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Comentários ao Evangelho


A maior felicidade
 
AUTOR: MONS. JOÃO CLÁ DIAS, EP
 
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No convívio nobre e elevado com os outros, ou no relacionamento calmo, silencioso e sereno com Deus, encontra-se a maior felicidade nesta terra.

30 Tendo os Apóstolos voltado a Jesus, contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado, 31 e Ele disse-lhes: “Vinde à parte, a um lugar solitário, e descansai um pouco”. Porque eram muitos os que iam e vinham, e nem tinham tempo para comer. 32 Entrando, pois, numa barca, retiraram-se à parte, a um lugar solitário. 33 Porém, viram-nos partir, e muitos perceberam para onde iam e acorreram lá, a pé, de todas as cidades, e chegaram primeiro que eles. 34 Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor, e começou a ensinar-lhes muitas coisas (Mc 6, 30-34).

I – Solidão e convívio

A maior felicidade nesta terra encontra- se no convívio, quando este é respeitoso, nobre e elevado. No Céu, esse convívio atingirá a perfeição no pleno gozo da Visão Beatífica. Por isso, à primeira vista não é fácil entender os elogios feitos pelos Santos à solidão. Entretanto, o isolamento pode vir a ser abençoado, pois constitui um meio ideal para um excelente relacionamento com Deus. Pode acontecer que na sadia renúncia ao instinto de sociabilidade, por motivos sobrenaturais, seja-nos dado – por uma especial graça e chamado de Deus – um inefável convívio com Ele. Esses dois gêneros de convívio com Deus constituem justamente a essência dos primeiros versículos do Evangelho do 16º Domingo do Tempo Comum.

Reações animais do homem – As paixões

Por sermos compostos de corpo e alma, temos algo em comum com os animais, como também com os Anjos. Em nossa imaginação e apetite sensitivo – sobretudo na raiz de nossas paixões ou emoções – somos semelhantes aos animais. Basta estarmos diante de um objeto que nos atraia ou de um outro que nos cause rejeição, para que nossas emoções e paixões nos levem a reagir de forma irracional.

Uma águia, por exemplo, descerá das alturas num vôo picado e certeiro sobre um coelho a correr pela relva. Nesse ato encontra-se um como que amor dela pelo alimento, nascido do instinto de conservação, e do qual podem brotar, por sua vez, a alegria, a ousadia, como também, o ódio aos obstáculos e às contradições, o temor, etc. Nessas tendências e reações podemos notar uma similitude com o mecanismo de nossas paixões.

Nem sempre as paixões são avassaladoras. Entretanto, não é raro acontecer que o sejam. De si, são neutras. Porém, quando orientadas, governadas e disciplinadas pela vontade e pela razão, e estas pela fé, elas se transformam em poderosos meios para operar maravilhas. No extremo oposto – na sua desordem – temos os vícios, tão freqüentes depois do pecado original e, sobretudo, em nossos dias: inveja, ciúmes, mentira, sensualidade, gula, etc.

O amor desregrado às criaturas e a verdadeira felicidade

Em nós, homens, esse sentir se evidencia não só com mais profundidade, mas com uma intensidade incomparavelmente maior: a inteligência, associada à imaginação, concebe um bem universal, e a vontade o anseia ilimitadamente. Santo Agostinho assim descreve esse dilema da natureza humana:

“Bom é Aquele que me criou. Ele é o meu bem, e eu exulto em sua honra por todos os bens que constituem a minha existência desde a infância. Meu pecado era não procurar n’Ele, e sim nas suas criaturas – isto é, em mim mesmo e nos outros -, os prazeres, as honras e a verdade. Eu me precipitava assim na dor, na confusão e no erro” (1) .

De fato, só em Deus encontra o homem a plenitude de sua felicidade. Se erigir uma criatura para O substituir, lançar-se-á em sua busca com sede insaciável. É terribilíssimo esse drama da insatisfação e, entretanto, tão comum. Os animais se saciam fora de Deus, em seu apetite natural. O homem, porém, está sempre concebendo novos e requintados prazeres, procurando-os com desejo infinito. Ouçamos, a esse respeito, São Tomás de Aquino:

“É impossível estar a bem-aventurança do homem em um bem criado. A bem-aventurança é um bem perfeito que aquieta totalmente o desejo, pois não seria o último fim se ficasse algo para desejar. O objeto da vontade, que é o apetite humano, é o bem universal, assim como o objeto do intelecto é a verdade universal. Disto fica claro que nenhuma coisa pode aquietar a vontade do homem senão o bem universal. Mas tal não se encontra em bem criado algum, a não ser só em Deus, porque toda criatura tem bondade participada. Por isso, só Deus pode satisfazer plenamente a vontade humana, segundo o que diz o Salmo 102, 5: ‘que sacia com bens o teu desejo’. Conseqüentemente, só em Deus consiste a bemaventurança do homem” (2).

Essa explicação torna patente aos nossos olhos quanto é inatingível a felicidade plena, para nós, criaturas racionais, se erigirmos um fim último que não seja o próprio Deus. Pois um bem limitado facilmente será reconhecido como tal por nossa inteligência que, em seguida, conceberá outro superior. Assim como também será movida a vontade a desejá-lo. E assim, sucessivamente, até o infinito.

A busca de Deus no convívio ou na solidão

Esse Bem infinito e eterno é que torna gaudioso nosso convívio, ou nossa solidão, pois até mesmo no isolamento, quando sobrenaturalizado, buscamos o relacionamento com Deus, devido à nossa natureza sociável, conforme ensina São Tomás: “O homem é naturalmente um ser sociável e, por isso, tem apetência para viver em sociedade, e não como solitário, ainda que não necessitasse dos outros para viver” (3). E afirma o Eclesiastes: “Melhor é, pois, estarem dois juntos do que estar um só, porque têm a vantagem da sua sociedade” (Ecl 4, 9).

Com base no anteriormente exposto, compreendemos melhor quanto devemos procurar esse Bem infinito em meio às nossas amizades, pois os seres humanos devem ser elementos para melhor conhecermos e amarmos a Deus. Se para tal objetivo concorrem até as criaturas inanimadas, quanto mais os Santos. Foi, aliás, o que se passou no conhecido episódio do encontro de três santos num convento em Roma:

“Quando um dia São Francisco de Assis, Santo Ângelo e São Domingos de Gusmão encontraram-se frente a frente, na cela deste último, no Convento de Santa Sabina, em Roma, puseram-se os três de joelhos, cada um admirando as virtudes e vocações dos outros dois. Na capela existente atualmente, nesse local, uma inscrição comemora o histórico acontecimento.” (4)

Infelizmente, nos dias atuais, o convívio entre os homens se realiza cada vez mais com base no puro egoísmo, fato este que torna difícil degustar a cena do reencontro dos Apóstolos com o Divino Mestre.Marcos, que tanto aprendera na proximidade de Pedro, procura sintetizar essa felicidade de situação com estas simples palavras: “Tendo os Apóstolos voltado a Jesus…”

II – O convívio

Conforme se lê no versículo 7 deste mesmo capítulo, os Apóstolos haviam sido mandados em missão, dois a dois, a diferentes lugares. Não há informação histórica sobre quanto durou essa separação entre eles, nem mesmo a respeito dos lugares percorridos. Bem se podem imaginar as energias físicas e emocionais que eles empregaram nessa primeira aventura apostólica. Passar da atividade de pescadores para as de exorcistas, taumaturgos e pregadores, sem um longo curso preparatório em alguma academia, deve ter causado um não pequeno desgaste a cada um, sem contar as saudades indizíveis e crescentes que os assaltaram. Teriam eles fixado uma data para o reencontro? Também nada se sabe sobre esse particular. Ele pode ter-se dado até mesmo por força do acaso, mas o certo é que todos coincidiram no momento de “voltar a Jesus”.

Reencontro com o Mestre

30 Tendo os Apóstolos voltado a Jesus, contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado.

Tratava-se da primeira grande separação. Depois de tanto tempo e de inúmeras aventuras, retornar para junto do Mestre deve ter sido um acontecimento marcante na vida de cada um deles. Apesar de Cristo Jesus viver sob os véus de uma natureza humana padecente e mortal, qualquer ato de admiração e de benquerença em relação a Ele era, no fundo, uma adoração direta a Deus. Ali estava o mesmo Jesus que mais tarde seria o da Ressurreição ou da Ascensão, atuando no interior de seus eleitos, com toda a penetração de sua divindade. Que convívio, neste mundo, poderia ser mais excelente do que esse? O Mestre era o próprio Deus, agindo pela graça em suas almas e, ao mesmo tempo, fazendo uso de sua voz e palavras para instruí-los. Todos os termos por Ele utilizados eram os mais perfeitos e insubstituíveis, numa linguagem elevada, nobre e bíblica, sempre acompanhada de um afeto jamais descritível ou superável. Em nenhum momento deixava o Messias de atraí-los e de conduzi-los ao desejo das coisas celestes.

O clima de cordialidade, amor fraterno e alegria criado por Jesus devia ser paradisíaco. Todos se sentiam à vontade e “contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado”. E não consta, em nada, a presença do maldito vício da vaidade, entre eles. De início, aprenderam a lição: “Sem Mim, nada podeis fazer” (Jo 15, 5). Devia haver muita manifestação de humildade, da parte deles, reconhecendo em Jesus a fonte de todos os triunfos obtidos naquele princípio de evangelização.

Com toda certeza, naquela primeira missão apostólica, um fator teria contribuído para os unir ainda mais entre si, colocando-os em maior dependência de Nosso Senhor: as discussões com os escribas e fariseus. Estes não poderiam ter estado ausentes, pois, objetantes, obstinados e petulantes como sempre, certamente procuraram tornar impossível a atuação dos Apóstolos. Evidentemente, os demônios que iam sendo exorcizados dos possessos somavam suas forças às dos fariseus para combater os discípulos de Jesus. Esse choque de opiniões, métodos e doutrinas ia separando os Apóstolos, pouco a pouco, da mentalidade, espírito e concepções nas quais haviam haurido seu ensinamento religioso desde a infância. Eralhes necessário percorrer uma via purgativa para expungir do fundo da alma todos os erros ideológicos e desvios teológico-morais incutidos por seus antigos mestres. Ora, a união cresce entre aqueles que têm de enfrentar, em comum, um obstáculo. Sentir o desagrado no relacionamento com os de sua antiga escola robustecia neles o desejo de reencontrar os verdadeiros irmãos e, sobretudo, o Mestre. Quanto mais os discípulos se afervoravam no amor a Jesus, mais se distanciavam de seus companheiros de outrora, e vice-versa.

Convívio fraterno entre os Apóstolos

Ia-se, desse modo, constituindo uma ideal e fraterna comunidade entre os Apóstolos, na qual tudo se transformava em perdão, amor e benevolência. Essa era a real amizade. Num ambiente assim, desfrutase uma felicidade insuperável aqui na terra, preâmbulo da eterna, no Céu, pois em ambas tem-se a Deus como centro.

Claro está que a visão direta de Deus, face a face, será nossa felicidade essencial. Contudo, não devemos desprezar o convívio com os Bem- Aventurados no Céu (5).

Pouco se fala da bem-aventurança acidental no Céu, mas, se Deus a criou, é porque cabe a ela um papel importante. Além da Visão Beatífica, tem-se no Céu o gozo dos bens criados e legítimos que corresponde às nossas temperadas aspirações. É por isso que, na eternidade, existe a auréola dos mártires, dos doutores e das virgens. Estará entre esses gozos o reencontro das verdadeiras amizades e de todo bem feito sobre a terra. E, por fim, a retomada de nossos corpos, em estado glorioso.

Esse reencontro com o Divino Mestre assim é descrito pelo famoso Maldonado:

“Contaram-Lhe tudo o que tinham feito e ensinado. O verbo fazer é usado pelo Evangelista, de modo absoluto, no sentido de fazer milagres, como também em São Lucas (9, 7 e At 1, 1).

“Havia-lhes ordenado Cristo que ensinassem e confirmassem sua doutrina com os milagres (Mt 10, 1.7-8; Lc 9, 2). De ambas Lhe prestam contas ao regressar, embora não saibamos o motivo. A maior parte dos autores supõe que procederam assim por parecer justo e razoável que dessem conta da missão a Quem os tinha enviado. Exemplo que deve ser seguido pelos pregadores, atribuindo a Cristo aquilo de bom que tiverem obtido em seus sermões, como fazem notar São Jerônimo, Estrabão e Teofilacto. O que é inteiramente real, sendo louvável que o fizessem, como julgamos que de fato fizeram. Mas suponho que o motivo devia ser outro, como é razoável conjecturar. É que eles voltavam dessa missão cheios de alegria e muito animados, vendo que tudo tinha acontecido como desejavam, de modo que, dando glória ao Senhor, relatam a Cristo tudo quanto tinham ensinado e os milagres que tinham feito, como afirma São Lucas que [noutra ocasião] procederam os setenta e dois discípulos (10, 17). Supõe São Beda que não só contaram o que haviam realizado e ensinado, como também o que João tinha sofrido, como se não o soubesse Cristo…” (6).

III – A solidão

31 Ele disse-lhes: “Vinde à parte, a um lugar solitário, e descansai um pouco”. Porque eram muitos os que iam e vinham, e nem tinham tempo para comer.

Eis o outro lado da “moeda” do convívio com Deus: o silêncio, o isolamento, o repouso.

O próprio Jesus, em sua humanidade santíssima, sentia a necessidade disso, para poder gozar da máxima intimidade com Deus, apesar de estar hipostaticamente unido a Ele. Como se não tivessem bastado os trinta anos de sua existência em Nazaré, retirara- se a um completo isolamento de quarenta dias, no deserto, em silêncio, na perspectiva de sua vida pública. E mesmo durante o tempo de sua atuação no meio do povo, freqüentemente refugiava-se no silêncio dos montes. Por fim, antes da Paixão, abraçou o doloroso abandono de três horas no Horto das Oliveiras.

É nesse sentido que nos adverte São João da Cruz: “Uma palavra pronunciou o Pai, que foi seu Filho, e esta fala sempre em eterno silêncio, e em silêncio há de ser ouvida pela alma” (7).

Deus se faz ouvir no silêncio, na serenidade e na calma

Quão misterioso e fundamental é o silêncio! Deus mais nos visita no recolhimento do que nas atividades externas.
Em geral, nossa vida sobrenatural dá passos mais firmes e decididos no silêncio do que em meio às ações. Os Sacramentos também produzem a graça em nossas almas sob o manto do silêncio. Este nos ensina a falar, como afirmava Sêneca: “Quem não sabe calar, não sabe falar”.

Importantes, também, são a serenidade e a calma no relacionamento humano ou na contemplação. Jesus, no Evangelho, nunca dá a impressão de estar asfixiado pela pressa. Às vezes até “perde tempo”: todos O procuram e Ele não Se deixa encontrar, tão absorto está na oração. No trecho evangélico de hoje, convida seus discípulos a “perderem tempo” com Ele: “Vinde à parte, a um lugar solitário, e descansai um pouco”. Recomenda freqüentemente não se agitar.
Quantos benefícios recebe nossa saúde da “lentidão”!

A esse respeito, observa com acerto o Pregador da Casa Pontifícia, Frei Raniero Cantalamessa: “Se a lentidão tem conotações evangélicas, é importante dar valor às ocasiões de descanso ou de demora que estão distribuídas ao longo da sucessão dos dias. O domingo, as festas, se são bem utilizadas, dão a possibilidade de cortar o ritmo de vida demasiado excitante e de estabelecer uma relação mais harmônica com as coisas, as pessoas e, sobretudo, consigo próprio e com Deus” (8).

Os Apóstolos deviam estar exaustos depois de tantas atividades e por isso – comenta o Pe. Manuel de Tuya OP -, terminadas as narrações das viagens, “Cristo quer proporcionar- lhes uns dias de descanso, levando- os a um ‘lugar solitário’, que estava ‘perto de Betsaida’ (Lc 9, 10). A causa era que nem mesmo depois de seu trabalho missionário, particularmente intenso, deixavam-nos sozinhos: as pessoas afluíam para Cristo. Marcos descreve esse assédio das turbas com sua linguagem realista: ‘Porque eram muitos os que iam e vinham, e nem tinham tempo para comer’. Talvez essas multidões que vêm, nessa ocasião, possam ser um indício do fruto dessa ‘missão’ apostólica” (9).

Fugir da agitação para se encontrar com Deus

32 Entrando, pois, numa barca, retiraram-se à parte, a um lugar solitário.

Conta-nos São Jerônimo que Davi, em sua infância, fugia da agitação da cidade e buscava a solidão dos desertos. Ali vencia os ursos e os leões. E as Escrituras nos contam que Judite tinha, na parte mais elevada de sua casa, um quarto recolhido onde permanecia enclausurada com suas fiéis servas (Jt 8, 5). Os homens contemplativos, sempre que possível, abandonam o bulício do mundo e abraçam o isolamento para viver de Deus, com Ele e para Ele (10). Também para Jesus e os Apóstolos tornava-se impossível o repouso em Cafarnaum, onde eram muito conhecidos.

“À agitação ordinária, decorrente da pregação e das curas – escreve o Cardeal Goma y Tomás – , acrescentava- se a proximidade da Páscoa, que transformava a cidade marítima em centro de confluência das caravanas que subiam para Jerusalém: ‘Porque eram muitos os que iam e vinham, e nem tinham tempo para comer’. Por isso se dirigiram à praia e, entrando numa barca, ‘retiraram-se à parte, a um lugar solitário’ do território de Betsaida. Havia duas cidades com este nome: uma na parte ocidental do lago, pátria de Pedro e André, e a outra na parte oriental, em direção ao norte, junto à foz do Jordão. Recebera o nome de Betsaida Júlias, porque o tetrarca Filipe, que a tinha embelezado, quis que se chamasse Júlias, em homenagem à filha de César Augusto. A barquinha que conduzia Jesus e os Apóstolos aportou no outro lado do mar da Galiléia, ou seja, de Tiberíades, junto à planície solitária que se abre ao sul de Betsaida. João escreve para os fiéis da Ásia, que desconheciam a topografia da Palestina, indicando-lhes a localização do mar pelo nome da cidade que lhe dá origem ao nome” (11).

A caridade pode ser definida como a própria vida de Deus em nós. Ora, Deus é ao mesmo tempo contemplação e ação. Por outro lado, a virtude é eminentemente difusiva. Por isso afirma São Tiago ser morta a fé quando não frutifica em obras (Tg 2,17). De onde decorre ser a vida mista, segundo São Tomás de Aquino, a mais perfeita, por conjugar ação e contemplação. Assim, no Evangelho de hoje, Jesus nos ensina quanto devemos ser perfeitos no convívio com Deus, quer no isolamento, quer no relacionamento com os outros.

IV – Jesus nos governa com doçura

33 Porém, viram-nos partir, e muitos perceberam para onde iam e acorreram lá, a pé, de todas as cidades, e chegaram primeiro que eles.

Não sabemos se, devido ao vento, o barco terá dado suas voltas em sentido contrário, ou se resolveram retardar o deslocamento pelo fato de a conversa ter atingido uma aprazível atração. O certo é que um grande público os precedeu naquela distância de 12 quilômetros (12). Homens, mulheres, crianças – vários dos quais enfermos – atravessaram o Jordão num verdadeiro testemunho de fé e de devoção a Jesus. “Assim também, não devemos esperar que Cristo nos chame, mas devemos nos antecipar para ir até Ele”, conforme pondera Teófilo (13).

É para nós, esta passagem, um excelente incentivo e convite para procurarmos um convívio mais intenso e prolongado com nosso Salvador. Há quanto tempo não nos aguarda Ele, debaixo das Sagradas Espécies, nos tabernáculos de todas as igrejas?

Ovelhas sem pastor – compaixão de Jesus

34 Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor, e começou a ensinar- lhes muitas coisas.

A primeira Leitura deste 16º Domingo do Tempo Comum nos traz esta Lamentação de Jeremias: “Ai dos pastores que deixam perder-se e dispersar- se o rebanho miúdo de minha pastagem! (…) Reunirei o que restar das minhas ovelhas (…) e as trarei para as pastagens em que se hão de multiplicar” (23, 1-3). São os gemidos do próprio Deus em vista de suas almas fiéis em situação de abandono.

Também Ezequiel, por inspiração divina, condena dura e severamente em seu capítulo 34 os maus pastores de Israel e anuncia que Deus enviará às suas ovelhas um Bom Pastor, e este “será príncipe no meio delas” (v. 24). De fato, aqui é Ele contemplado no versículo que estamos comentando. Deus demonstrou verdadeiro amor divino ao criar a função de pastor entre os homens, pois desejava servir-Se dela para melhor simbolizar seu insuperável zelo por todos nós. Não sem razão, enviou seus Anjos a convidar os pastores da região de Belém para serem os primeiros a adorá-Lo no presépio. E Ele Se apresenta como o Pastor Perfeito, pois é Aquele que dá a vida por suas ovelhas (Cf. Jo 10,11), conforme maravilhosamente comenta São Gregório Magno em sua Homilia nº 14.

Ao descer da barca, Jesus se compadece daquelas ovelhas sem pastor e passa a ensiná-las. Não as instruía, porém, só com palavras. Muito mais! Sobretudo se levarmos em conta seu cuidado pela alimentação de toda aquela multidão, tal como transparecerá no milagre da multiplicação dos pães e peixes, narrado nos versículos seguintes. Jesus comunicava sua graça, sua vida, seu amor. Quão inefável devia ser o desvelo d’Ele ao ensinar suas ovelhas, pois, mais do que dar a vida por elas, desejava ser a própria vida delas! Ele vive em cada uma das ovelhas que se deixam perpassar por sua graça, e está sempre pronto a auxiliá-las e oferecer-lhes os Sacramentos.

O governo pastoral

Neste mesmo versículo, Jesus se torna excelente exemplo para todo tipo de governo, quer seja familiar, quer civil ou eclesiástico. Mas deste último, de maneira especial, pela forma toda paternal – quase se poderia dizer “maternal” – com que deve ser exercido: com enorme doçura e suavidade, grande empenho e dedicação. Por isso, o governo eclesiástico é chamado “pastoral”, seus documentos são denominados “pastorais”, etc.

Belíssimas são as palavras de São Pedro a esse respeito: “Apascentai o rebanho de Deus que vos está confiado, tende cuidado dele, não à força, mas de boa vontade, segundo Deus; não por amor de lucro vil, mas por dedicação; não como tiranos daqueles que vos foram confiados, mas fazendo- vos modelo do rebanho. Quando o Príncipe dos Pastores aparecer, recebereis a coroa de glória que jamais murchará” (1 Pd 5, 2-4). (Revista Arautos do Evangelho, Jul/2006, n. 55, p. 8 à 14)

 
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