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São Gregório de Narek: A arte de conversar com Deus
 
AUTOR: DIÁC. ARTURO NICOLAS HLEBNIKIAN MOMDJIAN, EP
 
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Dentro dos muros de um mosteiro, nas misteriosas terras orientais da Armênia antiga, escolheu este monge a melhor parte: aprendeu a conversar, no tempo, com o Senhor das Alturas, para gozar de seu convívio na eternidade.

Existe algum nexo entre o homem contemporâneo, cercado de avançados meios de comunicação, e um monge armênio do século X, vivendo em estrito recolhimento num mosteiro perto do Lago de Van – hoje pertencente à Turquia -, rodeado de montanhas quase sempre nevadas? O que há de tão original e profundo no pensamento de São Gregório de Narek para ter sido declarado Doutor da Igreja?

São Gregório de Narek.jpg
Representação de São Gregório de
Narek num manuscrito do século
XII – Instituto Mashtots,
Erevan (Armênia)

Decerto perguntas como estas terão passado pela mente de quem leu a notícia divulgada há um ano pela Sala de Imprensa da Santa Sé.1 Vamos juntos tentar descobrir a resposta.

O ser humano precisa se comunicar

Todos nós temos um desejo muito forte de nos comunicar com os demais. O homem é um “animal político”, na definição de Aristóteles; segundo São Tomás, um “animal social”.3 Isto se explica pelo fato de termos nascido todos com uma ­particularidade denominada por Cícero “instinto de sociabilidade”.4

Paradigmática é a historia de Helen Keller, famosa norte-americana que ficou cega e surda antes de completar dois anos de idade, devido a uma grave enfermidade. Desprovida dos principais sentidos, vivia ela como que apartada do mundo. Depois de aprender, ainda criança, com sua preceptora, Anne Sullivan, a se comunicar por meio do tato, conseguiu aos poucos desenvolver um universo de potencialidades latentes em sua alma e acabou por tornar-se educadora, escritora, conferencista e advogada.

Para satisfazer esta necessidade humana fundamental, com quem precisamos nos comunicar? Sem dúvida com nossos semelhantes. Não obstante, podem eles explicar as incógnitas inerentes à nossa existência? Não. Por isso, nosso mais forte desejo de comunicação volta-se para um Ser superior, capaz de preencher nossas lacunas e limitações.
Quiçá seja este o ponto mais atraente da personalidade um tanto misteriosa de São Gregório de Narek: sabia ele estar em constante comunicação com Deus.

Uma vida inteira no mosteiro de Narek

Gregório nasceu em Andzevatsik, província de Vaspurakan na antiga Armênia, por volta do ano de 950, numa família culta e cristã. Havendo falecido sua mãe quando ele estava em tenra infância, o pai – nomeado Arcebispo de Andzevatsik, tendo decidido abraçar a vida eclesiástica – confiou a educação do menino a um parente de nome Ananias, cognominado “o Filósofo”,5 abade do mosteiro de Narek, importante centro cultural de então.

Instruído nas Sagradas Escrituras e nas letras, destacou-se pela austeridade de sua via ascética e pelo espírito de oração. Depois de ordenado sacerdote foi designado mestre de noviços. Com o falecimento de Ananias, o elegeram abade do mosteiro e ali viveu até sua morte, por volta de 1005.

Em seu tempo, a Armênia estava em relativa tranquilidade. Não se haviam dado as invasões mongólicas e turcas que mudaram a fisionomia do país e era uma época de criatividade e paz, o que possibilitou à nação um florescimento das artes – literatura, pintura, arquitetura, teologia -, no qual São Gregório desempenhou papel primordial, enquanto poeta místico, compositor e literato.

Como sua fama de santidade passou do mosteiro de Narek para os mosteiros circunvizinhos, São Gregório converteu-se num reformador de monges. Entretanto, sua radical fidelidade à observância das regras monásticas contrariava o relaxamento de alguns noviços. Estes, movidos ademais pela inveja, promoveram contra ele uma infame perseguição, acusando-o de disseminar heresias em seus ensinamentos. Em consequência, São Gregório foi deposto de seus cargos.

Não tardou a Providência vir em auxílio de seu fiel servidor. Contam antigas crônicas que os Bispos designaram dois monges sábios para interrogarem o santo abade a respeito de suas supostas heresias. Estes, porém, julgaram ser mais eficiente submetê-lo a uma prova. Apresentaram-se em sua cela, no período quaresmal de abstinência de carne prescrito pela regra, e lhe ofereceram um delicioso patê de pombinhos como se fosse de peixe. Mal entraram, Gregório interrompeu a oração, abriu a janela, começou a bater palmas e a gritar aos pássaros que por ali gorjeavam: “Vinde, passarinhos, brincar com o peixe que se come hoje”.6 Entenderam os dois monges que aquela facilidade em descobrir e livrar-se da cilada era uma testemunha eloquente da santidade de Gregório e, portanto, da ortodoxia de sua doutrina.

Seu testamento espiritual: o “Livro das Orações”

Nos relatos dos Santos Evangelhos, a mais emblemática manifestação do desejo humano de comunicar-se com Deus talvez tenha se dado no momento em que os Apóstolos pediram a Jesus: “Senhor, ensina-nos a rezar” (Lc 11, 1). E Cristo lhes ensinou a oração perfeita: o Pai-Nosso.

Mosteiro de Narek fotografado na primeira década do séc.jpg
Com o falecimento de Ananias, Gregório foi eleito abade do
mosteiro de Narek e ali viveu até sua morte

Mosteiro de Narek fotografado na primeira década do séc. XX

Zeloso imitador do Mestre e cheio de desvelo pela salvação das almas, São Gregório compôs o Livro das Orações – também conhecido por Livro das Lamentações ou Tragédie -, constituído de 95 orações ou capítulos, todos em verso. Segundo consta, foi terminado em 1002 e escrito durante uma dolorosa enfermidade. É o que revela uma de suas orações: “Abatido por meus crimes, sobre o leito de minhas doenças e o monturo de meus pecados, não sou mais que um cadáver vivo, um morto que ainda fala. […] Então, como ao jovem chamado à vida para acalmar a aflição de sua mãe, Tu me devolverás minha alma pecadora tão renovada como a dele”.

São Gregório considerava esta sua obra-prima como um verdadeiro testamento espiritual e exprimiu o ardente desejo de que as orações ali contidas fizessem sentir sua presença depois da morte: “Que em vez de mim, em lugar de minha voz, este livro ressoe como outro eu mesmo”.

Queria que estes escritos servissem de baliza e esteio para os homens falarem com Deus nas mais variadas circunstâncias. Assim como Davi louva a Deus no Livro dos Salmos, e pede perdão pelas suas faltas confiando numa misericórdia que há de vir, São Gregório também o faz, mas em função da Misericórdia que já veio ao mundo, morreu e ressuscitou. Há quem compare o esforço de se reconciliar com Deus que pervade o Livro das Orações com as famosas Confissões de Santo Agostinho.

“Tu ouves os suspiros dos cativos”

“Se reconhecemos os nossos pecados, (Deus aí está) fiel e justo para nos perdoar os pecados e para nos purificar de toda iniquidade” (I Jo 1, 9), ensina o Discípulo Amado. Fiel a tal pensamento, o santo monge sustenta que não adianta tentar esconder as faltas de Deus, pois Ele tudo vê. E nos dá o exemplo, acusando-se delas, das quais faz uma longa lista: pequei contra tua imensa bondade, pequei contra a piedade de teu celeste amor, pequei contra Ti que nos criaste do nada, pequei contra a beleza de teu dia que nunca acaba, contra os mistérios de teus graciosos dons;9 contra Aquele de quem recebemos o perdão “mais pela graça do que pela penitência”.10 Por isso, a Deus ele pede que venha em nosso auxílio como médico e não “como um juiz para um interrogatório”.

Gravura extraída de uma antiga edição do Livro das Lamentações.jpg
São Gregório queria que seus
escritos servissem de baliza e esteio
para os homens falarem com Deus


Gravura extraída de uma antiga
edição do Livro das Lamentações

Já bem perto do fim do livro, como também de sua vida, na prece intitulada Oração da Noite, proclama ele sua confiança n’Aquele com quem o homem deseja se comunicar e relacionar: “Deus eterno, benfeitor todo poderoso, que criaste a luz e deste forma à noite; vida no meio da morte e dia entre as ­trevas […]. Tu ouves os suspiros dos cativos, Tu consideras os rogos dos humildes, Tu atendes os seus pedidos, meu Deus, meu rei, minha vida e meu refúgio, minha esperança e minha certeza”.

São Gregório considera a oração saída do coração do cristão como a fragrância do incenso que se evola de um turíbulo. Por conseguinte, em suas obras busca encontrar o que pode o homem oferecer a Deus, que tudo sabe e tudo tem. E sua conclusão é: o melhor para apresentar a Deus são os “gemidos do coração”,13 transcritos em suas orações e escritos poéticos, orientados para tocar “as camadas mais profundas da consciência individual” e para o “enriquecimento da Liturgia”14 da Igreja.

Prenúncios do dogma da Imaculada Conceição

De acordo com uma tradição armênia transmitida de geração em geração, durante um longo período de sua vida, Gregório chorava e implorava a Deus a graça de ver com seus próprios olhos a Virgem Maria com o Menino Jesus nos braços, ainda que uma só vez. Certa noite, estando em sua cela, viu descer do Céu uma luz incidindo numa pequena ilha no Lago de Van. Uma leve brisa se fez sentir e Maria Santíssima apareceu com Jesus nos braços. Tão logo A viu, exclamou: “Agora, Senhor, recebei minha alma, porque já obtive o que tanto desejava”.15 A visão desapareceu, mas a ilha passou a chamar-se A?ter – A? T?r significa “Senhor, recebei”, em armênio -, e este fato memorável foi reproduzido em muitas iluminuras.

O amor a Maria Santíssima é uma característica dominante de sua espiritualidade. A Ela se refere como: “Esta Mãe, que me ama como a um filho, é espiritual, celeste e luminosa”.16 Tão grande devoção foi manifestada especialmente na oração 80, intitulada À Mãe de Deus, na qual apresenta importantes aspectos de mariologia, entre eles prenúncios do dogma da Imaculada Conceição, proclamado mais de oitocentos anos depois.

Aqui reproduzimos seus belos trechos iniciais: “Eis que Te rogo, Santa Mãe de Deus, Anjo e filha dos homens, Querubim aparecido em forma corpórea, Soberana celestial, sincera como o ar, pura como a luz, sem mancha que se levanta como a estrela da manhã, mais santa que a morada inviolável do Templo, lugar de bem-aventuradas promessas, Éden dotado do sopro divino, árvore da vida eterna, guardada por uma espada de fogo! O sublime poder do Pai Te cobriu com sua sombra e o Espírito Santo, repousando em Ti, ornou-Te com sua santidade; o Filho, fazendo em Ti sua morada, preparou-Te como um tabernáculo; o Unigênito do Pai é o teu Primogênito, teu Filho por nascimento, teu Senhor, pois Te criou. Nada mancha tua pureza, nada macula tua bondade; Tu és a santa imaculada, cuja intercessão nos protege”.

Seu relacionamento com a Mãe de Deus, bem ao estilo oriental, exprime a doutrina em forma de panegírico e louvor, à diferença “dos ocidentais, em especial os latinos, que formulam cânones e definições dogmáticas”.

Quem escolheu a melhor parte?

Poderíamos continuar comentando indefinidamente os distintos aspectos da arte de se relacionar com Deus desenvolvida com tanta maestria por São Gregório, todavia chegamos ao fim de nosso artigo. E concluímos como começamos: lembrando a necessidade presente em nosso ser de nos comunicarmos.

São Gregório de Narek - Iluminura do século XII.jpg
Ele escolheu a melhor parte,
ainda nesta terra
São Gregório de Narek – Iluminura
do século XII Instituto Mashtots
de Manuscritos Antigos,
Erevan (Armênia)

Ora, uma conversa é tanto mais agradável e elevada quanto mais excelentes são os interlocutores. Assim, no reino animal, se observarmos as formigas, por exemplo, perceberemos alguns momentos em que duas param um instante em seu percurso da tarefa de abastecimento do formigueiro, uma frente à outra, como se transmitissem alguma informação. É uma comunicação rápida: em segundos está tudo “dito” e cada uma retoma o seu caminho. Já os macacos na Amazônia, por sua vez, se comunicam de forma bem diferente. Durante longo tempo um bando berra contra o outro, numa “briga verbal”, até definirem seu território. E se observamos os pássaros, podemos dizer que seu “colóquio” é bem mais artístico e delicado, ao estar enriquecido por seus dotes musicais.

Subindo aos seres humanos, vemos que quanto mais refinados e inteligentes são eles, mais alto e requintado será o seu prosear. Até seria possível fazer alguns comentários pitorescos sobre as diferenças dos tipos de interlocução, variando em função do nível cultural, social ou intelectual dos que nela participam.

No entanto, quando um dos participantes é o Divino Interlocutor, a que altura poderá ela chegar? Saberemos bem quando cruzarmos os umbrais da outra vida, porque “como as perfeições de Deus são infinitas – Deus é insondável -, Ele é para nós, no fim de milhões, de trilhões de anos, tão novo como no primeiro instante”.19 Mas não é preciso entrar no além para prelibar algo desta conversa. São Gregório é uma prova, pois escolheu a melhor parte ainda nesta Terra: decidiu conversar, no tempo, com o Senhor das Alturas, para gozar de seu convívio na eternidade.

E o homem moderno, cada vez mais robotizado e cibernauta, escolheu o quê? Coitado, optou por falar com as máquinas que, aliás, na ordem do ser são inferiores até mesmo às formigas! É tempo, pois, de aprender com São Gregório de Narek a comunicar-se com Deus. (Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2016, n. 170, p. 32 a 35).

 
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