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Catecismo


A nossa sociedade tem conserto?
 
AUTOR: IR. JULIANA MONTANARI, EP
 
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Os grandes problemas sociais de nossa época só serão resolvidos quando a Igreja puder cumprir a missão recebida de seu Divino Fundador e a lei do Evangelho reger todos os povos da terra.

Talvez em nenhuma época da História tenha se debatido tanto sobre problemas sociais, estruturas de poder, sistemas políticos e temas congêneres. Hoje se discute sobre direitos, igualdades e ideologias de uma forma tão profusa e confusa, que corremos o risco de nada mais entender. Um emaranhado de axiomas e conceitos, repetidos de maneira insistente, embaralham nossas cabeças sem que sequer se tenha tempo de conhecê-los melhor.

   Tamanha abundância de ideias e argumentos terá alguma utilidade concreta? Parece que não, pois a maior parte das sociedades modernas caminha de mal a pior… Cresce a insegurança por todos os lados, sente-se saudades da tranquilidade de outrora, esvai-se a verdadeira alegria dos raros lugares onde ainda se encontra.

   Não será o caso, então, de nos determos por alguns instantes para analisar quais devem ser os alicerces de uma sociedade estável e feliz? Ao fazermos juntos este salutar exercício, talvez tenhamos uma surpresa, pois consertar nossos problemas sociais pode ser muito mais simples do que geralmente se pensa.

Deus ama mais o conjunto que os indivíduos

   Ao abrirmos as páginas do Gênesis, chama-nos a atenção a singeleza profunda de seu primeiro versículo: “No princípio, Deus criou o céu e a terra” (1, 1). Esta frase tão curta, que proclama Deus Pai como Criador do universo, é o principal sustentáculo de todos os outros artigos da nossa Fé, reunidos em nosso Credo.

   Ora, a expressão “o céu e a terra” usada no texto sagrado não designa exclusivamente o azul da abóbada do firmamento e a terra da qual tiramos o alimento, senão que abrange todas as criaturas, tanto corporais quanto espirituais. Nessa ampla gama de seres estão incluídos desde o menor grão de areia até a maior das estrelas, do mais insignificante microrganismo ao mais sublime dos Serafins, passando por criaturas as mais diversas, como poderiam ser as cachoeiras, as rosas e, naturalmente, os seres humanos de todas as raças, povos e condições.

   Ao executar sua obra, quis a Divina Providência criar um “universo composto de muitas criaturas para que elas, de um lado pela sua pluralidade, de outro pela sua hierarquização, espelhassem de modo conveniente a perfeição divina”.1 E todos os seres manifestam a presença do Criador, pois “as diferentes criaturas, queridas pelo seu próprio ser, refletem, cada qual a seu modo, uma centelha da sabedoria e da bondade infinitas de Deus”.2

   Tais reflexões nos levam a compreender melhor por que o Altíssimo, ao terminar a obra de cada dia da criação, considera que o que fora feito era bom, mas ao contemplar o conjunto “viu que tudo era muito bom” (Gn 1, 31).

   Com efeito, sempre um conjunto é mais perfeito do que seus elementos tomados individualmente. Uma orquestra, por exemplo, está composta por diversos instrumentos e cada um interpreta sua melodia de acordo com o estabelecido na partitura. Agradável seria escutá-los separadamente, interpretando, uma a uma, todas as partes da peça. Não obstante, só se poderá atingir a perfeição fazendo prevalecescom que a orquestra toque junta, com os timbres dos diversos instrumentos conjugando-se em harmônicos acordes, rivalizando-se em vivazes contrapontos ou fundindo-se discretamente para realçar algum deles que atue como solista. Dentro do conjunto da orquestra um instrumento completa o outro e a linha melódica torna-se grandiosa e bela.

O homem é um ser social

Concerto da Orquestra Mozarteum de Salzburgo, 18/6/2012

   Analogamente é o que se passa com a sociedade. Ela é composta por um conjunto de indivíduos, cada um dos quais é “excelente na sua natureza, dados os descontos do pecado original”. No entanto, “o conjunto dos homens – a sociedade temporal – é mais excelente do que a soma dos indivíduos”.3

 
   Com sua inteligência, o ser humano procura entender aquilo que conhece através da percepção dos sentidos. Este conhecimento, porém, não lhe basta e, movido pela sede de infinito que o abrasa, ele busca a felicidade, estando disposto a qualquer esforço ou sacrifício para alcançá-la.
 
   Ao constatar suas lacunas, contudo, o homem percebe que jamais conseguirá seu objetivo sem ajuda de seus semelhantes. É o “instinto de sociabilidade” 4 que se apresenta, fazendo- o sentir a forte necessidade de manifestar aos outros suas impressões, de entrar em contato com eles para, com sua ajuda, atingir sua verdadeira finalidade: ser feliz.
 
   O homem sabe, portanto, que é contingente e social, e não pode atingir os objetivos que norteiam sua existência sem apoio e auxílio. Em outras palavras, precisa viver numa sociedade na qual prevaleça o mútuo respeito e um grande empenho por parte de todos em fazer o bem.
 
Alicerces da sociedade bem constituída
 

   Tal sociedade pode ser comparada a um enorme edifício, cuja construção exige sólidos fundamentos: sem eles, a menor tempestade ou tremor de terra acarretaria sua ruína. Se, pelo contrário, estiver assentado em alicerces inabaláveis, poderá atravessar os séculos, incólume às intempéries, tendo a glória de haver- -se mantido em pé no meio das mais dramáticas situações.

Quais seriam as bases de uma sociedade bem constituída, em que as relações entre seus membros fossem modelarmente cooperativas e o desejo do bem comum prevaleces-se sobre toda e qualquer individualidade egoísta? Estas só podem consistir na lei natural, cujos princípios morais se encontram gravados no coração de cada homem, como diz São Paulo aos romanos (cf. Rm 2, 14-15), e são salvaguardados, através dos séculos, pela instituição que é a fonte da qual emanam todas as perfeições, por ser a difusora da Nova Lei trazida por Nosso Senhor Jesus Cristo: a Santa Igreja!

   Com razão lembra com nostalgia o Papa Leão XIII aquele tempo em que “a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. […] Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer”.5

   Ora, ao intervir na sociedade, a Santa Igreja não faz outra coisa senão favorecer a realização dos planos divinos ao criar o homem e inseri-lo na ordem harmônica do universo, “poema sinfônico e maravilhoso, como o cântico doce e penetrante de Deus Criador”,6 que Ele governa e mantém.

   Para atingir o seu cume, a ordem temporal deve ser reflexo da sociedade celestial à qual estão destinados os homens que passarem pela prova desta vida terrena. Deus quer que as realidades visíveis correspondam, tanto quanto possam, às realidades imateriais do Céu. Por tal motivo, “nos deu a conhecer as hierarquias celestes, instituindo o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à imitação da celeste, enquanto humanamente é possível”.7

Igualdade e desigualdade à luz da doutrina católica

   No universo ordenado por Deus, as criaturas são necessariamente diferentes em atributos, hierarquia e graus de perfeição, como ensina o Doutor Angélico: “Nas coisas naturais, as espécies parecem estar organizadas por graus. Por exemplo: os corpos mistos são mais perfeitos que os simples, as plantas mais que os minerais, os animais mais que as plantas, os homens mais que os outros animais. E em cada um desses graus encontra-se uma espécie mais perfeita que as outras. Portanto, como a sabedoria divina é causa da distinção entre as coisas para a perfeição do universo, assim também é da desigualdade. Pois o universo não seria perfeito se se encontrasse nas coisas apenas um grau de bondade”.8

   Sem embargo, defender a existência de desigualdades postas pelo próprio Deus na criação para sua devida ordenação é algo que faz estremecer a muitos dos nossos contemporâneos, talvez por terem uma noção errada a respeito do que seja a igualdade. É preciso, então, esclarecer o sentido deste termo analisado sob o ponto de vista católico, e para isso nada melhor do que recorrermos, mais uma vez, aos ensinamentos de Leão XIII, um dos Papas que mais ampla e profundamente descreveu o relacionamento entre Igreja e sociedade.

Cristo, Nossa Senhora e os Bem-
-aventurados, por Giusto de’ Menabuoi
Batistério da Catedral de Pádua (Itália)

   Afirma o ilustre Pontífice: “Segundo as doutrinas do Evangelho, a igualdade dos homens consiste em que todos, dotados da mesma natureza, são chamados à mesma e eminente dignidade de filhos de Deus, e que, tendo todos o mesmo fim, cada um será julgado segundo a mesma Lei e receberá o castigo ou a recompensa que merecer. Entretanto, a desigualdade de direitos e de poder provém do próprio Autor da natureza, ‘de quem toda a paternidade tira o nome, no Céu e na terra’ (Ef 3, 15)”.9

   Vemos, então, que a igualdade entre os homens tem sua origem no fato de serem todos chamados à felicidade eterna, e a desigualdade, na necessidade de, sendo criaturas finitas, refletirem as infinitas perfeições de Deus. Compreendemos, também, que essas desigualdades dão lugar a múltiplas diferenças de grau, pois, sendo os homens distintos, uns serão mais inteligentes, outros mais nobres, outros mais combativos, outros ainda, mais piedosos e dados à oração.

   Em uma sociedade harmonicamente cristã, quem é inferior a outro, sob qualquer aspecto, olha para quem está no degrau superior com admiração, e este procura ajudá-lo a elevar-se rumo à perfeição infinita, que é Deus.

   No ápice deste escalonamento, encontramos o Filho Unigênito de Deus, Nosso Senhor Jesus Cristo que, tendo-Se encarnado e redimido o homem, deixou nesta terra seu Corpo Místico, ao qual pertencem todos os cristãos: a Santa Igreja. Portanto, todas as excelências do mundo criado não são senão representações d’Ele e de sua Igreja, e diante d’Ele as coisas mais grandiosas se tornam pequenas.

Harmoniosa colaboração entre desiguais

  À vista de tais hierarquias de seres e valores, seria absurdo e inútil querer impor na sociedade uma igualdade absoluta entre os indivíduos que a compõem. É o que ensina ainda Leão XIII: “Ninguém duvida que todos os homens são iguais uns aos outros, tanto quanto se refere à sua origem e natureza comuns, ou o fim último que cada um deve atingir, ou os direitos e deveres que são daí derivados. Mas, como as habilidades de todos não são iguais, como um difere do outro nos poderes da mente e do corpo, e como há realmente muitas dessemelhanças de maneiras, disposição e caráter, é extremamente repugnante à razão esforçar-se por confinar todos dentro da mesma medida, e estender completa igualdade às instituições da vida civil”.10

   Esta desigualdade pervadida de respeito e concebida segundo a mentalidade católica é o que dá solidez à sociedade, pois, como afirma o Papa Bento XV, em eco com seus predecessores, não é possível igualar as classes sociais, como num corpo orgânico os membros não podem ter idêntica função e dignidade. Todavia, a caridade fraterna cristã faz “com que os mais elevados se inclinem de algum modo para os que estão mais abaixo, e os tratem não segundo a justiça, como convém, mas ainda com benevolência, afabilidade e paciência; e os inferiores, por sua vez, alegrar-se-ão com a prosperidade das pessoas de posição mais elevada, e esperarão o seu apoio com confiança, como numa mesma família os mais jovens confiam na proteção e assistência dos mais velhos”.11

   Desta maneira, a sociedade temporal reflete em grau maior a perfeição e o amor de Deus para com sua criação, na medida em que for constituída por pessoas desiguais, em mútua e harmoniosa colaboração para obter o bem comum.

A Igreja, luz que ilumina a sociedade temporal

  Se quisermos, pois, chegar a um modelo de sociedade ideal, é preciso sabermos harmonizar a ordem temporal com a ordem espiritual, fonte de todas as perfeições, por estar mais próxima de Deus.

   Assim como o céu paira majestosamente sobre a terra sem oprimi-la, criando as condições que a tornam aprazível e habitável, assim também a Igreja, “pairando sobre todos os poderes temporais, não os destrói, não os absorve, não os diminui, mas, pelo contrário, ilumina de tal maneira a própria vida temporal, estimula de modo tão ativo e fecundo todas as circunstâncias favoráveis à ordem terrena”.12 A benéfica presença do Corpo Místico de Cristo “amplifica, eleva, consolida e nobilita” 13 tudo o que é temporal, aplainando, dentro das provas desta vida terrena, o caminho para o Céu.

   Compete a cada um de nós a realização deste insigne anseio. A Igreja, esta imensa sociedade de homens que vivem a mesma Fé, recebeu de seu Divino Fundador uma missão que ultrapassa os limites temporais: a salvação eterna dos homens. Quando a lei do Evangelho puder reger todos os povos da face da terra, a humanidade conseguirá resolver seus grandes problemas sociais e renovar-se inteiramente, dando início a uma nova era histórica.

   Então brilharão com insuperável fulgor todas as coisas que se deixarem iluminar pela luz da Santa Igreja Católica. Luz que transformará em
faróis os homens, as diversas culturas e os costumes de cada povo. Luz de uma sociedade sacralizada que fará refletir, nesta terra, a hierarquia do Céu como nunca se viu. (Revista Arautos do Evangelho, Setembro/2017, n. 189, pp. 16 à 19)

 
1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Estética do universo. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano V. N.51 (Jun., 2002); p.10. 2 CCE 339. 3 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A missão por excelência da sociedade temporal. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano V. N.56 (Nov., 2002); p.22. 4 CÍCERO, Marco Túlio. Da República. L.I, n.25. 5 LEÃO XIII. Immortale Dei, n.28. 6 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. La Providencia y la confianza en Dios: fidelidad y abandono. 2.ed. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1942, p.32. 7 DIONÍSIO AREOPAGITA. La jerarquía celeste, c.I, n.3. In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 1995, p.121. 8 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.47, a.2. 9 LEÃO XIII. Quod apostolici muneris, n.5. 10 LEÃO XIII. Humanum genus, n.26. 11 BENTO XV. Ad beatissimi Apostolorum, n.13. 12 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. A “Questão Romana” – I. In: Legionário. São Paulo. Ano XVII. N.602 (20 fev. 1944); p.2. 13 Idem, ibidem.
 
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