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História da Igreja


A Igreja, Corpo Místico do Homem-Deus
 
AUTOR: DIANA COMPASSO DE ARAÚJO
 
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Do alto da Cruz, Cristo resgatou a humanidade e fez-nos co-herdeiros da vida sobrenatural, integrando-nos numa sociedade mística cuja constituição é análoga à de seu Corpo natural: a Santa Igreja.

Imaginemos uma gota d’água que cai do céu sobre certa árvore. Ela pousa sobre uma das folhas, fazendo-a balançar levemente, para logo se deslocar até o seu extremo e se precipitar em queda livre na superfície espelhada de um pequeno lago. Ao se incorporar àquele corpo aquático, origina uma sé- rie de ondas concêntricas que vão aumentando em diâmetro até alcançarem suas bordas.

   Ou podemos também imaginar um glóbulo vermelho que percorre os vasos sanguíneos de um ser humano. Impulsionado pelo coração, ele recebe oxigênio nos pulmões e o conduz, purificado, para as outras partes do corpo.

Missa dominical na Casa Lumen Maris,
Ubatuba (SP); na página anterior,
Crucifixo da Casa Rei Davi, Mairiporã (SP)

   Tendo em vista estas duas imagens, poder-se-ia concluir que ambas são insignificantes, por refletirem fenômenos comuns e corriqueiros que ocorrem junto a nós. Ora, qualificá-los assim seria dar prova de superficialidade, porque, aos olhos de um ser dotado de inteligência, tudo o que acontece na ordem da criação obedece às sapiencialíssimas leis do Criador e acaba por simbolizar uma realidade superior à mera natureza.

Um grande espelho do Criador

   Esta afirmação pode parecer gratuita, pois será que realmente tudo o que existe na esfera material está tão relacionado com o mundo sobrenatural?

   A resposta é sem dúvida afirmativa, porque, conforme ensina o Catecismo da Igreja Católica, o universo é um grande espelho do Criador: “Deus criou o mundo para manifestar e comunicar a sua glória. Que as criaturas partilhem da sua verdade, da sua bondade e da sua beleza, eis a glória para a qual Deus as criou”.1

   Deste modo, “todas as criaturas são portadoras duma certa semelhança de Deus, muito especialmente o homem, criado à imagem e semelhança de Deus. As múltiplas perfeições das criaturas (a sua verdade, a sua bondade, a sua beleza) refletem, pois, a perfeição infinita de Deus”.2

   Toda a criação, plasmada pelo Altíssimo, teve como princípio a Ele mesmo, enquanto Trindade Santíssima, conforme põe em realce ainda o Catecismo: “Deus, que criou o universo, mantém-no na existência pelo seu Verbo, ‘o Filho tudo sustenta com a sua palavra poderosa’ (Hb 1, 3), e pelo seu Espírito Criador que dá a vida”.3

Cristo: Cabeça e modelo da Igreja

   Por isso, no início dos tempos todas as criaturas eram belas e santas. O homem, perfeitamente equilibrado pelo dom de integridade, vivia no Paraíso, gozando da amizade de Deus. O pecado de nossos primeiros pais, entretanto, maculou a criação e destruiu a harmonia original. Tornou-se necessário que a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, unindo-Se à natureza humana, a redimisse e elevasse: “O Verbo Se fez carne e habitou entre nós” (Jo 1, 14).

   E do alto da Cruz, o Homem-Deus resgatou a humanidade, comprou-nos a graça com seus méritos, fez-nos co-herdeiros da vida sobrenatural e integrou-nos numa sociedade mística cuja constituição é aná- loga à de seu Corpo natural: a Santa Igreja.

   Ela foi formada tomando a Cristo por modelo e tendo-O por Cabeça. Nós, “embora sejamos muitos, formamos um só Corpo em Cristo, e cada um de nós é membro um do outro” (Rm 12, 5), ensina o Apóstolo. Deste Corpo Místico fazem parte todos aqueles que foram beneficiados pela Redenção.

Os membros do Corpo Místico de Cristo

   O fato de existir esta analogia entre a Igreja e o corpo humano não significa, porém, que não haja importantes diferenças entre ambas as realidades. São Tomás de Aquino aponta como a primeira delas o fato de os membros do corpo natural se encontrarem todos juntos concomitantemente, o que não sucede com os membros deste Corpo Místico. Nele estão compreendidos homens de todas as eras: desde os primórdios da humanidade até os últimos séculos, pois, como afirma São Paulo, Deus “nos abençoou com toda a bênção espiritual em Cristo, e nos escolheu n’Ele antes da criação do mundo” (Ef 1, 3-4).

   Contudo, explica o Doutor Angélico que até entre aqueles que são contemporâneos não há simultaneidade na ordem da graça: “Alguns não possuem a graça que depois terão, outros já a possuem. Por conseguinte, não se entendem como membros do Corpo Místico apenas os que o são em ato, mas também os que o são em potência”.4

   A distinção pode parecer demasiado abstrata. Não obstante, no pensamento do Aquinate tudo tem uma profunda razão de ser. Com esta formulação ele frisa a situação dos membros da Igreja que, por terem pecado gravemente, já não possuem a graça: eles não fazem parte em ato desta sociedade mística, mas sim em potência, na medida em que podem recuperar a vida divina recorrendo ao Sacramento da Reconciliação.

   Outrossim, do Corpo Místico de Cristo fazem parte os Bem-aventurados e os Anjos, que estão fora do tempo e pertencem à Igreja gloriosa. “Os homens e os Anjos ordenam-se a um único fim, que é a glória da fruição divina. Daqui se segue que o Corpo Místico da Igreja compõe-se não somente dos homens, mas também dos Anjos. De toda essa multidão, Cristo é a Cabeça”.5

   Assim sendo, explica ainda São Tomás, Nosso Senhor é, em primeiro lugar e como parte principal, a “Cabeça daqueles que a Ele estão unidos em ato pela glória. Em segundo lugar, dos que a Ele estão unidos em ato pela caridade. Em terceiro, dos que a Ele estão unidos em ato pela fé. Quarto, dos que estão unidos a Ele apenas em potência”.6

Um Corpo que também tem Alma

   De forma análoga ao homem, constituído de corpo e alma, a Igreja possui uma Alma: o Espírito Santo.

   Em sua Encíclica Mystici Corporis, Pio XII afirma que “a esse Espí- rito de Cristo, como a princípio invisível, deve atribuir-se também a união de todas as partes do Corpo, tanto entre si como com sua Cabeça, pois Ele está todo na Cabeça, todo no Corpo e todo em cada um dos membros”.7

   Vale a pena notar que o Espírito Paráclito não age apenas sobre os que já são membros efetivos do Corpo Místico, como também prepara de forma misteriosa e divina aqueles que virão a fazer parte dele. Nesse sentido, escreve o Pe. Emilio Sauras, célebre teólogo tomista: “A uns anima e vivifica em ato; a outros, em potência”.8 E depois acrescenta: “A graça que cada um recebe, seja santificante ou simplesmente preparatória, lhe vem de Cristo Cabeça; mas é o Espírito quem a dá e quem com ela chega ao membro que a recebe, aperfeiçoando-o mais, ou menos, na medida do dom que comunica. A uns chegará e os vivificará; são os membros em ato. A outros chegará e não os vivificará, porém os disporá para a vivificação”.9

Pentecostes, por Jaime Huguet
-Museu de Valladolid (Espanha)

Imensa responsabilidade de cada batizado

   Para fazer parte deste Corpo Místico, que é a Igreja, três são as condições indispensáveis: haver recebido as águas regeneradoras do Batismo, professar integramente a verdadeira Fé, e não haver se separado dela voluntariamente ou ter sido dela cortado por legítima autoridade, pela excomunhão, em razão de gravíssimas culpas.10

   Sob a perspectiva que lhe é pró- pria, o Concílio Vaticano II esclarece: “São plenamente incorporados à sociedade que é a Igreja aqueles que, tendo o Espírito de Cristo, aceitam toda a sua organização e os meios de salvação nela instituídos, e que, pelos laços da profissão da Fé, dos Sacramentos, do governo eclesiástico e da comunhão, se unem, na sua estrutura visível, com Cristo, que a governa por meio do Sumo Pontífice e dos Bispos”.11

   Ao analisar este excerto, o Pe. Royo Marín põe em realce a responsabilidade de cada um dos batizados pelo que acontece no conjunto deste Corpo Místico, afirmando com segurança: “Na Igreja tudo é social e coletivo”.12

   Todas as ações ou omissões do cristão, boas ou más, repercutem de maneira inevitável no conjunto, fazendo-o aumentar ou diminuir em sua vitalidade sobrenatural. Qualquer ato de virtude realizado, por menor que seja, eleva o nível sobrenatural da Igreja inteira. E qualquer pecado, ainda que venial, “diminui e retalha algo da vida divina que Cristo nos mereceu com seu Sangue precioso e que circula incessantemente pelas veias da Igreja. Tremendo mistério, tão sublime em seu aspecto positivo quanto aterrador no negativo!”13

   Comentando a misteriosa participação de atos e omissões dentro do Corpo Místico, o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira salienta que “todo mérito que adquirimos representa não só um enriquecimento para nós, mas para a Igreja inteira. A contrario sensu, toda graça que míngua ou se extingue num homem empobrece toda a Igreja. No fato de os méritos e deméritos de alguém projetarem efeitos sobre outros homens consiste o dogma da Comunhão dos Santos”.14

   E para aprofundar nesta importante verdade, ele acrescenta: “Os méritos infinitamente preciosos de Jesus Cristo, e nossos méritos, constituem, pela Comunhão dos Santos, o capital da sociedade sobrenatural que é o Corpo Místico. Esse capital é designado pelo nome de ‘tesouro da Igreja. […] Cada vez que alguém resiste a uma tentação, toma uma resolução virtuosa, faz uma oração, pratica um ato de penitência ou uma obra de misericórdia espiritual ou temporal, acresce o tesouro da Igreja”.15

A gota, o glóbulo e o Corpo Místico

   Feitas essas considerações, retornemos agora às imagens que deram início ao presente artigo, procurando interpretá-las dentro de nosso contexto.

Nossa Senhora de Paris Casa Rei Davi,
Mairiporã (SP)

   A pequena gota que imaginamos caindo numa árvore, para dela escorregar e mergulhar num lago, pode ser comparada aos atos de cada um dos batizados que, após produzir breves efeitos no mundo material, representado pela folha da árvore, repercute com força no mundo sobrenatural ao qual o homem está destinado, figurado pelas ondas concêntricas na água.

   O glóbulo vermelho, no entanto, nos mostra como um ato bom traz benefícios para quem o pratica e para o corpo inteiro, que é por ele purificado e vivificado, em virtude da força de mútua coesão, pois esta, “por mais íntima que seja, une os membros de modo que conservam perfeita e própria personalidade”,16 como descreve Pio XII na mencionada encíclica, congregando-os para proveito de todos e de cada um, pela ação do Espírito Santo.

Maria: vínculo que nos liga a Cristo

   Cristo é, como vimos, modelo e Cabeça da Igreja, a qual, pela ação do Espírito Santo, complementa e plenifica sua ação redentora. “A Cabeça mística que é Cristo, e a Igreja, que é na terra como outro Cristo e faz as suas vezes, constituem um só homem novo, em quem se juntam o Céu e a terra para perpetuar a obra salvífica da Cruz; este homem novo é Cristo Cabeça e Corpo, o Cristo total”.17

   E assim como há no homem um membro que liga a cabeça ao resto do corpo natural, o pescoço, não se poderia deixar de mencionar aqui Maria Santíssima, vínculo que liga Cristo aos seus outros membros.

   Instrumento para a Encarnação do Verbo e Medianeira de todas as graças, Ela está acima das demais criaturas. Tendo gerado o Filho Unigênito do Pai, gera também no plano sobrenatural todos os outros filhos de Deus. Maria é o hífen que une o mundo natural ao sobrenatural, o ápice da excelência da criação, modelo de completa união da criatura com o Criador, reflexo, tão perfeito quanto possa caber em um ser criado, da infinita beleza, verdade e bondade divinas. (Revista Arautos do Evangelho, Janeiro/2018, n. 193, pp. 22 à 25)

1 CCE 319. 2 CCE 41. 3 CCE 320. 4 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.8, a.3. 5 Idem, a.4. 6 Idem, a.3. 7 PIO XII. Mystici Corporis, n.55. 8 SAURAS, OP, Emilio. El Cuerpo Místico de Cristo. Madrid-Valencia: BAC; Biblioteca de Tomistas Españoles, 1952, p.739. 9 Idem, ibidem. 10 Cf. PIO XII, op. cit., n.21. 11 CONCÍLIO VATICANO II. Lumen gentium, n.14. 12 ROYO MARÍN, OP, Antonio. Teología de la perfección cristiana. 6.ed. Madrid: BAC, 1988, p.109. 13 Idem, ibidem. 14 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Corpo Místico de Cristo e Comunhão dos Santos. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano VI. N.58 (Jan., 2003); p.28. 15 Idem, ibidem. 16 PIO XII, op. cit., n.59. 17 Idem, n.77.

 
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