ² (Revista Arautos do Evangelho, Junho/2015, n. 162, pp. 9 a 15 )

1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. De Sacramento Eucharistiæ. C.I.
2 MONSABRÉ, OP, Jacques-Marie-Louis. Le Mystère Eucharistique. In: Exposition du Dogme Catholique. Grâce de Jésus-Christ. II – Eucharistie. Carême 1884. 9.ed. Paris: P. Lethielleux, 1905, v.XII, p.5.
3 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.65, a.3.
4 SÃO BEDA. In Marci Evangelium Expositio. L.IV, c.14: ML 92, 270.
5 FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Pasión, Muerte y Resurrección. Madrid: Rialp, 2000, v.III, p.100.
6 Cf. Idem, p.102.
7 MONSABRÉ, op. cit., p.21.
8 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.75, a.5.
9 Cf. Idem, q.81, a.2.

 
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