“Diante de Deus não conta a idade, só a simplicidade e o amor” |
Meu nome é Guido. Sou sacerdote e vivo num povoado da Amazônia, ao qual só é possível chegar em barco, saindo de Santarém.
Certa tarde, dessas nas quais o úmido calor da floresta parece nos sufocar, encontrava-me recostado entre duas árvores, em frente à igreja, tentando descansar, quando, de repente, senti a mãozinha de uma criança me tocando o braço e ouvi:
— Padre, minha avó está muito mal… Seu corpo está perdendo as forças e quero que ela receba os Sacramentos para poder entrar tranquila no Paraíso.
Meio transtornado me levantei, fui até o sacrário, recolhi uma partícula consagrada numa teca e segui pela estrada, ou melhor, pela picada que a menina trilhava, em direção a outro vilarejo, distante cinco quilômetros dali.
Durante o longo percurso, de tempos em tempos, a pequena rompia o silêncio com alguma afirmação singular, revelando uma maturidade muito acima dos poucos oito anos que ela aparentava:
— Se soubésseis, padre, como é Aquele que portais nesta teca sagrada, vos emocionaríeis de alegria…
Transcorrido certo tempo, ela deu um leve toque em minha mão, e com sua terna voz infantil acrescentou:
— Sabeis, padre, que quando uma criança morre depois da Primeira Comunhão vai direto para o Céu?
Eu pensava maravilhado: “Quem terá sido a catequista que deu a esta menina tão excelente formação?”. Contudo não lhe dizia nada e escutava com boa vontade seus comentários, assentindo afirmativamente com a cabeça.
Como eu fizesse sinal de apertar o passo, a pequena reclamou:
— Padre, padre, não corrais tanto! Falemos de Jesus. É muito bonito falar sempre d’Ele!
Ao ouvir isto, não pude me conter e perguntei:
— Menina, como podes saber tanta coisa em tão tenra idade?
Ela me disse:
— Ah! Diante de Deus não conta a idade, só a simplicidade e o amor. Jesus Se revela aos pobres de espírito. E também aos grandes, quando se tornam como os pequeninos.
Neste momento fez-se um silêncio mais prolongado, e dentro de mim tudo não era senão confusão. Passados alguns instantes ela indagou:
— Padre, estais contente de ser missionário?
— Sim, sim… Ainda que me esteja custando muito esforço – confessei, meio encabulado.
Ela me respondeu:
— Se uma vocação não é seriamente praticada, é uma vocação fracassada…
Algo me impeliu a confidenciar-lhe minha provação:
— Quando parti da Itália para vir para cá em missão, estava cheio de entusiasmo. Meu pároco fez soar os sinos do campanário como em festa, para agradecer o dom que o Senhor estava dando à paróquia, e eu estava feliz por ter a alegria de me entregar por inteiro. Fiz uma longa viagem e cheguei aqui, na Amazônia. Os primeiros contatos e o convívio entusiasmado entre os missionários me animavam! Porém, depois… as dificuldades passaram a me pesar muito! Os grandes e os pequenos problemas, as condições precárias, o clima, a alimentação, as pessoas e mesmo minha comunidade se me tornaram enfadonhos. Numa tarde, até me dirigi à igreja, não para rezar, apenas para perguntar a Deus: o que vim fazer aqui? Por que estou num lugar tão difícil?…
A pequena se limitou a dizer:
— Sim, padre, como os hebreus resmungaram com Moisés: “Por que nos trouxeste a este deserto?”…
Diante de comentário tão sábio e certeiro, exclamei:
— Como é possível que tenhas respostas tão superiores à tua idade?
Ela me retorquiu:
— Porque Jesus me instrui. E Ele me pediu para vos dizer que, em vossa vida, vós só procurastes agradar a vós mesmo e a estima dos homens.
Ao me deparar com aquela figura, identifiquei a menina que me acompanhara! |
Fiquei como que petrificado e, à maneira de um relâmpago, vi passar diante de mim todas as graças que recebi, correspondidas e não correspondidas, todos os encantos com minha vocação, os enlevos com a vida religiosa…
Nisso, chegamos. A menina correu pelo jardim e desapareceu. Ao bater à porta, me abriu uma senhora jovem, que perguntou:
— Padre, que deseja nesta casa?
— Senhora, me fizeram caminhar muitos quilômetros por difíceis trilhas para trazer aqui o Viático. Não há em sua casa uma anciã que deseja recebê-lo?
— Ah, sim! Venha, padre, venha…
Uma pobre idosa se encontrava acamada e, ao ver-me, seu rosto se iluminou:
— Padre, quanto tempo o esperei!
Administrei-lhe os Sacramentos e ela dormiu profundamente. Pus-me a conversar um pouco com a senhora jovem, que me disse estar revoltada contra Deus e, por isso, há muitos meses não ia à Igreja.
Para desanuviá-la um pouco, comentei:
— A senhora precisa conversar com a menina que me acompanhou até aqui… Vou chamá-la no jardim.
Irritada, ela desabafou:
— Não há nenhuma menina aqui! Havia uma… Mas fez a Primeira Comunhão e logo depois Deus a levou, deixando-me triste e sozinha.
Tomou de cima da cômoda, então, uma foto e mostrou-a, dizendo tratar-se de sua falecida filha. Ao me deparar com aquela figura, identifiquei a menina que me acompanhara durante todo o trajeto! Caí de joelhos diante daquele enorme mistério da graça, lembrando-me de tudo o que a pequena dissera, muitíssimo tocado.
A mãe também se emocionou e pediu para se confessar, prometendo, daí em diante, a nunca mais faltar à Missa aos domingos e dias santos de guarda.
Contente e meditativo voltei para minha comunidade, a passos lentos. Transcorridas algumas horas, através de um mensageiro soube que a anciã havia falecido. Ainda ressoava em meus ouvidos aquela voz infantil e cheia de ternura:
— Padre, quero que minha avó receba os Sacramentos para poder entrar tranquila no Paraíso.
* * *
Caro leitor, esta história que acabo de narrar a ouvi numa viagem à Amazônia, e a transmito tal como recebi, mudando apenas alguns nomes e detalhes concretos.
Será verídica? Não o posso garantir. Mas é, sem dúvida, muito edificante, pois fala-nos do Santíssimo Sacramento, da felicidade do Céu e do incalculável valor de qualquer trabalho missionário em benefício das almas. (Revista Arautos do Evangelho, Novembro/2016, n. 179, pp. 46 à 47)