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A festa dos irmãos celestes
 
AUTOR: MONS. JOÃO SCOGNAMIGLIO CLÁ DIAS, EP
 
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Na Solenidade de Todos os Santos a Igreja nos convida a ver com esperança nossos irmãos celestes, como estímulo para percorrermos por inteiro o caminho iniciado com o Batismo e atingirmos a plena felicidade na glória da visão beatífica.

“Naquele tempo, 1 vendo Jesus as multidões, subiu ao monte e sentou-Se. Os discípulos aproximaram-se, 2 e Jesus começou a ensiná-los: 3 ‘Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus. 4 Bem-aventurados os aflitos, porque serão consolados. 5 Bem-aventurados os mansos, porque possuirão a Terra. 6 Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados. 7 Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia. 8 Bem–aventurados os puros de coração, porque verão a Deus. 9 Bem-aventurados os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. 10 Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus. 11 Bem-aventurados sois vós, quando vos injuriarem e perseguirem, e, mentindo, disserem todo tipo de mal contra vós, por causa de Mim. 12a Alegrai-vos e exultai, porque será grande a vossa recompensa nos Céus’” (Mt 5, 1-12a).

I – Os Santos, irmãos celestes?

   Na Solenidade de Todos os Santos a Igreja celebra todos aqueles que já se encontram na plena posse da visão beatífica, inclusive os não canonizados. A Antífona da entrada da Missa nos faz este convite: “Alegremo-nos todos no Senhor, celebrando a festa de Todos os Santos”.1 Sim, alegremo-nos, porque santos são também – no sentido lato do termo – todos os que fazem parte do Corpo Místico de Cristo: não só os que conquistaram a glória celeste, como também os que satisfazem a pena temporal no Purgatório, e os que, ainda na Terra de exílio, vivem na graça de Deus. Quer estejamos neste mundo como membros da Igreja militante, quer no Purgatório como Igreja padecente, quer na felicidade eterna, já na Igreja triunfante, somos uma única e mesma Igreja. E como seus filhos temos irmandade, conforme diz São Paulo aos Efésios: “já não sois hóspedes nem peregrinos, mas sois concidadãos dos Santos e membros da família de Deus” (Ef 2, 19).

Os Santos intercedem por nós e dão exemplo

   É por isso que o Prefácio desta Solenidade reza: “Festejamos, hoje, a cidade do Céu, a Jerusalém do alto, nossa mãe, onde nossos irmãos, os Santos, vos cercam e cantam eternamente o vosso louvor. Para essa cidade caminhamos pressurosos, peregrinando na penumbra da fé. Contemplamos, alegres, na vossa luz, tantos membros da Igreja, que nos dais como exemplo e intercessão”.2

   Assim, caminhando “na penumbra da fé”, voltemos a atenção para os Bem-aventurados, – nossos irmãos, se vivermos na graça de Deus -, pois eles estão mais perto d’Aquele que é a Cabeça desse Corpo, Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles são motivo de esperança para os que padecem nas chamas do Purgatório. E para nós, que possuímos pelo Batismo o germe dessa glória da qual eles já gozam, são modelo da santidade de vida que devemos alcançar. Todo nosso empenho será pouco para obter que essa semente se transforme em árvore frondosa, no pleno desabrochar de suas flores e com abundância de frutos, isto é, a glória eterna, nossa meta última.

   Precisamos avançar, então, rumo aos que estão na presença de Deus com o mesmo desejo com que procuraríamos nossa família, caso não a conhecêssemos, pois, entre os membros de uma família harmônica e bem constituída existe um imbricamento, fruto da consanguinidade, tão inquebrantável que, por exemplo, se um dos irmãos atinge uma situação de prestígio, todos os demais se regozijam. Muito maior há de ser a união daqueles que, pela filiação divina, pertencem à família de Deus, e maior também a alegria ao contemplarmos nossos irmãos louvando a Deus no Céu, por todo o sempre, e intercedendo por nós junto a Ele.

   Tais pensamentos nos dão a clave para analisar o florilégio das leituras que a Santa Igreja separou para esta Solenidade.

II – Chamados a nos reunirmos no Céu

   A primeira leitura, do Apocalipse (7, 2-4.9-14), é cheia de beleza e, ao mesmo tempo, difícil de ser explicada com profundidade, em todos os seus simbolismos. Detenhamo-nos apenas em dois aspectos que a relacionam especialmente com esta comemoração. “Eu, João, vi um outro Anjo que subia do lado onde nasce o Sol. Ele trazia a marca do Deus vivo, e gritava, em alta voz, aos quatro Anjos que tinham recebido o poder de danificar a terra e o mar, dizendo-lhes: ‘Não façais mal à terra, nem ao mar, nem às árvores, até que tenhamos marcado na fronte os servos do nosso Deus’” (Ap 7, 2-3). Este bonito trecho deixa patente que Deus só promoverá o fim do mundo quando forem ocupados todos os lugares do Céu e a coorte dos Bem-aventurados se tenha completado. Vemos como Deus, para além das ofensas cometidas contra Ele e antes de enviar o castigo à Terra, cuida de seus Santos, daqueles que Ele escolheu.

   Logo em seguida, continua São João: “Ouvi então o número dos que tinham sido marcados: eram cento e quarenta e quatro mil, de todas as tribos dos filhos de Israel” (Ap 7, 4). Este número dos que seguem o Cordeiro por toda parte (cf. Ap 14, 4) é simbólico, pois a quantidade de Santos do Céu é incalculável. Ao criar o Céu Empíreo – que, segundo São Tomás,3 foi a primeira criatura a sair das mãos de Deus, junto com os Anjos -, tinha Ele, desde toda a eternidade, o plano de povoá-lo com outros seres inteligentes que, além dos espíritos angélicos, fossem partícipes da natureza divina e, portanto, sócios de sua felicidade eterna.

   Eis o apelo feito a nós na Liturgia de hoje: desejar e abraçar a via da santidade para fazer parte destes cento e quarenta e quatro mil.

O predomínio do mal depois do pecado original

   Ora, a partir do pecado original o homem passou a se interessar de forma intemperante pelas coisas materiais, e aos poucos se esqueceu de Deus. Estabeleceu-se na face da Terra a luta entre o bem e o mal, entre as volúpias da carne e o chamado de Deus à santidade, e no relacionamento humano entrou o mal com uma virulência extraordinária, pois este é dinâmico, enquanto o bem é apenas difusivo.4 Com efeito, se não fosse a sustentação da graça, o mal dominaria completamente em nós e derrotaria o bem.

Desde o primeiro Santo, até Nosso Senhor Jesus Cristo

   Isto se faz patente logo após a saída de Adão e Eva do Jardim do Éden, na história de seus dois primeiros descendentes, Caim e Abel. Abel era um filho da luz, reto e justo, cujos sacrifícios oferecidos a Deus eram aceitos com enorme benevolência (cf. Gn 4, 4). Caim, pelo contrário, nutria em sua alma o nefasto vício da inveja que, tendo chegado ao auge, levou-o a matar seu irmão, derramando sangue inocente. Em seguida, tomado de amargura e depressão, em consequência de seu pecado, Caim quis fugir da face do Senhor, com a ilusão característica do pecador que julga poder ocultar-se de Deus, assim como se esconde do olhar dos homens (cf. Gn 4, 8.14).

   Qual não terá sido o espanto de Eva ao carregar o cadáver de seu filho nos braços e deparar-se, pela primeira vez, com o efeito do pecado cometido no Paraíso! A alma de Abel, porém, no instante em que se destacou do corpo foi para o Limbo dos Justos, à espera da vinda do Salvador que lhe abriria as portas do Céu. Precedendo os pais, ele encabeçou o cortejo dos Santos, daqueles que, aos poucos, constituiriam o número dos que deveriam passar desta vida à eterna bem-aventurança.

A Encarnação do Verbo trouxe ao mundo uma plêiade de Santos

   Entretanto, a Encarnação do Verbo e sua presença visível entre os homens trouxe ao mundo uma plêiade de Santos: desde os mártires inocentes, até o Bom Ladrão que, tendo implorado misericórdia, obteve dos lábios do próprio Deus o prêmio de ser perdoado e santificado: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Quando Jesus expirou na Cruz, sua Alma desceu ao Limbo, onde, decerto, o primeiro a recebê-Lo foi São José, que O aguardava havia poucos anos. Mas foi no dia de sua gloriosa Ascensão que o Redentor levou consigo essa coorte exultante de justos, introduzindo-os no Céu a fim de começar a povoá-lo. Em certo momento, com gáudio para os Bem-aventurados, Maria Santíssima subiu em corpo e alma, e foi coroada como Rainha do universo.

Ficaram escancaradas as portas da santidade

   Ao longo dos vinte séculos de História da Igreja, as moradas eternas acolheram os mártires, os doutores, os confessores… pois foi Nosso Senhor Jesus Cristo quem abriu definitivamente as portas da santidade a todos os homens, com a superabundância de sua graça e sua doutrina nova dotada de potência (cf. Lc 4, 32; Mc 1, 22).

   Sinopse desta doutrina é o Sermão da Montanha, cujo centro é o Evangelho escolhido para esta Solenidade: a proclamação das Bem-aventuranças. De fato, elas são o resumo de toda a moral católica, de toda via de perfeição, de toda a prática da virtude, e se neste dia comemoramos as miríades de Santos que habitam o Paraíso Celeste, é porque eles realizaram em sua vida aquilo que o Divino Mestre delineia como causa de bem-aventurança.

   Tendo comentado este Evangelho em outras ocasiões,5 nos limitaremos agora a dar uma síntese dos ensinamentos nele contidos, em harmonia com a Solenidade hoje celebrada.

O contraste entre a Antiga e a Nova Lei

   Em primeiro lugar, apreciemos o contraste desta cena do Sermão da Montanha com outro importante discurso da História Sagrada: a promulgação da Antiga Lei, no Monte Sinai (cf. Ex 19-23). Parece que Nosso Senhor quis estabelecer de propósito uma contraposição entre ambos os episódios, a fim de mostrar a beleza existente na Nova Lei que Ele veio trazer, levando a Lei Antiga a maior perfeição (cf. Mt 5, 17). No Sinai, Deus permanece no cume da montanha e Moisés tem de subir até lá para receber as Tábuas da Lei. Cristo, pelo contrário, desce à meia altura do monte para Se encontrar com o homem e entregar-lhe, Ele próprio, a Nova Lei. Assim, uma Lei é promulgada no cimo da montanha, outra na orla. Enquanto no Sinai o homem deve subir até Deus, na montanha em que Jesus faz seu sermão, Deus desce até o homem.

   No Sinai, o Todo-Poderoso se apresenta em meio a trovões, relâmpagos, escuridão e som ensurdecedor de trombeta; na montanha, o Salvador senta-Se entre os homens, num ambiente suave, sereno e tranquilo, sem especiais manifestações da natureza. No Sinai, o povo tinha proibição de tocar a base do monte, pois morreria se o fizesse; na montanha, a multidão está próxima de Jesus e pode tocá-Lo, porque d’Ele emana uma virtude que cura a todos.

   No Sinai, foi dado a Moisés um código de leis, verdadeiro código penal, com severos castigos para quem o transgredisse; na montanha, Nosso Senhor mostra, com misericórdia sem limites, quais os prêmios, os benefícios e as maravilhas concedidas por Deus a quem pratica a virtude e cumpre a Lei. No Sinai, Moisés representa a Lei, servindo de exemplo por seu zelo em cumprir essa mesma Lei; na montanha, Jesus Cristo é o modelo perfeito da lei da bondade.

   No Sinai, para ouvir as prescrições divinas poderia subir qualquer homem, desde que fosse eleito por Deus; na montanha, porém, só o Homem-Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade Encarnada, podia pronunciar aquele Sermão, pois unicamente Ele, enquanto Messias, tinha autoridade para aperfeiçoar a Lei Antiga.

   Nessa perspectiva de bondade, Jesus proclama as Bem-aventuranças, mostrando a que alturas é capaz de se elevar uma alma pelo florescimento dos dons do Espírito Santo, produzindo atos de virtude heroica. Tais frutos podem brotar de maneira isolada, mas, em geral, quando o santo chega à plenitude da união com Deus, todas as bem-aventuranças se verificam numa única florada. Ser santo, então, significa ser um bem-aventurado no tempo para depois sê-lo na eternidade.

A filiação divina nos confere uma qualidade

   Em que consiste, pois, essa bem-aventurança? Na segunda leitura (I Jo 3, 1-3) desta Liturgia, um lindíssimo trecho da Primeira Epístola de São João – o Apóstolo do Amor, exímio espiritualista, sempre dado a ressaltar a vida sobrenatural – nos dá a resposta,lembrando o valor da nossa condição de filhos de Deus: “Vede que grande presente de amor o Pai nos deu: de sermos chamados filhos de Deus. E nós realmente o somos” (I Jo 3, 1a). Na verdade, por ocasião do Batismo, embora a natureza humana continue a mesma,com inteligência, vontade e sensibilidade, acrescenta-se em nós uma qualidade: a participação na própria natureza divina, que nos assume por completo. A graça, explica São Boaventura, “é um dom que purifica, ilumina e aperfeiçoa a alma; que a vivifica, a reforma e a consolida; que a eleva, a assimila e a une a Deus, tornando-a aceitável; pelo que semelhante dom justamente chama-se graça, pois nos faz gratos, isto é, graça gratificante”.6

   Sendo um bem do espírito, não pode ser vista com os olhos materiais, pois estes captam só o que é sensível, mas comprovamos, isto sim, seus efeitos. Santa Catarina de Sena, a quem Nosso Senhor concedera a graça de contemplar o estado das almas, chegou a afirmar a seu confessor: “Meu pai, se vísseis o fascínio de uma alma racional, não duvido que daríeis cem vezes a vida pela sua salvação, porque neste mundo nada há que se lhe possa igualar em beleza”.7

   Certas imagens podem servir para termos uma ideia, ainda que pálida, das maravilhas operadas pela graça nas almas. Imaginemos um vitral esplendoroso, com uma perfeita combinação de cores, fabricado com vidro da melhor qualidade, contendo até ouro na sua composição. Uma vez posto na janela, se não é iluminado, que valor terá peça tão espetacular? Entretanto, a partir do momento em que os raios de luz sobre ele incidem, brilhará com extraordinários matizes, desdobrando-se em mil reflexos multicoloridos.

   Outra comparação que também nos aproxima da realidade sobrenatural é a de um litro de álcool no qual são derramadas algumas gotas de fabulosa essência, finíssima e de requintado aroma. Sem deixar de ser álcool, o líquido torna-se perfume, pois é assumido pela essência.

   Da mesma forma como a luz ilumina o vitral e a essência assume o álcool – e ainda poderíamos encontrar na natureza outras imagens ilustrativas -, também a graça confere nova qualidade à alma humana, que é, por assim dizer, submersa na natureza divina, como comenta Scheeben: “Se dentre todos os homens e todos os Anjos escolhesse Deus uma só alma, para comunicar-lhe o esplendor de tão inesperada dignidade, […] deixaria estupefatos não só os mortais, mas ainda os mesmos Anjos, que se sentiriam quase tentados a adorá-la, como se fora Deus em pessoa”.8 Tal é a excelência da filiação divina!

Uma semente da glória futura

   Filhos de Deus… “nós o somos! Se o mundo não nos conhece é porque não conheceu o Pai. Caríssimos, desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que seremos” (I Jo 3, 1b-2a). De fato, enquanto permanecemos neste mundo, em estado de prova, temos a graça santificante, recebida no Batismo, e as graças atuais, que Deus derrama sobre nós ao longo da nossa existência. Todavia, estamos apenas no começo do caminho, pois, só quando contemplarmos a Deus face a face, esta graça se transformará em glória e chegaremos ao “estado de homem feito, a estatura própria da maturidade de Cristo” (Ef 4, 13).

A ideia da felicidade eterna

   Esta é a felicidade absoluta da qual nossos irmãos, os Santos, já gozam em plenitude na eternidade e com a qual nenhuma consolação desta vida é comparável. Nossa ideia a propósito da felicidade é tão humana, que julgamos, muitas vezes, possuí-la em grau máximo ao obter algo que muito desejamos. A mera inteligência do homem não alcança a compreensão da felicidade do Céu, pois em relação a Deus somos como formigas que, andando pela terra, levantassem a cabeça para olhar o voo de uma águia no céu. A diferença entre uma formiga e uma águia é ridícula perto da infinitude existente entre a razão humana e a inteligência divina. E ainda que, dotados de uma capacidade incomum, passássemos trezentos bilhões de anos estudando, nosso verbo continuaria falho e não encontraríamos termos para nos expressarmos devidamente a respeito de Deus.

   A essência divina é definida pela teologia como o Ser subsistente por Si mesmo,9 que Se conhece, Se entende e Se ama por inteiro, tal qual é.10 Desde toda a eternidade, isto é, sem haver princípio, Deus, contemplando-Se, Se compreende inteiramente enquanto Ser incriado, necessário e superexcelente, que não depende de ninguém, que se basta; e nisto consiste sua felicidade absoluta. Contudo, seu próprio conhecimento é tão rico que gera uma Segunda Pessoa, o Filho, idêntico a Ele e tão feliz como Ele. Ambos Se amam, e deste mútuo amor entre Pai e Filho procede uma Terceira Pessoa, também feliz: o Espírito Santo. Assim, há três Pessoas, num só Deus, a Se conhecerem, Se entenderem e Se amarem, numa perpétua alegria, sem origem no tempo e sem fim, eternamente!

Um empréstimo da inteligência divina

   Pois bem, em seu infinito amor, Deus quis dar às criaturas inteligentes, Anjos e homens, um empréstimo de sua luz intelectual, o lumen gloriæ, para que possam nela entendê-Lo tal qual Ele Se entende – guardadas as proporções entre criatura e Criador -, já que, segundo explica São Tomás, “a capacidade natural do intelecto criado não basta para ver a essência de Deus” sem ser aumentada pela “graça divina”. 11 E por mais que seccione sua luz, Ele sempre permanecerá imutável e em nada será diminuído, pois é infinito.

   O eminente dominicano padre Santiago Ramírez define o lumen gloriæ como “um hábito intelectual operativo, infuso per se, pelo qual o entendimento criado se faz deiforme e torna-se imediatamente disposto à união inteligível com a própria essência divina, e se torna capaz de realizar o ato da visão beatífica”.12

   Esse “fazer-se deiforme” significa que quem entra na bem-aventurança e contempla a Deus face a face se torna semelhante a Ele, como afirma São João na continuação de sua Epístola: “Sabemos que, quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque O veremos tal como Ele é” (I Jo 3, 2b). Só no Céu veremos a Nosso Senhor Jesus Cristo de fato, uma vez que enquanto viveu na Terra ninguém O viu tal qual Ele é. Nem mesmo na Transfiguração, quando tomou, enquanto qualidade passageira, a claridade inerente ao corpo glorioso13 – como tivemos oportunidade de analisar em comentários anteriores -, São Pedro, São Tiago e São João chegaram a contemplar a essência de sua divindade, pois, do contrário, a alma deles ter-se-ia destacado do corpo.

   “Todo o que espera n’Ele purifica-se a si mesmo, como também Ele é puro” (I Jo 3, 3). Quanto mais aumenta em nós a esperança desse encontro e dessa visão, e, portanto, quanto mais crescemos no desejo de nos entregarmos a Deus e de Lhe pertencermos por inteiro na caridade, mais nos purificamos do amor-próprio e do egoísmo profundamente enraizados em nossa natureza. Devemos ter bem presente que não existem três amores, mas apenas dois: o amor a Deus levado até o esquecimento de si mesmo ou o amor a si levado até o esquecimento de Deus.14

III – Sigamos o exemplo daqueles que nos precederam na graça e nos esperam na glória!

   O homem, ainda quando privado da graça, tem uma apetência de infinito que não descansa enquanto não for saciada pela união com Deus. É o que revela Santo Agostinho, em suas Confissões: “E eis que Tu estavas dentro de mim e eu fora, e fora Te procurava; e, disforme como era, lançava-me sobre as coisas belas que criaste. Tu estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de Ti aquelas coisas que, se não estivessem em Ti, não existiriam”.15 Essa felicidade imensa e indescritível, para a qual todos nós somos criados, só a atingiremos seguindo os passos daqueles que nos precederam com o sinal da Fé e que já gozam dela, por sua fidelidade a tal chamado.

   Peçamos que essa bem-aventurança eterna seja também para nós um privilégio, pelos méritos de Nosso Senhor Jesus Cristo, das lágrimas de Nossa Senhora e da intercessão de todos os Santos que hoje comemoramos, a fim de um dia nos encontrarmos em sua companhia no Céu. Enquanto lá não chegarmos, podemos nos relacionar com essa enorme plêiade de irmãos celestes, membros do mesmo Corpo, por um canal direto muito mais eficiente do que qualquer meio de comunicação moderno: a oração, o amor a Deus e o amor a eles enquanto unidos a Deus. Tenhamos a certeza de que, do alto, eles nos olham com benevolência, rogam por nós e nos protegem. (Revista Arautos do Evangelho, novembro/2013, n. 143, p. 10 à 17)

 
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