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Tesouros da Igreja


Uma arte nascida da Fé
 
AUTOR: JOSÉ MANUEL JIMÉNEZ
 
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A arquitetura medieval, que pontilhou com obras monumentais a Europa cristã, não deve sua existência a nenhum gênio do cálculo estrutural: é uma arte nascida da Fé. E esta virtude é um dom de Deus, não um produto do esforço humano.

Deixamos a autopista e seguimos por uma sinuosa estrada provincial até o mosteiro beneditino de cujo nome já não me recordo. Estávamos viajando pela França, e o amigo que me acompanhava queria confessar-se.

A alameda recoberta de cascalhos nos convidava a pôr de lado a vertiginosa velocidade do mundo moderno e adotar uma outra mais adequada ao intelecto humano. Ou seja, uma velocidade na qual o homem é capaz de assimilar as informações que o ambiente coloca à disposição de sua inteligência.

Quando o veículo se deteve, pudemos ouvir algo que há muito tempo não soava aos nossos ouvidos de habitantes da grande cidade: o canto alvoroçado dos passarinhos. O sol de outono, filtrado pela galharia das árvores, realçava o dourado das folhas que juncavam o solo e nos serviram de macio tapete na curta caminhada até o grande portal de madeira. Em vez de campainha elétrica, encontramos uma argola de ferro na ponta de uma corrente, pela qual tocamos um sino cujo som era harmônico com o gorjeio dos pássaros.

Não tardou a aparecer o irmão porteiro. Meu amigo explicou-lhe o motivo de nossa visita e ele nos convidou a aguardar na igreja monacal a chegada de um monge confessor.

Um templo acolhedor na sua grandeza

Para lá nos dirigimos. Uma certa intimidade cheia de penumbra nos deteve no limiar da porta: foi preciso deixar passar alguns instantes para que nossos olhos, ainda ofuscados pela agressiva luminosidade da rodovia, estivessem em condições de apreciar as maravilhas contidas no interior da igreja.

Ela se apresentava acolhedora na sua grandeza. O granito do piso e das paredes era acariciado pelos multicolores raios de luz dos vitrais. As colunas retilíneas alçavam-se às altas abóbadas ogivais, onde os arcos se cruzavam, formando estrelas em cujo centro se destacavam grandes esculturas.

Após um breve ato de adoração ao Santíssimo Sacramento, caminhamos pela nave central, deixando-nos envolver, também nós, pelas luminosas policromias dos vitrais. O silêncio sonoro do templo vazio respondia ao eco dos nossos passos, convidandonos a avançar.

Nas naves laterais, enfileiravam-se altares simples, monacais, onde, após a solene Missa conventual – celebrada no altar-mor, com nuvens de incenso subindo aos ares e melismas gregorianos acentuando as palavras da Liturgia -, cada monge sacerdote rezava uma Missa particular pelas mais variadas intenções: o bem da Igreja, a paz no mundo, a conversão dos pecadores, a santificação das famílias, a perfeição das pessoas de vida consagrada, o heroísmo dos mártires…

Cada um desses altares rememorava a glória de um asceta, ou uma virgem, um soldado de Cristo, uma alma caritativa, um governante cristão, uma mãe de família… Jerônimo penitente, Inês candidamente virginal, Sebastião impávido guerreiro, Luís o rei bondoso, Mônica a mãe carinhosa… E, claro, vários santos beneditinos que seguiram, na terra, a via espiritual de seu fundador, São Bento: Plácido, Mauro, Odilon, Beda, Anselmo, Escolástica, Hildegarda, Mechtilde, Adelaide…

Catecismos estampados nos vitrais

Chegamos ao centro da igreja. Como tantos outros edifícios góticos, sua nave principal superava amplamente os vinte metros de altura. Ousadias que os arquitetos medievais realizavam com o desprendimento do artista anônimo e sem ambições, cuja obra só tinha uma meta: a glória de Deus e a santificação das almas.

Delimitando por ambos os lados a nave central, três planos se sobrepunham.

Na parte mais baixa, uma sequência de colunas, um tanto desalinhadas, abria espaço para as naves laterais. Acima destas, um andar intermediário “olhava” para a nave central através das janelas do trifório. Nessa estreita galeria, o fiel podia rezar sem ser importunado ou assistir às grandes cerimônias quando o povo cristão lotava o templo a ponto de não caber mais ninguém. E também – por que não? – servia de alojamento para os peregrinos que percorriam quilômetros e quilômetros a pé, dirigindo-se à Terra Santa ou a algum famoso Santuário.

E sobre o trifório, resplandecentes vitrais narravam a passagem de Jesus Cristo por esta Terra, as grandezas de Maria, as epopeias dos santos, e até mesmo a vida cotidiana do mosteiro e da aldeia adjacente. Verdadeiros catecismos estampados no cristal, cujo simbolismo o homem medieval captava em toda a sua profundidade.

Uma escultura que toma vida

Os passos tranquilos de um monge que de nós se aproximava interromperam nossa contemplação. Vestido de ampla túnica de lã, parecia uma figura saída de algum dos vitrais, ou uma daquelas numerosas esculturas que tivesse tomado vida. As ondulações de sua túnica pareciam refletir algo de seus pensamentos e meditações, decorrentes de uma vida de total entrega ao Senhor.

Seu rosto hospitaleiro saudou-nos com um sorriso franco, bem diferente dos cumprimentos estereotipados, tão comuns em nossos dias. Seus olhos claros, profundos, irradiavam a luz interior própria do homem habituado a considerar o mundo em função da eternidade.

– Um dos senhores quer se confessar? Parecia-me ver nele o amor com o qual Deus acolhe nosso pedido de perdão, e a limpidez de seu olhar espelhava a alvura da alma que não foi manchada pelo pecado.

Cada detalhe tem seu simbolismo

Enquanto ele e meu amigo se dirigiam ao confessionário, continuei a deambular; sentia-me em casa, ou talvez, melhor do que em casa. Vinhamme à memória os estudos de Arquitetura, de História, de Filosofia, de Teologia e até de Direito Canônico.

Encontrava-me no centro da nave principal, no ponto onde se abre o cruzeiro. Recordei-me dos detalhes topográficos que os medievais procuravam observar em suas construções.

Naquela época, as igrejas “voltavamse para o Oriente”, ou seja, o altar ficava no lado do sol nascente, enquanto a entrada situava-se a ocidente. As razões simbólicas são várias. Desde a visão de Ezequiel: “Eis que a glória do Deus de Israel chegava do Oriente” (43, 2), até o significado de Jesus “Sol de Justiça” (Mal 3, 20), o qual disse de Si mesmo: “Eu sou a luz do mundo; aquele que Me segue não andará em trevas, mas terá a luz da vida” (Jo 8, 12). Assim, a oração voltada para o Oriente queria indicar que tudo nos vem do Divino Redentor.

Construídos desse modo, nas catedrais do hemisfério norte a iluminação podia acompanhar as diversas fases da oração cristã ao longo do dia. Ao amanhecer, quando os clérigos cantavam Laudes, refulgiam os vitrais da abside, atrás do altar-mor, sobre o qual, logo em seguida, o próprio Jesus Cristo Se faria presente, na Missa conventual.

Ao longo do dia, as janelas laterais iluminavam a nave. E ao entardecer, enquanto os monges cantavam Vésperas, o Sol poente iluminava a fachada principal e resvalava pela última vez, através dos cristais, sobre o altar. E a disposição dos vitrais não é feita ao acaso, mas segundo critérios simbólicos.

Por exemplo, a rosácea norte nunca é banhada pelo Sol; por isso, em seus vitrais são representadas pessoas e cenas do Antigo Testamento, que não conheceram Jesus Cristo, o Sol de Justiça.
Na rosácea sul, ao contrário, iluminada durante todo o dia, vemos cenas do Novo Testamento, onde a Luz de Cristo resplandeceu sobre o mundo.

As rochas se convertem em instrumentos musicais

Mais do que os vitrais, porém, atraíam- me os detalhes arquitetônicos.

Do ponto onde me encontrava, podia constatar que a nave central não era totalmente reta. Segundo me havia explicado em certa ocasião um erudito sacerdote beneditino, isso é feito para indicar a posição da cabeça de Nosso Senhor no alto da Cruz quando, do seu flanco aberto pela lança de Longinos, saíram as últimas gotas de sangue e linfa. Ele já estava morto, e sua cabeça pendia um pouco para um lado. Por isso, a nave do presbitério – que corresponderia à cabeça – não está totalmente alinhada com o conjunto da igreja, que corresponderia ao corpo inerte, pendente do madeiro.

Os arquitetos medievais não eram simples construtores de paredes, mas artistas completos que sabiam conjugar espaço e som. Em certas igrejas góticas, as colunas e paredes são interrompidas, de quando em quando, por capitéis ou cornijas que estudiosos modernos descobriram estar em harmônicas proporções musicais. Assim, o som do canto divino ressoa e repercute nas paredes e colunas, ampliando- se em terças, quintas e oitavas, e criando uma sensação musical excepcional. Parece a voz dos homens que, elevada pela graça, se une à dos Anjos, cantores eternos da glória de Deus nos Céus.

Nas mãos dos artistas góticos, as rochas se convertem em instrumentos musicais que elevam a Deus, em melódica consonância, as orações dos homens e lhes permite perceber um reflexo daquilo que será a vida na eternidade.

Uma arte nascida da Fé

Segundo os historiadores, foi o Abade Suger, de Saint-Denis (1080- 1151), o primeiro construtor que – abandonando as pesadas estruturas românicas, herdadas das edificações pagãs romanas – destacou os arcos de meio ponto que suportavam o peso das abóbadas redondas e lhes deu o característico contorno ogival, cruzando- os em formas adaptadas a qualquer base retangular ou poligonal. E assim pôde distanciar a cúpula de suas bases rochosas, elevando-a ao firmamento, e alçando às formosuras celestes as almas que a contemplam.

A Abadia de Saint-Denis, na qual o Abade Suger aplicou sua inspiração, conserva essas primeiras expressões de uma arquitetura em cuja elegância e esplendor – como bem observou o Servo de Deus João Paulo II na sua Carta aos Artistas – “não existe só o gênio dum artista, mas a alma dum povo. Nos jogos de luzes e sombras, nas formas ora maciças ora ogivadas, intervêm certamente considerações de técnica estrutural, mas também tensões próprias da experiência de Deus, mistério ‘tremendo’ e ‘fascinante'”. 1 Não podemos ter a ingenuidade de pensar que o estilo começado em Saint-Denis é fruto da genialidade de um monge. Devemos ir além, sem nos limitarmos ao horizonte estreito das primeiras impressões colhidas numa leitura apressada da História.

A Fé impõe ao cristão, “tanto no campo da vida e do pensamento como no da arte, um discernimento” 2 que não lhe permite a aceitação automática daquilo que o mundo mais ou menos paganizado oferece.

A arquitetura medieval, que pontilhou com obras monumentais a Europa cristã, não deve sua existência a nenhum gênio do cálculo estrutural: é uma arte nascida da Fé. E esta virtude é um dom de Deus, não um produto do esforço humano.

Procurando refletir o anelo de eternidade

Nos tempos apostólicos, explica João Paulo II na mencionada Carta aos Artistas,”a arte de inspiração cristã começou em surdina, ditada pela necessidade que os crentes tinham de elaborar sinais para exprimirem, com base na Escritura, os mistérios da Fé e simultaneamente de arranjar um ‘código simbólico’ para se reconhecerem e identificarem, especialmente nos tempos difíceis das perseguições”.3 Quando a Igreja, afinal, saiu das catacumbas – escuras, na ótica dos incrédulos, mas refulgentes pelo sangue dos inumeráveis mártires nelas sepultados -, “começaram a despontar majestosas basílicas, nas quais os cânones arquitetônicos do antigo paganismo eram assumidos, sim, mas reajustados às exigências do novo culto”.4 Contudo, a Fé que havia iluminado as almas dos romanos e dos bárbaros não conseguia ainda refletir na pedra, na madeira, no vidro ou no ferro o profundo anelo de eternidade do coração cristão. A venerável arte românica dá um primeiro passo rumo às “grandes construções do culto, onde a funcionalidade sempre se une ao gênio artístico, e este último se deixa inspirar pelo sentido do belo e pela intuição do mistério”.5 Narra a tradição que Clóvis, rei dos francos, ao entrar na catedral de Reims para ser batizado, perguntou a São Remígio: – Pai, isto já é o Céu? Ao que o santo Bispo respondeu : – Não, mas é o caminho que conduz a ele.

Mal podemos imaginar como seria essa igreja na qual São Remígio batizou o monarca bárbaro, em fins do século quinto. Construída sobre antigas termas romanas, compunha-se – segundo as escavações arqueológicas – de uma simples nave retangular de 50 metros de comprimento, culminada numa das suas extremidades pela abside do altar. Talvez ela estivesse decorada com afrescos rudimentares, alguns tecidos preciosos, flores e, certamente, muitas ramagens colhidas nos bosques próximos. Era a pobreza dos tempos vista, porém, com olhos de crente por um neófito inundado de Fé matutina.

Com o gótico, “a força e a simplicidade do românico, expressa nas catedrais ou nas abadias, vai-se desenvolvendo gradualmente”. Nesse estilo arquitetônico, como vimos, não existe só o gênio de um artista, mas a alma de um povo. “Uma cultura inteira, embora com as limitações humanas sempre presentes, impregnara-se do Evangelho, e onde o pensamento teológico realizava a Summa de São Tomás, a arte das igrejas submetia a matéria à adoração do mistério”.6 A matéria submetida e, ao mesmo tempo, elevada acima de si mesma…

Isso é o que sentimos na arquitetura gótica. A áspera rocha que fere o pé do caminhante, a instável areia que nada reflete, convertem-se em floração de colunas altaneiras e capitéis esbeltos, ou de vitrais arrebatadores, através dos quais se manifesta de modo sensível o invisível transcendente que nos circunda.

“Precisamos de homens que tenham o olhar voltado para Deus”

Minhas cogitações foram interrompidas, uma vez mais, pelo ruído de passos. A confissão de meu amigo havia terminado.

Agradecemos ao monge de olhos celestes e saímos, para retornar ao carro, à autopista… ao mundo de hoje.

Queria conservar uma recordação material dessa visita. Agradar-me-ia levar uma daquelas pedras banhadas pelas multicolores luzes dos vitrais, mas tive de contentar-me com uma formosa medalha de São Bento, dada pelo irmão porteiro. Conservo-a até hoje.

Quando a contemplo, lembro-me – além de São Bento, naturalmente – daqueles homens, como os artistas góticos, que, “por meio de uma Fé iluminada e vívida, tornam Deus credível neste mundo”. E vêm-me à memória as reflexões feitas pelo Cardeal Ratzinger em Subiaco pouco antes de ser eleito Papa: “Precisamos de homens que tenham o olhar voltado para Deus, aprendendo aí a verdadeira humanidade. Necessitamos de homens cuja inteligência seja iluminada pela luz de Deus e aos quais Ele abra o coração, de modo que seu intelecto possa falar ao intelecto dos outros e seu coração possa abrir o coração dos demais. Somente através de homens tocados por Deus, pode Deus regressar junto aos homens”.7

Pois, como apontou o próprio Bento XVI, dando continuidade à Carta aos Artistas, de seu venerado predecessor, devemos nutrir o nosso apostolado da beleza proclamada pelo Evangelho: “O nosso anúncio do Evangelho deve ser percebido na sua beleza e novidade, e por isso é necessário saber comunicar com a linguagem das imagens e dos símbolos; a nossa missão cotidiana deve tornar-se eloquente transparência da beleza do amor de Deus, para alcançar eficazmente os nossos contemporâneos, muitas vezes distraídos e absorvidos por um clima cultural nem sempre propenso a acolher uma beleza em plena harmonia com a verdade e a bondade, mas sempre desejosos e nostálgicos de uma beleza autêntica, não superficial e efêmera”. (Revista Arautos do Evangelho, Fev/2009, n. 86, p. 18 à 23)

 
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