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História da Igreja


Dois diários espirituais, duas formas de martírio
 
AUTOR: DIÁC. THIAGO DE OLIVEIRA GERALDO, EP
 
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Separados pela distância de 18 séculos, dois diários espirituais nos narram duas formas diferentes de alcançar o mesmo objetivo: a santidade.

Após a morte de Alexandre Magno, em 323 a.C., o vasto império por ele conquistado acabou sendo dividido em quatro partes. A região oriental ficou sob o domínio de Seleuco Nicator, um de seus mais destacados generais. Tomando por base Babilônia, ele construiu em pouco tempo o Império Selêucida, que abrangia um amplo território do Mar Mediterrâneo até o rio Indo. Por volta do ano 300 a.C., Antioquia passou a ser sua capital.

 Quando quase dois séculos e meio depois, em 64 a.C., os romanos conquistaram o Oriente Médio, Antioquia tornou-se a capital da província romana da Síria e a terceira cidade mais importante do império, perdendo apenas para Roma e Alexandria.

 Na época de Nosso Senhor ­Jesus Cristo, a cidade contava com cerca de 500 mil habitantes, entre sírios, arameus, judeus e gregos. A imensa muralha que a circundava era protegida por 300 torres. Poderosa e formosa, Antioquia podia se orgulhar de ser a principal da região.

Um menino abraçado por Jesus

O ódio do imperador romano ficou sepultado na História; o
amor do Bispo de Antioquia vive eternamente com o Salvador
Martírio de Santo Inácio de Antioquia – Basílica de São Clemente,
Roma

 A região da Palestina também fazia parte dos territórios acrescentados pelos romanos a seu império. Dentre as cidades por eles subjugadas ao redor do Mar da Galileia, contava-se um singelo povoado de pescadores, cujas casas eram construídas com grandes pedras negras: Cafarnaum. Ali Nosso Senhor realizou muitas das suas obras.

 Certa vez, voltando do monte da Transfiguração, chegava Jesus com seus Apóstolos à cidade e, sabendo que haviam discutido quem deles era o maior, perguntou-lhes: “De que faláveis pelo caminho?” (Mc 9, 33). A melhor resposta que encontraram foi o silêncio, pois estavam com vergonha de si mesmos e de seus pensamentos pouco voltados a Deus, que tinham diante de si…

 Com sua grandeza adorável, Nosso Senhor sentou-Se e, chamando os Doze, ensinou: “Se ­alguém quer ser o primeiro, seja o último de todos e o servo de todos” (Mc 9, 35). E a fim de tornar vivo este ensinamento, transmitido em tantas outras ocasiões, o Divino Mestre colocou um menino no meio dos Apóstolos, abraçou-o e disse-lhes: “Todo o que recebe um destes meninos em meu nome, a Mim é que recebe; e todo o que recebe a Mim, não Me recebe, mas Aquele que Me enviou” (Mc 9, 37).

 Tão singelo episódio acontecido numa rústica cidade de pescadores tornou-se exemplo de humildade e paradigma de tal virtude para todos os séculos. E a criança que teve a imensa graça de ser abraçada pelo próprio Salvador, segundo uma linda tradição, veio a ser um dos maiores Santos dos tempos apostólicos: Inácio, o Bispo de Antioquia.

A inocência perseguida pela vilania

 Este menino, especialmente estimado por Nosso Senhor, fez-se seguidor do Apóstolo São João, o Discípulo Amado, e tornou-se depois o segundo ou terceiro Bispo de Antioquia, cidade onde pela primeira vez os seguidores de Jesus Cristo receberam o “nome de cristãos” (At 11, 26).

 Foi também em Antioquia que São Paulo e São Barnabé alcançaram grande sucesso no apostolado com os pagãos. E esta será a capital de onde partirão as primeiras missões evangelizadoras.

 Por desígnios da Providência, Santo Inácio aí estabeleceu um governo longo e admirável sobre o rebanho da Igreja e exerceu-o até o momento em que o imperador Trajano, estando no Oriente, mandou dez soldados conduzirem o venerável Bispo até Roma a fim de ser martirizado no anfiteatro Flávio, o famoso Coliseu.

 Aquele menino inocente, modelo de humildade para os Apóstolos, passa a ser barbaramente perseguido por ser bom, por ser católico autêntico, por ser um Santo! É a inocência perseguida pela vilania, o ódio gratuito do mal contra o bem.

Diário espiritual de uma viagem

 Numa época em que não havia meios rápidos de locomoção, podemos imaginar a aflição de alguém preso de maneira injusta, que percorre a estrada da morte rumo a um fim inevitavelmente trágico. Se pudéssemos obter um diário dos pensamentos desta pessoa, sobretudo sabendo tratar-se de um Bem-aventurado, seria um verdadeiro tratado de espiritualidade.

 Tal foi o valiosíssimo legado que nos deixou Santo Inácio, pois, estando nessas circunstâncias, utilizava as paradas para redigir cartas às diversas igrejas, às quais queria dar um conselho ou dirigir uma exortação.

 Das sete cartas por ele escritas, e que até hoje se conservam, interessa-nos em particular a dirigida aos romanos. Sendo a capital do império o lugar onde vai morrer, o santo Bispo trata de forma especial nesta missiva do tema martírio. Única de suas cartas datada, foi ela escrita em 24 de agosto, provavelmente do ano 107 d.C., valendo-se da pausa que os soldados fizeram na cidade portuária de Esmirna.

 Usando uma linguagem metafórica, Santo Inácio revela como estava transcorrendo sua viagem: “Desde a Síria até Roma, luto contra as feras, por terra e por mar, de noite e de dia, acorrentado a dez ­leopardos, a um destacamento de soldados; quando se lhes faz bem, tornam-se piores ainda”.1

“Deixai que eu seja pasto das feras”

“Eu quero obedecer sempre, para comprazer
a Maria Santíssima até a morte” – Nossa
Senhora do Bom Sucesso Casa Monte
Carmelo, Caieiras (SP)

 Agrilhoado por amor a Nosso Senhor, o Santo afirma que o principal motivo pelo qual escrevia aos romanos era dissuadi-los de intervir em seu julgamento para tentar libertá-lo dos suplícios. Era justamente o que ele não desejava: “Escrevo a todas as igrejas e anuncio a todos que, de boa vontade, morro por Deus, caso vós não me impeçais de o fazer. Eu vos suplico que não tenhais benevolência inoportuna por mim”.2

 Como pode uma pessoa não ter medo da morte? Santo Inácio tinha plena consciência dos ­tormentos pelos quais poderia passar, mas nada o afligia tanto quanto sentir-se longe do Divino Mestre: “Não me impeçais de viver, não queirais que eu morra. Não me abandoneis ao mundo, não seduzais com a matéria quem quer pertencer a Deus”.3

 De fato, seu desejo foi atendido. Ao ser devorado pelas bestas ferozes, como ele mesmo profetizara, sua alma inocente reencontrou quem lhe abraçara quando era apenas um menino: “Deixai que eu seja pasto das feras, por meio das quais me é concedido alcançar a Deus. Sou trigo de Deus, e serei moído pelos dentes das feras, para que me apresente como trigo puro de Cristo”.4

 O ódio vão do imperador romano ficou sepultado na História; o amor do venerável Bispo de Antioquia, contudo, vive eternamente com o Salvador. A grandeza da Igreja de Cristo sobrepujou os poderes da época, mostrando quem tem o real controle dos acontecimentos: “O Cristianismo, ao ser odiado pelo mundo, mostra que não é obra de persuasão, mas de grandeza”.5 É uma grandeza que começa no espírito de pessoas como Santo Inácio e que acaba por influenciar e transformar toda a sociedade.

Outro gênero de martírio

 Ora, nem todas as almas possuem sua envergadura de alma. São decerto muito poucas as que conservam uma inocência semelhante à dele. Por vezes pode faltar a coragem, não de sofrer o martírio, senão de vencer um pecado ou um vício e, paradoxalmente, começa-se a viver um verdadeiro martírio interior, em que a besta que nos dilacera mora dentro nós e é muito pior do que as feras do Coliseu.

 Nos antigos anfiteatros romanos, aqueles bravos católicos recebiam a graça do martírio, mantendo-se firmes durantes alguns minutos em que lhes eram desferidos os golpes dos animais famintos, e logo abriam os olhos para a realidade eterna. No martírio espiritual, a vitória parece estar sempre longe. Quanto mais se luta contra a fera interior, mais ela aparenta invencibilidade.

 Como fazer, então, para ser santo? A pergunta se torna constrangedora se considerarmos que a pessoa que está buscando a santidade perdeu sua inocência. Ela não começa do ponto de partida de Santo Inácio, mas de um grau inferior, tornando a batalha ainda mais árdua.

Drama interior escrito numa parede de Roma

 Durante a viagem de um jornalista francês a Roma, em pleno século XIX, um achado inesperado revelou como pode ser este gênero de martírio espiritual. Tal periodista, o famoso Louis Veuillot, passava por um quarteirão deserto da Cidade Eterna e, observando o muro exterior de uma igreja, viu escritos na parede alguns traços bem definidos, com um lápis de carvão. Era o diário do drama de uma alma penitente, que o tempo haveria de apagar.

 Assim se iniciava: “Dia 14 de setembro. Eu me encontro com problemas de saúde por minha falta, pela inquietação e desobediência. Neste momento, 11h da manhã, eu decidi, com a ajuda de Deus e de Maria Santíssima, não mais me atormentar e recuperar a verdadeira paz. São José, rogai por mim”.6

 Esta mão anônima de uma alma aflita acabava de confessar-se incapaz de dominar sua besta interior. Entretanto, tomou a firme resolução de melhorar, com a ajuda de Deus e de Nossa Senhora. Também invocava a venerável figura do Patriarca da Igreja, São José. Se ele cuidou do Menino Jesus, não haveria de cuidar dos membros do Corpo Místico de seu Divino Filho?

 O que este mártir desconhecido quis dizer com inquietação e desobediência? Não se sabe exatamente, mas isso não tem maior importância. Para cada um de nós a fera interior tem um nome diferente – soberba, luxúria, avareza, inveja, etc. – e deveremos vencê-la, com a ajuda de Deus.

Fracasso e perseverança nos propósitos

 Costuma acontecer, porém, que quando a vitória sobre tal fera parece mais próxima, percebe-se no nosso íntimo aquilo que o próprio São Paulo descreve aos romanos de sua época: “Não faço o bem que quereria, mas o mal que não quero” (Rm 7, 19).

 Quantas vezes fazemos bons propósitos e, passado certo tempo, percebemos que pouco ou nada cumprimos das nossas resoluções. Aviva-se, então, nosso drama espiritual, diante do qual é preciso redobrar o empenho de perseverar na virtude, ainda que nos custe o “sangue de alma”.

 Admiravelmente bem descrita é a luta interna na confissão desta pobre alma, ao longo dos meses, aproveitando as horas em que a rua estava deserta para consigná-la naquela parede de pedra: “14 de outubro. Até aqui não consegui cumprir o que escrevi no dia 14 de setembro; mas agora eu decidi executar tudo. 15 de novembro. Eu renovo o que prometi, a fim de o executar. 23 de novembro. Eu falhei, mas me proponho de todo o coração a executá-lo. Hoje, 28 de dezembro. Eu decidi ser bom. Hoje, 31 de dezembro. Eu quero obedecer sempre, para comprazer a Maria Santíssima até a morte”.7

 Quem não percebe nessas frases uma intrepidez de espírito, por vários aspectos superior à de um mártir? Incapaz de obter a vitória por si, cabe-lhe rogar com insistência a Nossa Senhora: que Ela vença por ele e nele! Se a dilaceração do corpo dos mártires deixava suas almas livres para voarem a Deus, neste caso é necessário esvaziar-se de si mesmo, colocando-se inteiramente nas puríssimas mãos da Rainha dos Céus.

Maria nos obtém a coroa da vitória

 O final da história não poderia ser diferente: quem assim confia na Providência, pela intercessão da Virgem Maria, só pode alcançar a vitória desejada.

 Continua o diário de nosso mártir espiritual: “28 de janeiro. Pelo amor de Maria Santíssima não há mais inquietude. E eu o renovo hoje, 1º de fevereiro. 12 de março. Acabaram as inquietudes. 29 de março. Não mais me atormentar e não mais pecar, verdadeiramente”.8

 Com o pendor artístico próprio ao povo italiano, este mártir vencedor expressou seu contentamento desenhando, em cada uma das duas últimas inscrições de seu diário, duas palmas que formavam uma coroa. A coroa da vitória!

 Veuillot ficou emocionado ao ler todas essas confissões feitas por uma alma dilacerada pela provação. Pareciam-lhe ter o perfume das inscrições das catacumbas, onde estão enterrados os primeiros mártires de Cristo.

O caminho para chegar ao Céu

 Na mesma Roma onde o inocente Santo Inácio de Antioquia saíra vitorioso entregando-se aos dentes das feras, vemos, quase 18 séculos depois, uma alma penitente triunfar, libertando-se das garras do demônio com a ajuda de Nossa Senhora.

 O paralelismo entre ambas as situações nos convida a refletir sobre a imortalidade da Santa Igreja. Podem passar os séculos, pode o demônio investir contra a Esposa Mística de Nosso Senhor Jesus Cristo, no entanto a Virgem Santíssima e o Patriarca da Igreja não deixam nunca de amparar as almas que sinceramente querem se santificar.

 Seja pela inocência ou pela penitência, só há um caminho para se chegar ao Céu: vencermos nossa “fera interior”, na renhida pugna para alcançarmos a santidade. Nela não há lugar para atitudes externas vazias de conteúdo; é preciso arder em caridade e no desejo de querer reunir-se com Deus na eternidade. Aqui bem cabe o conselho de Santo Inácio aos romanos: “Não tenhais Jesus Cristo na boca, desejando, ao mesmo tempo, o mundo”.9 (Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2017, n. 182, p. 22-25)

1 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA. Carta aos Romanos, 5, 1. In: PADRES APOSTÓLICOS. 4.ed. São Paulo: Paulus, 2008, p.105.
2 Idem, 4, 1.
3 Idem, 6, 2, p.106.
4 Idem, 4, 1, p.105.
5 Idem, 3, 3, p.104.
6 VEUILLOT, Louis. Le parfum de Rome. L.IX, c.40. 5.ed. Paris: Victor Palmé, 1865, v.II, p.166.
7 Idem, p.166-167.
8 Idem, p.167.
9 SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA, op. cit., 7, 1, p.106.

 
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