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A correção fraterna, grande meio de salvação
 
AUTOR: IR. CÍNTIA LOUBACK, EP
 
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Às vezes, tomamos atitudes erradas por ignorância ou relaxamento, sem percebermos o quanto elas ofendem a Deus. Quando isso sucede, devemos ter por grande benefício que haja quem, por amor e caridade, nos avise delas.

“Se me amais, diz o Senhor, guardareis os meus Mandamentos” (Jo 14, 15). Com esta curta frase o Divino Mestre ensina aos seus a importância do amor para cumprir seus preceitos, mostrando como a caridade deve ocupar um lugar proeminente na vida de todo cristão.

Por causa do pecado de nossos primeiros pais, carregamos as consequências inerentes ao estado de natureza decaída e sentimos quão penosa é a luta contra nossas más tendências. A inclinação para o mal, contrária aos preceitos divinos, é tão arraigada na alma humana que é difícil vencê-la. Por isso exclamou Jó: “A vida do homem sobre a terra é uma luta” (Jó 7, 1).

Importância do apoio colateral

Sim, vivemos num combate permanente, no qual jamais nos é permitido depor as armas. Para o homem, posto neste campo de batalha que é a terra, não há aposentadoria…

Sem embargo, de onde arrancará ele forças para empreender guerra aos seus vícios, comportar-se bem e ir para o Céu? Amando! Diz o Bispo de Hipona: “Dilige, et quod vis fac – Ama e faze o que queres”.1 Amemos a Deus e, sob o fogo da caridade, estaremos aptos para fazer o que quisermos.

A vida prática nos mostra, contudo, que por nós mesmos nada podemos. Não foi sem razão que Deus nos dotou do “instinto de sociabilidade”,2 que nos impele a procurar apoio colateral para quaisquer atos que pratiquemos. O problema está em utilizar-se do convívio humano para fazer sua vontade e cumprir seus Mandamentos, no amor mútuo por amor a Ele, que é a caridade fraterna, de forma que todos se ajudem na subida da montanha sagrada da santidade.

Almoço de bodas em Yport, por Albert Fourié
Museu de Belas Artes, Rouen (França)

Relacionamento social na Antiguidade

Com muita frequência, infelizmente, nossas más paixões nos levam a querer fazer do relacionamento humano um trampolim para satisfazer nossos caprichos. Tal foi o que se deu na Antiguidade, antes da vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, quando o egoísmo penetrava todas as camadas da vida social pagã.

Encontramos alguns dados a esse respeito no Código de Hamurabi, escrito na Mesopotâmia por volta do século XVIII a.C. Entre suas mais comentadas penas está a de “talião” – do latim talis, que significa tal ou igual –, pela qual o revide era feito na mesma proporção da ofensa recebida, sem nenhuma ideia de perdão, tendo em vista uma futura correção. Imaginemos o que seria do convívio humano se ele estivesse ainda vigente…

Poderíamos mencionar ainda outros fatos, como o trato dispensado à mulher, considerada no paganismo como uma criatura inferior, sobre a qual o pai ou o marido tinham até direito de vida e de morte. Tirânico era também o domínio dos pais sobre os filhos: “A criança recém-nascida era apresentada ao pai; se este a levantasse, ela seria criada; se a deixasse no solo, seria abandonada”.3 E se entre os familiares era assim, como eram tratados os escravos? Estes não possuíam direito algum. Eram tidos como simples coisa, que ora serve, ora não presta para nada.

E por mais que entre o povo eleito houvesse certa noção de fraternidade, encontrava-se ela em estado ainda embrionário ou influenciada pelos “grosseiros erros do paganismo”.4 Até a lei de talião era aplicada em certos casos entre os hebreus, devido à sua dura cerviz: “Mas, se houver outros danos, urge dar vida por vida, olho por olho, dente por dente, mão por mão, pé por pé, queimadura por queimadura, ferida por ferida, golpe por golpe” (Ex 21, 23-25).

Verdadeira caridade fraterna

Foi o Divino Redentor quem ensinou a verdadeira caridade fraterna: “Amai-vos uns aos outros, como Eu vos amo” (Jo 15, 12). A máxima divina aplicar-se-ia, doravante, no relacionamento entre pais e filhos, subalternos e superiores, irmãos e irmãs, homens e mulheres, patrões e empregados. Embora esta fosse uma completa novidade para os povos idolátricos, e até para os israelitas, ela representava um aprimoramento da Lei Mosaica, porquanto Nosso Senhor não veio abolir a Lei e os profetas, senão “levá-los à perfeição” (Mt 5, 17).

A partir de então Jesus Se coloca como o próprio parâmetro do amor fraterno. Queria Ele deixar gravado em nossos corações que disso dependia o cumprimento de toda a Lei, como mais tarde o explicitou o Apóstolo: “Aquele que ama o seu próximo cumpriu toda a Lei” (Rm 13, 8).

E por suma caridade para com nossa humanidade, de quem Se quis irmanar ao Se encarnar no seio de Maria Santíssima, fazendo-Se semelhante a nós em tudo, “com exceção do pecado” (Hb 4, 15), durante seus três anos de vida pública não fez mais do que ensinar e corrigir todos os critérios errados do povo de então, com divina caridade e desejo de que “todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (I Tim 2, 4).

Por isso era rigoroso e intransigente para com os que não queriam se arrepender, como os fariseus, protótipos da falta de caridade fraterna: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas! Vós fechais aos homens o Reino dos Céus. Vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar” (Mt 23, 13). E benévolo e compassivo para com as almas que se abriam para a força de seu amor: “Nem Eu te condeno. Vai e não tornes a pecar” (Jo 8, 11).

Cristo com os Apóstolos,
por Duccio de Buoninsegna
Museo dell’Opera del
Duomo, Siena (Itália)

Correção fraterna: desdobramento da caridade

Do dever principal de cada cristão de amar a Deus sobre todas as coisas se desprende o cuidado para com o próximo, que torna suave e prazenteiro o convívio: “Oh, como é bom, como é agradável para irmãos unidos viverem juntos” (Sl 132, 1). Em Cristo todos somos um, mas para que esta irmandade seja afável e autêntica deve estar estabelecida em função do sobrenatural.

A união entre os homens, com as vistas postas em Deus, é necessária para que nossas almas não naufraguem nas tempestades, pois, do mesmo modo como a causa de entrar água em uma nave é o fato de haver frestas entre as tábuas do casco, também a ruína de uma alma é que não esteja bem travada e unida “aos outros com este vínculo de amor e caridade fraterna”.5

O amor ao próximo assim concebido pode se desdobrar de muitas formas e uma delas é a correção fraterna, a qual São Tomás considera “um ato da caridade, mais que o cuidado de uma doença corporal”.6 Pois ela, acrescenta o Aquinate com sua habitual clareza, não consiste apenas em apontarmos algum defeito no próximo, movidos por razões de justiça, senão que consiste principalmente em dar o remédio para uma doença constatada, e “livrar alguém de um mal é da mesma razão que lhe proporcionar um bem”.7

Abre os olhos aos ignorantes ou displicentes

Às vezes tomamos certas atitudes condenáveis por ignorância ou, quiçá, por relaxamento de consciência, sem percebermos quanto elas ofendem a Deus ou favorecem hábitos que podem vir a se transformar em pecado. Acostumamo-nos, então, a praticá-las displicentemente, e não nos damos conta de que elas nos desviam da boa conduta.

Desta maneira, “devemos ter por grande benefício que haja quem, por amor e caridade, nos avise delas; porque, pelo grande amor que temos a nós mesmos, muitas vezes não as vemos nem as consideramos como faltas: o apego e o amor-próprio nos cegam”.8

Assim como uma mãe, por afeição desordenada ao filho, pode querer ver nele como belo o que é feio, e colorido o que é preto, também nós tendemos a “pintar” nossas faltas com belas cores para tentar encobri-las. O amor desregrado a si leva o homem a não ver seus defeitos ou imperfeições e faz-se mister, em consequência, que outros, por caridade, tirem as escamas de suas vistas.

Nosso Senhor assegura que “todo homem que se entrega ao pecado é seu escravo” (Jo 8, 34); e os Salmos acentuam que “uma vaga traz outra no fragor das águas revoltas” (Sl 41, 8). Quer dizer, há um adormecimento dos princípios morais na consciência daqueles que se habituaram a viver no crime. Tais pessoas procuram abafar sua consciência com justificativas que apoiam seu modo errado de agir, e acaba sendo um belo ato de caridade fraterna “abrir-lhes os olhos” para que voltem ao bom caminho.

A quem compete corrigir

Pela caridade, todos os homens estão incumbidos da tarefa de admoestar ao próximo, mas apenas à autoridade legítima compete o múnus de corrigir e de punir, pois isto, segundo o Doutor Angélico, “é um ato de justiça, que visa o bem comum; ele é realizado não somente admoestando o culpado, mas até mesmo punindo-o, para que o temor leve os outros a desistirem do pecado”.9

No que diz respeito à correção que provém da caridade, tanto o superior quanto os subalternos têm a obrigação de corrigir seguindo as regras da prudência. Deve ser o desejo de todos que o próximo esteja bem longe do pecado e não ofenda a Deus, e para isso é bom que se procure levar “à emenda um irmão faltoso mediante uma simples admoestação”.10

São Paulo sendo batizado
por Ananias em Damasco
Basílica de São Paulo
Extramuros, Roma

Para os superiores, a lei da correção fraterna obriga com uma gravidade maior. Aquele que tem a potestade de corrigir e não o faz, peca por omissão e, ademais, participa do erro do outro, tornando-se cúmplice de seu pecado. O superior que corrige seu subalterno mostra, portanto, ter verdadeiro amor por ele, pois “melhor é a correção manifesta do que uma amizade fingida” (Pr 27, 5).

Não obstante, quando sabemos que o culpado não receberá bem a reprimenda e, por conseguinte, será mais prejudicial para ele, podendo gerar a revolta contra a autoridade e, em última instância, a rebelião contra Deus, é melhor esperar, aguardando no silêncio e na oração o momento oportuno propiciado pela graça.

Postura de alma diante da correção

Para bem aceitar uma correção é preciso reconhecer nossas próprias misérias, sabendo que tudo o que fazemos de bom nos vem da graça. A virtude da humildade é, pois, essencial para que as censuras recebidas dos nossos irmãos produzam o devido fruto. Esta virtude, entretanto, tem outra faceta que a complementa.

Humildade é “andar na verdade”,11 ensina Santa Teresa de Jesus. Ao contrário do que muitos pensam, praticá-la não consiste em se rebaixar tanto quanto possível, a ponto de não reconhecer os dons que a Providência gratuitamente nos concedeu.

Quem recebe uma correção deve se pôr em posição de real humildade. Consciente de sua dignidade de filho de Deus, deve escutar as acusações com atenção sem colocar objeções, buscando ser dócil e flexível à voz do Espírito Santo, que o chama à conversão pela voz do irmão. “Repreende o sábio, e ele te amará” (Pr 9, 8), proclama a Escritura.

Foi o caso do Apóstolo São Paulo que, “após ter sido ‘derrubado do cavalo’ e ter ouvido uma voz de timbre a um tempo ameaçador e bondoso, inquirindo-o por sua injusta perseguição, não tardou em exclamar: ‘Senhor, que devo fazer?’ (At 22, 10). Converteu-se no mesmo ato”.12

Eis aqui um valioso princípio para a vida espiritual: aqueles a quem Deus mais ama, submete-os a correções. É o que diz o Livro dos Provérbios: “Meu filho, não desprezes a correção do Senhor, nem te espantes de que Ele te repreenda, porque o Senhor castiga aquele a quem ama, e pune o filho a quem muito estima” (3, 11-12).

Onde obter graças e forças para alcançar a humildade e amar a correção? Na oração, “grande meio de salvação”.13 Concluímos, então, fazendo nossas as palavras de Santo Agostinho: “Nos preceitos reconhece o que deves possuir: na correção confessa o que te falta por culpa tua, na oração aprende de onde deves receber o que desejas ter”.14 É nesse sentido que podemos afirmar ser a correção fraterna, como a oração, um grande meio de salvação! (Revista Arautos do Evangelho, Julho/2018, n. 199, p. 22-25)

1SANTO AGOSTINHO. In Epistolam Ioannis ad Parthos tractatus decem. Tractatus VII, n.8. In: Obras. Madrid: BAC, 1959, v.XVIII, p.304. 2 CÍCERO, Marco Túlio. Da República. L.I, n.25. 3 WEISS, Juan Bautista. Historia Universal. Barcelona: La Educación, 1927, v.III, p.654. 4 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Años primero y segundo de la vida pública de Jesús. Barcelona: Rafael Casulleras, 1930, v.II, p.158. 5 RODRÍGUEZ, SJ, Alonso. Ejercicio de perfección y virtudes cristianas. P.I, trat.4, c.2, n.10. Madrid: Testimonio, 1985, p.192. 6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.33, a.1. 7 Idem, ibidem. 8 RODRÍGUEZ, op. cit., P.III, trat.8, c.1, p.1638. 9 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., a.3. 10 Idem, ibidem. 11 SANTA TERESA DE JESUS. Castelo Interior. Sextas Moradas, c.X, n.7. In: Obras Completas. 2.ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.560. 12 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Amor e castigo se excluem? In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2014, v.III, p.205-206. 13 SANTO AFONSO MARIA DE LIGÓRIO. A oração. 19.ed. Aparecida: Santuário, 2008, p.11. 14 SANTO AGOSTINHO. De la corrección y de la gracia, c.III, n.5. In: Obras. 2.ed. Madrid: BAC, 1956, v.VI, p.137.

 
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