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Catecismo


Sempre estamos nas mãos de Deus…
 
AUTOR: IR. MARIELLA EMILLY ABREU ANTUNES
 
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As misericórdias de Deus a cada homem ao longo da vida pesarão em seu julgamento: quem as aproveitou para o bem receberá a recompensa; quem as desperdiçou, deparar-se-á com a justiça, ambas saídas das mãos divinas e eternas.
Expulsão dos vendilhões do Templo,
por Giotto di Bondone
–Cappella degli Scrovegni, Pádua (Itália)

Narra o Evangelho que estando Jesus a caminho de Jerusalém, pouco antes da Paixão, mandou dois de seus discípulos se adiantarem para conseguir pousada. Encontravam-se na região da Samaria, cujos habitantes nutriam acirrado ódio contra os judeus e, por este motivo, não quiseram dar hospedagem ao Divino Redentor e a seus Apóstolos.

   Indignados ante tal recusa, Tiago e João dirigiram-se ao Mestre, perguntando: “‘Senhor, queres que mandemos que desça fogo do céu e os consuma?’ Jesus voltou-Se e repreendeu-os severamente. ‘Não sabeis de que espírito sois animados. O Filho do Homem não veio para perder as vidas dos homens, mas para salvá-las’” (Lc 9, 54-56). Com tal resposta punha em relevo o Salvador quão grande é a misericórdia de Deus, que não Se vinga de quem se recusa a acolhê-Lo, mas aguarda com paciência que se arrependa.

   Sem embargo, se analisamos o relacionamento do Criador com os homens ao longo da História, deparamo-nos também com numerosos episódios nos quais Ele pune com firmeza o pecador. Sem sair do Novo Testamento, pensemos na cólera com que Jesus expulsou os vendilhões do Templo (cf. Mt 21, 12-17; Mc 11, 15-19; Lc 19, 45-48; Jo 2, 13- 17).

   Em nossos dias, custa-nos compreender a conjugação entre misericórdia e justiça. Consideramos que quem pratica a primeira não pode jamais punir, e quem possui a segunda fica impossibilitado de perdoar. Esquecemo-nos de que elas são atributos de Deus, em quem todas as virtudes se harmonizam de modo admirável.

   Ambas Lhe pertencem como os dois braços, ao corpo. Pela misericórdia ou pela justiça sempre estamos em suas mãos. E, muitas vezes, manifesta Ele sua bondade punindo os pecadores para purificá-los ainda nesta vida e conceder-lhes, misericordiosamente, a salvação eterna…

Espécies de justiça: comutativa e distributiva

   Para compreendermos melhor a essência deste sublime equilíbrio é importante ajustarmos nossos conceitos à doutrina da Igreja, começando por rememorar em que consiste a justiça.

   Ela é definida pelo Catecismo como a “constante e firme vontade de dar a Deus e ao próximo o que lhes é devido”.1 Quando este dar se aplica a Deus, o chamamos virtude de religião; quando se aplica aos homens, recebe propriamente o nome de justiça.

   São Tomás2 a divide em duas espécies. A primeira, chamada de justiça comutativa, regula as relações nas quais se dá e se recebe algo de volta. Ela se verifica, por exemplo, quando alguém faz uma compra e paga um preço adequado ao valor da mercadoria entregue pelo vendedor.

   A segunda dessas espécies, qualificada de justiça distributiva, aplica-se a um tipo de relacionamento diferente. Por ela, “quem governa ou administra algo atribui a cada um aquilo que compete à sua dignidade”,3 ou seja, faz com que seus subordinados recebam o que é justo segundo a posição e méritos de cada um. A boa ordem de uma família ou de qualquer grupo depende dela.

   A justiça comutativa não pode tanger às relações entre Deus e os homens, pois “quem Lhe deu primeiro, para que lhe seja retribuí- do?” (Rm 11, 35). Entretanto, é possível encontrar numerosos reflexos da justiça distributiva na ordem posta por Deus no universo. Dionísio Areopagita assim o recorda, quando afirma que “a justiça divina é realmente justiça ao dar a cada um o que lhe corresponde, segundo seus méritos, e preserva a natureza de cada coisa em sua ordem e valor próprios”.4

Em busca da ovelha tresmalhada
Mosteiro da Visitação, Treviso (Itália)

Deus é justo ao transbordar de misericórdia

   Conhecendo como opera entre os homens a justiça, cabe agora considerá-la enquanto atributo de Deus. Elevamo-nos, assim, a um plano muitíssimo mais alto, relacionado com a própria essência divina.

   “Deus é justiça e cria justiça”,5 afirma o Papa Bento XVI. Todos os seus atos estão de alguma forma marcados por ela. “Quando punes os maus, é justiça, pois convém ao que mereceram; quando os perdoas, é também justiça, não porque convém ao que mereceram, senão à tua bondade”,6 proclama Santo Anselmo.

   Vê-se aqui, claramente, como a justiça em Deus não tem apenas um caráter punitivo para com o mal praticado. Quando Ele usa de misericórdia para perdoar está fazendo também justiça, só que, neste caso, para com sua bondade infinita, tão bem refletida nas palavras dirigidas a Moisés: “Javé, Javé, Deus compassivo e misericordioso, lento para a cólera, rico em bondade e em fidelidade, que conserva sua graça até mil gerações, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado, mas não tem por inocente o culpado” (Ex 34, 6-7).

   Em uma das mais belas parábolas do Divino Mestre vemos o bom pastor indo atrás da ovelha perdida e deixando para trás as outras noventa e nove de seu rebanho. Ao explicá-la aos seus ouvintes, Jesus conclui: “Haverá mais júbilo no Céu por um pecador que fizer penitência que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento” (Lc 15, 7). Também na parábola do filho pródigo assistimos ao retorno deste a casa, arrependido de ter esbanjado os bens paternos, e encontramos a tocante cena: “Estava ainda longe, quando seu pai o viu e, movido de compaixão, correu-lhe ao encontro, lançou-se-lhe ao pescoço e o beijou” (Lc 15, 20).

   Estas passagens são uma perfeita imagem de como Deus, por jamais ter conivência com o mal, é justo consigo ao transbordar de misericórdia para com aquele que se arrepende e pede perdão.

Ele age com bondade ainda na punição

   Quem, porém, fixando-se no insulto a Deus e, portanto, no mal, morre impenitente e entra na eternidade em estado de pecado mortal, passa a merecer um castigo eterno. Neste caso, o Criador do universo não pode perdoar, porque não seria justo para com o Bem eterno, que é Ele. Daí a necessidade de Deus criar o inferno,7 aquele mar de fogo, de “choro e ranger de dentes” (Mt 8, 12), tantas vezes evocado no Evangelho.

   Fundando-se em São Tomás, explica a esse respeito o Pe. Garrigou-Lagrange que “Deus, como soberano legislador, superintendente e juiz dos vivos e dos mortos, é obrigado, por Si mesmo, a dar às suas leis uma sanção eficaz”.8 E apresenta as razões pelas quais ela precisa ser eterna: o fato de o castigo não ter fim serve para “manifestar os direitos imprescritíveis de Deus a ser amado acima de tudo, para fazer conhecer o esplendor de sua infinita justiça”.9

   Contudo, até nessa monumental obra da justiça divina há traços evidentes do Deus compassivo e bondoso. É o que diz o próprio Doutor Angélico: “Mesmo na condenação dos réprobos a misericórdia aparece, não relaxando totalmente, mas mitigando de algum modo as penas, pois Deus pune menos do que o merecido”.10

Retorno do Filho Pródigo
Museu da Cartuxa de São
Martinho, Nápoles (Itália)

   Na sequência do tema, o Pe. Garrigou-Lagrange continua: “Deus, que é bom e misericordioso, não Se compraz nos sofrimentos dos condenados, mas sim na sua infinita bondade que merece ser preferida a todo o bem criado, e os eleitos contemplam o esplendor da justiça suprema, agradecendo a Deus tê-los salvado. […] Deus ama, sobre todas as coisas, a sua infinita bondade; ora, esta, enquanto essencialmente comunicativa, constitui o princí- pio da misericórdia, e na medida em que tem um direito imprescritível a ser amada acima de tudo, constitui o princípio da justiça”.11

Antes de desatar sua ira, Deus chama à conversão

   De um modo ou outro, atingindo povos inteiros com conclamações proféticas ou falando a alguém em concreto no mais íntimo de seu coração, Deus nunca deixa de fazer inúmeros chamados para a conversão. Ele não Se compraz “com a morte do pecador, mas antes com a sua conversão, de modo que tenha a vida” (Ez 33, 11) e, por este motivo, convida-nos a entrar “pela porta estreita, porque larga é a porta e espaçoso o caminho que conduzem à perdição e numerosos são os que por aí entram” (Mt 7, 13).

   As Sagradas Escrituras estão repletas de belos fatos nesse sentido. Para citar alguns, tomemos o anúncio do castigo feito por Elias a Acab e a alegria manifestada por Deus ao contemplar o rei ímpio fazendo penitência (cf. I Rs 21, 21-29). Ou a mudança dos planos divinos perante a contrição dos habitantes de Nínive, após a pregação de Jonas: “Vendo como renunciavam aos seus maus caminhos, Deus arrependeu-Se do mal que resolvera fazer-lhes, e não o executou” (Jn 3, 10).

   Quando os homens permanecem indiferentes ao apelo divino, sua justiça faz cair sobre eles a punição. Quando eles se arrependem, porém, Deus como que também o faz. Esta atitude não significa que os critérios divinos sejam suscetíveis de mudança. A humanização das ações divinas é apenas um recurso literá- rio usado para nos torná-las mais compreensíveis.

   A ira divina, explica Santo Agostinho, não é “tribulação de ânimo, senão o juízo pelo qual castiga o pecado. Seu pensamento e sua reflexão são a razão imutável das coisas mutáveis. Porque Deus, que sobre todos os seres tem opinião tão estável como certa é sua presciência, não Se arrepende de suas obras, como o homem”.12

Nossa Senhora de
Fátima Casa Rei
Davi, Caieiras (SP)

Fátima: misericórdia e justiça para nossos tempos

   Ora, se no Antigo Testamento Deus Se serviu dos profetas para alertar os povos antes de exercer sua ação justiceira, nos últimos sé- culos Ele o tem feito através de Maria Santíssima.

   Antes de Se tornar Mãe de Deus, Ela implorava “para que viesse Aquele que poderia fazer brilhar novamente a justiça na face da terra, para que se levantasse o Sol divino de todas as virtudes, espancando por todo o mundo as trevas da impiedade e do vício”.13 Agora é por meio d’Ela que Jesus nos anuncia a proximidade do Reino de Maria, previsto por São Luís Maria Grignion de Montfort,14 e os castigos que devem vir caso os homens não se convertam.

   Já cruzamos os umbrais do ano de 2018. Para trás ficou o centená- rio das advertências feitas por Ela à humanidade na Cova da Iria. E assim como todas as profecias que marcaram a História suscitaram reações opostas, de igual modo acontece hoje com a mensagem de Fátima: quem tem fé se alegra e se enche de esperança; quem não crê tenta negar sua autenticidade e a importância que ela tem para a vida da Igreja. “Mas todos têm bem presente que as profecias da Santíssima Virgem se realizarão”,15 escreve nosso fundador, Mons. João.

   Depois de tão longa espera poder-se-ia perguntar: quando isso se dará?

   O dia e a hora fazem parte dos arcanos de Deus. Ele deu à Virgem Santíssima, nossa Mãe de Misericórdia, o poder de deter seu braço justiceiro sobre o mundo até que estejam preparadas todas as almas que deveriam se abrir às suas palavras. Só Ela sabe qual é o momento oportuno para tocar o fundo dos corações dos homens contemporâneos, a fim de, finalmente, realizar sua grande promessa: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará”.16

   Enquanto esta hora não chega, cabe a nós abrirmos nossas almas para nossa Mãe de bondade, instrumento da misericórdia divina, Medianeira Universal de todas as graças. E não nos esqueçamos de que as misericórdias que Deus dispensa a cada homem ao longo da vida pesarão no dia de seu julgamento: quem as aproveitou para o bem, receberá uma misericórdia maior, a recompensa eterna; quem as desperdiçou, se encontrará com a justiça, pois sempre estamos nas mãos de Deus! (Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2018, n. 194, pp. 22 à 25)

1 CCE 1807. 2 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I, q.21, a.1. 3 Idem, ibidem. 4 DIONÍSIO AREOPAGITA. Los nombres de Dios, c.VIII, n.7. In: Obras Completas. 2.ed. Madrid: BAC, 1995, p.345. 5 BENTO XVI. Spe salvi, n.44. 6 SANTO ANSELMO. Proslogion, c.10: PL 158, 233. 7 Cf. CCE 1034-1035. 8 GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. O homem e a eternidade. Lisboa-São Paulo: Aster; Flamboyant, 1959, p.130. 9 Idem, p.137. 10 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., a.4, ad 1. 11 GARRIGOU-LAGRANGE, op. cit., p.137-138. 12 SANTO AGOSTINHO. De Civitate Dei. L.XV, c.25. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1958, v.XVII, p.1060-1061. 13 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Pequeno Ofício da Imaculada Conceição comentado. 2.ed. São Paulo: ACNSF, 2010, v.I, p.439. 14 Cf. SÃO LUÍS MARIA GRIGNION DE MONTFORT. Traité de la vraie dévotion à la Sainte Vierge, n.217. In: Œuvres Complètes. Paris: Du Seuil, 1966, p.634-635. 15 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. A morte da Irmã Lúcia no contexto de Fátima. In: Arautos do Evangelho. São Paulo. Ano IV. N.39 (Mar., 2005); p.22. 16 IRMÃ LÚCIA. Memórias I. Quarta Memória, c.II, n.5. 13.ed. Fátima: Secretariado dos Pastorinhos, 2007, p.177.

 
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