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Catecismo


O mais injusto e infame juízo da História
 
AUTOR: SANTIAGO VIETO RODRÍGUEZ
 
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A transgressão da Lei de Deus costuma ser acompanhada da violação das leis humanas. Isto aconteceu de forma paradigmática na injusta condenação de Jesus Cristo à morte, quando foram violados os mais básicos princípios do Direito.
Jesus perante Anás, pelo Mestre de
Rubiò Museu Episcopal de Vic (Espanha)

Do coração de Plinio Corrêa de Oliveira brotou em certa ocasião este brado de dor e inconformidade: “Conspiraram contra Vós, Senhor, Jesus Cristo. […] Vossos inimigos Vos odeiam tanto, que já não suportam vossa presença entre os viventes, e querem a vossa morte. Querem que desapareçais para sempre, que emudeça a linguagem de vossos exemplos e a sabedoria de vossos ensinamentos. Querem-Vos morto, aniquilado, destruído. Só assim terão aplacado o turbilhão de ódio que em seus corações se levanta”.1

   Alma apaixonada por Deus, que viveu, lutou e se ofereceu em holocausto pela Igreja, perguntava-se ele, ao meditar sobre a Paixão, como é possível descarregar tanto ódio contra o Justo por excelência, que passou pelo mundo fazendo o bem, curou milhares de enfermos, espargiu por toda parte bondade, amor e misericórdia. E chegava à conclusão de não terem sido as causas dos acontecimentos narrados no Evangelho meramente políticas, sociais ou psicológicas. 

   O processo que resultou na prisão, Paixão e Morte do Cordeiro Imolado deita suas raízes num abismo tenebroso e insondável, do qual partiu o grito ecoado pelos deicidas: “Armemos ciladas ao justo, porque sua presença nos incomoda […]. Tornou-se uma censura aos nossos pensamentos e só o vê-lo nos é insuportável […]. Vamos pô-lo à prova com ofensas e torturas, […] vamos condená-lo à morte vergonhosa” (Sb 2, 12.14.19-20).

Condenado à morte sem ter sido sequer ouvido

   Os versículos do Livro da Sabedoria acima citados descrevem profeticamente o que aconteceria com Jesus. Em certo momento, sua simples presença tornara-se insuportável aos seus inimigos, e estes tomaram então a decisão de matá-Lo (cf. Jo 11, 53).

   Qual foi, por assim dizer, a gota d’água que fez transbordar o cálice da inconformidade? Uma increpação, um desafio? Não. Foi um ato de bondade, uma manifestação de amor: a ressurreição de Lázaro. “Lázaro, vem para fora!” A esta curta ordem, aquele homem sepultado havia quatro dias subiu as escadas do túmulo, de pés e mãos ligados por faixas, à vista de uma pequena multidão desconcertada (cf. Jo 11, 43-44).

   Avisados do ocorrido, os pontífices e fariseus convocaram o conselho e lhe submeteram sem rodeios a questão: “Que faremos? Este Homem multiplica os milagres. Se O deixarmos agir assim, todos crerão n’Ele…” (Jo 11, 47-48). Instigados por Caifás, sumo sacerdote em função naquele ano, os membros da grande assembleia decidiram matar o Homem-Deus. Assim, sem ter sido sequer citado e interrogado, Jesus estava condenado inapelavelmente à morte pelo “crime” de “multiplicar os milagres”.

   Não tendo ainda, entretanto, meios de passar da resolução à execução, limitaram-se os pontífices e fariseus a tomar algumas providências para localizá-Lo e prendê-Lo.

   Estavam à espera de uma oportunidade favorável para lançar mão sobre Jesus sem provocar uma comoção popular, quando um visitante de todo em todo inesperado veio oferecer-lhes a realização imediata de seus negros desígnios:

   — Que me dareis para que eu vo-Lo entregue? – perguntou-lhes o Iscariotes.

   Combinaram o preço de trinta moedas de prata, o valor de um escravo, e o traidor conduziu os esbirros do Sinédrio ao Horto das Oliveiras, onde lhes indicou com um beijo o Homem que eles procuravam. Prenderam então Jesus, ataram-Lhe as mãos e O arrastaram à casa de Anás, sogro de Caifás, e por fim à deste último.

Prisão de Jesus no Horto, pelo Mestre de
Rubiò Museu Episcopal de Vic (Espanha)

Transgrediram a Lei de Deus e as leis humanas

   A transgressão da Lei de Deus costuma ser acompanhada da violação das leis humanas, e foi isso o que aconteceu com Jesus. Sob o ponto de vista jurídico, sua prisão foi propriamente um sequestro, pois a jurisdição policial do Sinédrio se restringia à área do Templo. Era a primeira de uma série de graves irregularidades processuais.

   O Sanedrim ou Sinédrio era o tribunal supremo dos judeus. Compunha-se de setenta e um membros e estava dividido em três câmaras: a dos sacerdotes, a dos escribas e a dos anciãos. Muito se tem escrito sobre a abominável conduta deste tribunal até o momento em que Pilatos, “o juiz que cometeu o crime profissional mais monstruoso de toda a História”,2 condenou à crucifixão o Inocente por excelência.

   Entre várias obras dedicadas a este tema, cabe destacar o preciso e interessante estudo feito por dois sacerdotes franceses, intitulado Valor da assembleia que pronunciou a sentença de morte contra Jesus Cristo. 3

   Seus autores eram irmãos gêmeos pertencentes a uma rica e aristocrática família israelita de Lyon, França. Tocados pela graça ao assistir a algumas cerimônias católicas, iniciaram ainda na infância o caminho da conversão, que culminou aos dezoito anos, com a recepção do Santo Batismo. Favorecidos por seu conhecimento da língua hebraica, os irmãos Lémann pesquisaram em boas fontes a legislação penal em vigor em Israel, na época da condenação de Jesus à morte. Puderam, assim, elaborar uma lista de vinte e sete irregularidades cometidas ao longo dos vários procedimentos jurídicos, cada uma delas suficiente para anular todo o processo.

   Mencionaremos a seguir algumas das mais interessantes.

Dar ares de formalidade a uma sentença já emitida

   Após prenderem Jesus no Horto das Oliveiras, os esbirros O conduziram à casa de Caifás, onde já estava reunido o Sinédrio para julgá-Lo (cf. Mt 26, 57). Grave transgressão à lei, pois esta proibia tais julgamentos à noite, sob pena de nulidade. Ademais, a reunião se realizou no primeiro dia dos ázimos, véspera da grande festa da Páscoa; ora, o Siné- drio não podia julgar na véspera do sábado nem na de um dia de festa.

   O mesmo Caifás que, por ocasião da ressurreição de Lázaro, se constituiu em acusador de Jesus, agora O interroga como juiz; mais ainda, como presidente do tribunal! Uma monstruosidade jurídica, inadmissível em qualquer país civilizado.

   Estando Jesus já condenado de antemão, o verdadeiro objetivo dessa reunião era dar ares de formalidade legal à sentença proferida dias antes. Para isso, o Sinédrio ouviu depoimento de numerosas testemunhas falsas, sem análise prévia de sua qualificação e sem sequer exigir-lhes juramento. Elas, entretanto, não concordavam entre si, e Caifás foi obrigado a procurar uma saída para o impasse, interpelando o Divino Mestre: “Eu Te conjuro, pelo Deus vivo, dize-nos se Tu és o Cristo, o Filho de Deus” (Mt 26, 63).

   Pergunta capciosa: se respondesse negativamente, seria condenado como impostor; se afirmativamente, como blasfemo. Ademais, era vedado exigir do acusado um juramento, pois isso implicava em impor-lhe um dilema: cometer perjúrio ou incriminar-se a si mesmo. O iníquo tribunal não exigiu das testemunhas o juramento que tinha obrigação de exigir, e exigiu do acusado o que lhe era proibido fazer.

   E Jesus deu uma resposta sublime: “Tu o disseste. Além disso, Eu vos digo que de agora em diante vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso, vindo nas nuvens do céu” (Mt 26, 64). Então o sumo sacerdote rasgou as vestes, dizendo: “Ouvistes a blasfêmia! Que vos parece?” E os membros do Sinédrio responderam: “Merece a morte!” (cf. Mt 26, 65-66).

Jesus diante de Pilatos, por
Jaime Ferrer Museu Episcopal de Vic (Espanha)

Buscando desesperadamente a pena capital

   Às irregularidades acima somaram-se outras, de não menor gravidade. 

   Ouvida a resposta do réu, cabia a Caifás analisá-la com serena imparcialidade e depois submeter o caso à votação de todos os membros do tribunal. Não o fez. Pelo contrá- rio, estava tão agitado pelo ódio que rasgou a veste sacerdotal, atitude que era absolutamente proibida ao sumo sacerdote. A frenética agitação o levou inclusive a romper várias outras normas jurídicas, das quais aqui ressaltamos três, de fundamental importância todas elas. 

   Primeira, forçou o voto em conjunto de todos os membros do Sinédrio, quando pela lei deviam votar individualmente, um a um: “Eu condeno”, ou “Eu absolvo”, tudo devidamente registrado pelos funcionários competentes. Segunda, a sentença foi pronunciada no mesmo dia em que se iniciou o julgamento; ora, prescrevia a legislação que, em casos de pena capital, a sentença devia ser diferida para o dia seguinte. Terceira, a sentença de morte foi pronunciada na casa de Caifás; ora, pela lei, sentenças de morte eram válidas somente quando proferidas na Sala Gazith, denominada também Sala das Pedras Talhadas, situada numa das dependências do Templo.

   Devido ao fato de a Judeia ter sido reduzida à situação de província romana, o Sinédrio perdera o ius gladii, ou seja, o direito soberano de aplicar a pena de morte. Na prática, portanto, de nada adiantaria aos sinedritas todo aquele esforço noturno para prender e condenar Jesus, se eles não conseguissem a sentença condenatória prolatada pelo governador romano. Conduziram, pois, apressadamente Jesus da casa de Caifás ao pretório de Pilatos, onde iniciaram outra batalha, tão infame e inglória como a primeira.

   Sabendo por uma dura experiência que o magistrado romano não daria a menor atenção a uma acusação de blasfêmia ou coisa do gênero, viram-se obrigados a apresentar Jesus como um criminoso político, um sublevado, amotinador do povo, contrário ao pagamento do tributo a Roma; numa palavra, inimigo de César.

Flagelação, pelo Mestre de Rubiò
Museu Episcopal de Vic (Espanha)

   Inseguro e acovardado, Pilatos fez diversas tentativas de libertar o Divino Prisioneiro, pois bem percebia que os escribas e sacerdotes não procediam com reta intenção. Estes, porém, instigavam o populacho a reclamar em altos brados a condenação à morte de Jesus: “Crucifica-O! Crucifica-O! […] Se O soltares, não és amigo do imperador, porque todo o que se faz rei se declara contra o imperador” (Jo 19, 6.12).

   Ao ouvir esta ameaça, a pouca coragem de Pilatos desmoronou, e ele lhes entregou o Inocente para ser crucificado. Assim como os judeus preferiram um vulgar salteador de estrada em vez do Redentor, o governador poltrão sacrificou a Verdade em benefício de sua mediocridade, com seu simbólico gesto de lavar as mãos.

O mais esplêndido triunfo da História

   Encerrado estava, finalmente, o processo mais abominável da História. Nosso Senhor Jesus Cristo, condenado à mais ignominiosa das mortes, partiu carregando a Cruz rumo ao alto do Calvário. Os esbirros, os sacerdotes e os escribas nada pouparam do que podiam fazer para aumentar seus tormentos de corpo e de alma. O Cordeiro de Deus foi por fim imolado. 

Cristo Ressurrecto Basílica de São Marcos,
Veneza (Itália)

   Depois de dizer “Tudo está consumado” (Jo 19, 30), Cristo inclinou a cabeça e expirou. O próprio Padre Eterno Se incumbiu de fazer os solenes funerais de seu Divino Filho: o sol se escureceu, deixando a terra envolta em trevas; o véu do Templo se rasgou de alto a baixo, em duas partes; a terra tremeu; partiram-se as pedras; os túmulos se abriram e viram-se os corpos dos defuntos andando pelas ruas da cidade deicida, increpando os judeus.

   Aos olhos dos amigos do mundo, Cristo era um derrotado, o mal havia prevalecido. A Virgem Santíssima, porém, permanecia de pé junto à Cruz, com o coração transpassado pelo gládio da dor, mas convicta de que a esse aparente fracasso logo se seguiria esplendorosa vitória. Nosso Senhor Jesus Cristo havia vencido a morte e o mal para sempre, ao ressuscitar ao terceiro dia e abrir-nos as portas do Céu. Assim, longe de ser uma derrota, o holocausto do Justo foi na realidade o mais esplêndido triunfo da História. (Revista Arautos do Evangelho, Março/2018, n. 195, pp. 16 à 19)

1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Via-Sacra. I Estação. In: Legionário. São Paulo. Ano XVI. N.558 (18 abr., 1943); p.3. 2 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Via-Sacra. I Estação. In: Catolicismo. Campos dos Goytacazes. Ano I. N.3 (Mar., 1951); p.4. 3 Cf. LÉMANN, Augustin; LÉMANN, Joseph. Valeur de l’assemblée qui prononça la peine de mort contre Jésus-Christ. 3.ed. Paris: Victor Lecoffre, 1881.

 
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