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Catecismo


Uma via só para eleitos?
 
AUTOR: IR. ARIANE HERINGER TAVARES, EP
 
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Todos os batizados, participantes da natureza divina pela graça, seja nas vias religiosas ou no século, são chamados à contemplação, na qual encontram forças para atingirem a santidade.

Ao proferir o Sermão da Montanha e nele enunciar os princípios que sublimavam e aperfeiçoavam a Antiga Lei, o Divino Mestre vincou o itinerário a ser seguido por seus discípulos até o fim dos tempos, concluindo: “sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

 Entretanto, nossa fragilidade nos leva a perguntar: é possível sermos perfeitos como o próprio Deus é perfeito? É possível a todos nós sermos perfeitos? Não será esta uma meta disposta pela Providência só para certas almas eleitas, com uma vocação religiosa?

 Não é o que ensina a doutrina católica. 1 Todos os batizados são chamados à santidade, cada um segundo seu estado, e para alcançá-la necessário é que aprendam a trilhar as vias da contemplação, pois elevar o coração e as vistas do espírito ao Alto nos faz participar, já nesta Terra, da bem-aventurança de que gozam os justos no Céu. Aqui apenas “vemos como por um espelho, confusamente” (I Cor 13, 12); lá O “veremos como Ele é” (I Jo 3, 2).

“Vede que o Senhor convida a todos”

   A contemplação pode ser definida como “uma amorosa, simples e permanente atenção do espírito às coisas divinas”,2 segundo ensina São Francisco de Sales. A este relacionamento místico da alma com Deus estão convidados tanto aqueles que vivem no silêncio de um claustro como quem está em meio ao afã da vida secular. “A mística, enquanto plenitude do ser cristão, não é algo extraordinário, nem um segundo caminho para a santidade que só uns poucos escolhidos são capazes de percorrer. É o caminho que todos devem trilhar”.3

 Isto se explica pelo fato de os cristãos serem templos da Santíssima Trindade ao se tornarem participantes da natureza divina pela graça santificante, infundida no Batismo juntamente com as virtudes e os dons, e incrementada com a prática e o robustecimento da caridade.

   De fato, a contemplação é uma forma de oração na qual a alma fixa o olhar em Deus com admiração e afeto, criando condições para que a virtude da caridade – “vínculo de perfeição” (Col 3, 14), no dizer do Apóstolo – seja levada ao seu inteiro desenvolvimento. É este amor perfeito que dá origem às mais fecundas e elevadas ações humanas.

 E um bem tão desejado não pode ser negado pela Providência àqueles que o procuram: “Vede que o Senhor convida a todos (cf. Mt 11, 28) e, sendo Ele a mesma Verdade, não há que duvidar de sua palavra. Se não fora geral este convite, o Senhor não faria tão universal apelo e, embora chamasse, não diria: ‘Eu vos darei de beber’ (Jo 7, 37).

 “Poderia dizer: Vinde todos, que afinal nada perdereis, e darei de beber àqueles que Eu quiser. Mas já que a todos chama, incondicionalmente e sem limites, estou certa de que não faltará esta água viva a quem não se deixar ficar no caminho”.4

Contemplação e recolhimento

   Contudo, para que a Santíssima Trindade beneficie alguém com a graça da contemplação, são requeridas algumas disposições espirituais: é preciso um profundo desapego das coisas terrenas, uma inteira humildade, pureza de coração e a prática habitual das virtudes.

   Além disso, é indispensável outro fator: o recolhimento. “Assim como a dissipação repele os bens divinos ou dificulta sua saudável influência, assim o recolhimento os atrai até nós e favorece sua eficácia”.5

   Antes de tudo, é preciso esclarecer que recolhimento não é sinônimo de solidão ou silêncio. São circunstâncias que o tornam propício, todavia não se confundem com ele. O recolhimento não
consiste tanto, como se crê, na atitude exterior de afastar-se das ocupações do dia a dia, mas em manter-se num estado de espírito que nada pode perturbar.

 Quando se obtém a graça de galgar a sagrada montanha do recolhimento, ele coloca a alma num contínuo estado de oração, no qual, mesmo em meio às mais diversas atividades, o coração e a mente estão sempre postos no sobrenatural. “Uma alma recolhida é uma alma retirada das criaturas e que busca a Deus, sua vontade e seus desejos, para conformar-se com Ele em tudo”.6

 “Quer trabalhe quer se recreie, quer esteja só quer acompanhada, incessantemente se eleva para Deus, conformando sua vontade com a d’Ele: ‘quæ placita sunt ei facio semper’ (Jo 8, 29). E esta conformidade não é para a alma senão um ato de amor e entrega total nas mãos de Deus; as suas orações, as suas ações comuns, os seus sofrimentos, as suas humilhações, tudo está impregnado de amor de Deus”.7

   Até mesmo os pecadores, quando abrem o espírito para uma voz interior que ressoa no mais recôndito de seus corações chamando-os à conversão, dão início a um processo que os convida à contemplação e pode conduzi- los aos altos píncaros da santidade. Tal foi o que se passou com Santo Agostinho, conforme ele mesmo revela em suas Confissões: “Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava- me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém chamastes- me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez!”.8

 Em meio à dissipação e à agitação, dificilmente se poderá ouvir o apelo e as inspirações que o Espírito Santo sopra em nosso íntimo. Ao contrário, viver todo o tempo com os olhos postos nas realidades celestes é um dos meios mais eficazes para chegar à santidade. Por isso, em certas ocasiões é útil retirar-se do cotidiano a fim de com mais facilidade alcançar o recolhimento necessário para entrar em comunicação com o sobrenatural.

Nas Sagradas Escrituras

  Se passearmos pelas Sagradas Escrituras, encontraremos numerosas passagens incidindo na conveniência de afastar-se do bulício para melhor se recolher e entrar em contato com Deus.

   Comecemos por recordar os quarenta dias de retiro de Moisés no Monte Sinai. Antes de estabelecer com o povo de Israel a Aliança definitiva, selada com a entrega das Tábuas da Lei, Deus disse a Moisés: “Sobe para Mim no monte. Ficarás ali para que Eu te dê as tábuas de pedra, a Lei e as ordenações que escrevi para sua instrução” (Ex 24, 12).

 Exige o Senhor que seu servo se prepare para estar à altura da missão que vai lhe ser encomendada. Para isso, ordena que ele suba ao monte, ou seja, que se afaste das coisas terrenas. Só depois de sete dias de recolhimento o Senhor lhe dirige a palavra, e foram necessários quarenta dias de retiro e contemplação para lhe serem entregues os Dez Mandamentos: “No sétimo dia, o Senhor chamou Moisés do seio da nuvem. Aos olhos dos israelitas a glória do Senhor tinha o aspecto de um fogo consumidor sobre o cume do monte. Moisés penetrou na nuvem e subiu a montanha. Ficou ali quarenta dias e quarenta noites” (Ex 24, 16-18).

 Já no Novo Testamento, deparamo- nos com uma situação semelhante. Consta nos Atos dos Apóstolos que, após a Ascensão de Jesus, os discípulos voltaram para Jerusalém e se reuniram no Cenáculo à espera do batismo de fogo que, segundo a promessa do Mestre, em breve receberiam. Impelidos por tal dom, eles haveriam de expandir a Igreja de Cristo por toda a Terra.

  Enquanto isso, “todos eles perseveravam unanimemente na oração, juntamente com as mulheres, entre elas Maria, Mãe de Jesus” (At 1, 14). Nesses dias de retiro e recolhimento, a graça ia atuando em suas almas, preparando-as para receber o Espírito Santo. “Estavam recolhidos, modo excelente de preparação para os grandes acontecimentos”.9

 Passaram dez dias em contínua oração, até o cumprimento da promessa de Nosso Senhor. “Em geral, Cristo ressurrecto escolhia oportunidades como estas – de reflexão e compenetração da parte de todos – para lhes aparecer, assim como o Espírito Santo para lhes infundir seus dons”.10

O exemplo do Divino Mestre

   Tudo isso se entende sem muita dificuldade, vistas as limitações de nossa natureza. Mas o Homem- -Deus teria também necessidade desta preparação para poder exercer bem sua missão?

 De dentro dos próprios relatos bíblicos brota-nos a resposta. Segundo a narração de São Lucas, Jesus começou a exercer o seu ministério somente por volta dos 30 anos de idade (cf. Lc 3, 23). Antes disso, todavia, vivera na humilde casa de Nazaré, crescendo em graça e santidade, apenas diante de Deus, de Nossa Senhora e São José, e de algumas almas privilegiadíssimas que, de vez em quando, se encontravam com a Sagrada Família nas estradas da Judeia ou a visitavam em seu recolhido lar.

 Devido à sua natureza divina, Jesus não necessitava de uma preparação para seu ministério, pois jamais abandonou o convívio trinitário com o Pai e o Espírito Santo. No entanto, ao assumir uma natureza como a nossa, tornou-Se modelo para todos os homens e quis demonstrar, com as próprias ações, o imenso valor do recolhimento e da via contemplativa.

 Uma ocasião em que manifestou isto de maneira muito enfática foi no início de sua vida pública, quando Se deixou conduzir pelo Espírito ao deserto. Aí esteve em oração e penitência, “jejuou quarenta dias e quarenta noites” (Mt 4, 2), contemplando o grandioso e terrível panorama de sua missão salvadora e obtendo forças para beber o cálice de terríveis sofrimentos que o Pai Lhe havia destinado, a fim de redimir o gênero humano. Se tais são os sublimes exemplos deixados pelo próprio Deus, quanta lição devem tirar deles os que desejam que suas obras produzam plenamente seus frutos! “Dei- -vos o exemplo para que, como Eu vos fiz, assim façais também vós” (Jo 13, 15).

Seguindo os passos de Nosso Senhor

   Quem se dispõe, com sinceridade de coração, a seguir os passos de Nosso Senhor não caminha, mas voa nas vias da virtude. E, justamente por isso, faz de sua vida um contínuo sacrifício de louvor, desejando antecipar cada vez mais o dia em que o convívio com a Santíssima Trindade será eterno. Portanto, aqueles que se dedicam à ação, que vivem nos afazeres do século, não se julguem excluídos desta via. Pelo contrário, o fogo que deve brilhar na alma de todo batizado se acende na experiência mística do contato com Deus na oração, no recolhimento e na contemplação, que deve fazer parte da vida cotidiana de cada um. E é por meio dela que se adquirem forças para a santidade.

   A via contemplativa é como uma arca em que se guarda aquilo que se pensou, se sentiu e ouviu, para, no momento oportuno, dar a conhecer aos demais por meio de palavras e bons exemplos, provando que, ainda nesta vida, apesar das limitações e contingências humanas, pode-se cumprir o mandato de Cristo: “sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito”. (Revista Arautos do Evangelho, Novembro/2016, n. 179, pp. 22 à 25)

 
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