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Comentários ao Evangelho


Dar a César, mas sobretudo a Deus!
 
AUTOR: MONS. JOÃO SCOGNAMIGLIO CLÁ DIAS, EP
 
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Ao silenciar aqueles que fundamentavam sua visualização do mundo sobre uma falsa verdade, o Divino Mestre nos ensina o perfeito equilíbrio entre nosso fim último e a legítima solicitude pelo que é contingente.

Evangelho

Naquele tempo: 15 Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra. 16 Então mandaram os seus discípulos, junto com alguns do partido de Herodes, para dizerem a Jesus: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não Te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências. 17 Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?” 18 Jesus percebeu a maldade deles e disse: “Hipócritas! Por que Me preparais uma armadilha? 19 Mostrai-Me a moeda do imposto!” Trouxeram- Lhe então a moeda. 20 E Jesus disse: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda?” 21 Eles responderam: “De César”. Jesus então lhes disse: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mt 22, 15-21).

I – O entrechoque da Verdade absoluta com as falsas verdades

  Há no mais fundo da alma humana uma entranhada aspiração posta por Deus, à maneira de instinto, que a orienta constantemente na procura da verdade.

   Após a falta de nossos primeiros pais, entretanto, essa busca não está isenta de dificuldades, pois o pecado original privou nossa frágil natureza do dom de integridade, concedido pelo Criador para dotá-la de perfeito equilíbrio. Por essa razão, estabelecida em nós a luta entre uma lei superior e uma inferior, em geral vence a segunda.

   Isso se passa, sobretudo, em relação ao orgulho, terrível pecado capital que se encontra na raiz de todas as ofensas a Deus e tem como uma de suas piores consequências a negação da verdade. Quando o homem não adere plenamente ao que o Senhor lhe pede na Lei e prefere seguir o desregramento das próprias paixões, ele precisa criar uma “verdade” que justifique suas más ações. E lhe será mais fácil aceitar as falhas das pseudoverdades assim elaboradas, que admitir a verdade enquanto tal. Por quê?

   Quando a verdade é exposta no seu todo e de maneira convincente, a pessoa é obrigada a fazer uma escolha, que muitas vezes lhe exige abandonar seus desvios. Incomodada, ela se toma de ódio e procura um meio de sufocar o bem que lhe foi dado contemplar.

   Essa realidade se verificou na História, de forma arquetípica, absoluta e imponente, com Nosso Senhor Jesus Cristo, a Verdade Encarnada. Nem sempre Ele Se apresentou no seu esplendor, mas oculto sob a carne humana mortal, porque, se tivesse aparecido tal como é, na glória da divindade, cessaria o estado de prova de seus circunstantes, os quais, postos diante da evidência, não mais teriam a possibilidade de uma escolha. No entanto, mesmo na debilidade de nossa natureza, Ele manifestou em diversas ocasiões ser “a Verdade” (Jo 14, 6), como ao dizer “Ego sum! – Eu sou!” aos soldados que procuravam prendê-Lo. Estes “recuaram e caíram por terra” (Jo 18, 6), pois não podiam negar o poder e a grandeza d’Aquele a quem buscavam como a um malfeitor.

   Em sentido oposto, os fariseus haviam constituído, sob a capa de religiosidade, uma doutrina sobre a verdade inteiramente adaptada às suas conveniências. O inevitável entrechoque da Verdade absoluta com a pseudoverdade foi num crescendo, até suscitar nesses maus israelitas o desejo irrefreável de destruir o Salvador.

Fariseus e herodianos conspiram contra Jesus, por James Tissot
– Museu de Brooklyn, Nova York

II – A tática dos hipócritas

  O Evangelho do 29º Domingo do Tempo Comum narra um episódio muito significativo a respeito desse embate. Encontrava-Se Nosso Senhor Jesus Cristo na sua última estadia em Jerusalém, às vésperas de sua dolorosa Paixão, e acabava de pronunciar três parábolas que deixavam os mestres da Lei e os fariseus em má situação.

   A primeira delas descrevia a atitude de dois filhos chamados por seu pai a trabalhar na vinha da família (cf. Mt 21, 28-32). O que foi convocado antes recusou, mas depois, arrependido, foi para o campo. O segundo jovem, embora tivesse aceitado, terminou por não comparecer. O Divino Mestre comparava a conduta do primeiro filho à dos pecadores diante do convite à conversão lançado pelo Precursor, em contraposição ao comportamento dos fariseus que, firmados numa observância meramente externa da Lei mosaica, rejeitavam, entretanto, qualquer movimento de arrependimento por suas múltiplas faltas.

   A segunda parábola era a dos vinhateiros homicidas (cf. Mt 21, 33-45). Contratados para trabalhar e guardar uma vinha, eles mataram os empregados do patrão e, inclusive, seu próprio filho. O Evangelista frisa que os príncipes dos sacerdotes e os fariseus compreenderam o quanto esta imagem se referia à dureza de coração deles e de seus antepassados ao longo da História da salvação, em face das advertências divinas proferidas pelos lábios dos profetas. E isso os levaria a assassinar o Filho de Deus feito Homem.

   Por fim, a terceira metáfora apresentava o banquete das bodas do filho do rei (cf. Mt 22, 2-14), ao qual os convidados de mais categoria, mas mal-educados, não compareceram, obrigando os servos reais a sair à procura de “todos quantos acharam” (Mt 22, 10) pelos caminhos, para participarem da festa. Com esta figura, Nosso Senhor acenava novamente para a mudança de panorama que trazia a Redenção e a rejeição daqueles falsos pastores à sua vinda.

Um plano para surpreender Jesus

Naquele tempo: 15 Os fariseus fizeram um plano para apanhar Jesus em alguma palavra. 16a Então mandaram os seus discípulos…

    Os fariseus entenderam perfeitamente a censura que lhes era dirigida e ficaram furiosos. Conversando entre si, arquitetaram um plano… Estavam bem delineadas quais medidas tomariam contra Jesus.

   Um dos aspectos do estratagema consistia em enviar seus discípulos, previamente instruídos, para fazer certas perguntas a Nosso Senhor. De fato, seria humilhante para eles mandar um rabino já formado, pois isso significaria uma declaração de ignorância, ao reconhecerem que os seus não haviam aprendido as lições sobre a matéria em questão, ou que estas não tinham sido estudadas na escola por eles frequentada. Ademais, ficaria patente que eles estavam com más intenções, já que uma pessoa instruída jamais levantaria um problema doutrinário desse gênero com alguém considerado inferior. Ao enviar discípulos, ou seja, estudantes ainda não credenciados para o ensino por não possuírem formação completa, acreditavam evitar tais inconvenientes.

Coligação contra o bem de duas correntes errôneas e opostas

16b …junto com alguns do partido de Herodes…

   A peculiaridade desse plano é que os fariseus se faziam acompanhar por alguns herodianos, seus inimigos viscerais. Queriam, assim, dar a Nosso Senhor a ideia de que discutiam sobre algum problema e não sabiam bem como resolvê- lo.

   Com efeito, as teses dos seguidores do partido de Herodes causavam grande indignação entre os fariseus, e ambas as facções se devotavam um ódio mortal. Estes tinham constituído uma doutrina sobre a verdade segundo a qual o que havia de mais importante na sociedade era a organização espiritual. Por isso, estavam em luta contra os herodianos, que defendiam a sujeição da religião e de seus chefes ao poder civil, por ser o homem quem deveria governar o homem.

   Havia, portanto, já naquele tempo, uma luta entre as duas esferas. De um lado, o poder eclesiástico representado por fariseus, legistas, sacerdotes e seus príncipes, bem como pelos saduceus, embora numa perspectiva mais mundanizada. Do outro, o poder político, encarnado nos herodianos.

Frente e verso de um áureo de Tibério
(moeda romana da Época de Nosso Senhor)

   Como, então, existindo uma oposição tão radical entre as duas seitas, elas se uniam agora com um mesmo objetivo, isto é, deixar Nosso Senhor em um impasse? Por incrível que pareça, os fariseus queriam transladar a polêmica do campo religioso para o político. Após saírem estrepitosamente derrotados de todas as controvérsias com o Divino Mestre, perceberam que sua situação era a pior possível, pois se tornara manifesto aos olhos do povo que eles tinham aderido a uma mentalidade errada e recusado o verdadeiro caminho da salvação, representado por Jesus Cristo. Fugindo do conflito espiritual, julgavam que Ele, pouco experiente no âmbito político, não saberia se haver em um debate desse cunho.

   Quando isso acontecesse, os herodianos estariam ali para servir de testemunhas e denunciar perante a autoridade civil qualquer deslize de Nosso Senhor a respeito do tema. Ele logo seria convocado para um julgamento que, consideradas as arbitrariedades da época, bem poderia terminar numa execução capital.

   Vemos nessa cena a realização de um princípio infalível: sempre que se trata de destruir o Bem, todos os maus, por mais contrários que sejam entre si, põem de lado suas pretensas diferenças e se unem.

A falsidade do mal

16c …para dizerem a Jesus: “Mestre, sabemos que és verdadeiro e que, de fato, ensinas o caminho de Deus. Não Te deixas influenciar pela opinião dos outros, pois não julgas um homem pelas aparências”.

   Chamar Nosso Senhor de “Mestre” e dizer que Ele julgava por cima de qualquer aparência, importava em reconhecê-Lo externamente como Aquele que ensina, declarando que estavam ali para aprender… Queriam, assim, mostrar que eram submissos e recorriam a Jesus por terem visto o quanto Ele transmitia a doutrina verdadeira e não fugia a nenhuma indagação, mesmo espinhosa.

   De fato, Nosso Senhor é a Verdade e, portanto, a Integridade em relação àquilo que afirma. Mas, vindo de fariseus hipócritas, tudo isso não passava de falsidade! Tal atitude tinha sido recomendada pelos rabinos e consistia numa mera captatio benevolentiæ, ou seja, almejavam apenas conquistar a boa vontade do Mestre para que, inteiramente lisonjeado e amolecido, Ele Se dispusesse com mais facilidade a responder qualquer questão.

Uma pergunta capciosa

17 “Dize-nos, pois, o que pensas: É lícito ou não pagar imposto a César?”

   Se havia algo que deixava os fariseus indignados contra a dominação do Império Romano era, justamente, o pagamento de impostos. Desde o fim da época dos Macabeus, várias décadas antes, os judeus eram sufragâneos dos romanos, os quais lhes davam proteção militar, respeitavam seus costumes e autoridades religiosas, mas, em troca, cobravam-lhes um tributo, que vinha se somar ao tradicional imposto religioso pago ao Templo.

   Os fariseus aproveitavam essa situação, como tantas vezes aconteceu ao longo da História, para indispor o povo contra o governo estrangeiro. Havia discussões intérminas, cuja conclusão eram diversos argumentos, dos mais categóricos, a propósito da ilicitude de pagar taxas ao império, uma vez que César era um imperador pagão, sem vínculo algum com o Deus verdadeiro. Em consequência, pagar o imposto era quase como oferecer uma vítima em louvor a um ídolo. Isso, porém, não era dito publicamente, porque configuraria um ato de revolta contra o poder civil constituído. Já os herodianos, bem relacionados com o dominador romano, sustentavam a tese oposta.

   Inquirido dessa forma, Nosso Senhor estava sendo obrigado a opinar diante de todos sobre o assunto. Se Ele declarasse que não se deveria pagar o imposto, cairia na atitude pública que os fariseus evitavam. Logo os herodianos sairiam dali e O denunciariam às autoridades políticas como réu de sublevação, um crime de lesa- majestade que O levaria à morte. Quem sabe se eles já não tinham dado ordem, caso Ele respondesse como esperavam, para prendê-Lo imediatamente?

   Se, pelo contrário, Ele afirmasse que o imposto deveria ser pago só a César, as autoridades judaicas, nas mãos dos fariseus, O acusariam de inimigo da Lei e O caluniariam junto ao povo como blasfemo e traidor da nação.

   Nosso Senhor estava, aparentemente, em uma difícil situação. Opinando em um ou outro sentido sua obra seria destruída, pois, fosse por uma razão política ou religiosa, Ele morreria antes de completar a vida pública.

   Maldade da parte de seus adversários, que não suportavam mais o esplendor da Verdade, Deus feito Homem, e lição para nós: a partir do momento em que, enquanto católicos, começamos a manifestar a força e o fulgor de Nosso Senhor Jesus Cristo, os “fariseus” se juntam a “Herodes” para nos perseguir… Torna-se necessário, portanto, imitarmos o espírito sagaz de que o Verbo Encarnado nos dá exemplo nessa ocasião.

São Luís IX, Rei de França, julgando e abençoando
seu povo – Tesouro da Catedral de Notre-Dame, Paris

Nosso Senhor os conhecia desde toda a eternidade

18 Jesus percebeu a maldade deles e disse: “Hipócritas! Por que Me preparais uma armadilha?”

   No que diz respeito ao conhecimento experimental, puramente humano, São Mateus atesta que naquela circunstância Nosso Senhor “percebeu a maldade deles”. É bem verdade, mas Ele já a conhecia desde toda a eternidade e também desde o instante em que, criada sua Alma e infundida no Corpo, ela se encontrou na visão beatífica.

   Aqueles fariseus não estavam diante de um simples homem, mas de alguém com personalidade divina. Sendo a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Ele conhecia o desenrolar da História desde todo o sempre. Ademais, enquanto Homem possuía a ciência infusa, conhecimento de todas as coisas revelado por Deus. Nada Lhe era oculto, e por isso exclamou: “Hipócritas!” Embora exteriormente eles fizessem afirmações elogiosas, em seu interior tencionavam preparar-Lhe uma armadilha, com o intuito de matá-Lo.

Humilhados por suas próprias palavras

19 “Mostrai-Me a moeda do imposto!” Trouxeram-Lhe então a moeda. 20 E Jesus disse: “De quem é a figura e a inscrição desta moeda?” 21a Eles responderam: “De César”.

   O imposto do império devia ser pago com dinheiro romano, o que obrigava os judeus a trocar a moeda local pela estrangeira. O contrário acontecia com os israelitas que vinham de fora para adorar a Deus em Jerusalém: precisavam fazer o câmbio por numerário cunhado no Templo, uma vez que o imposto religioso não podia ser pago com o dinheiro pagão.

   Ora, ao pedir que Lhe mostrassem a moeda do imposto, Nosso Senhor criou uma insegurança em seus interlocutores, pois não sabiam qual delas Lhe apresentar. Ele, de fato, não tinha especificado a que imposto se referia, se ao tributo defendido pelos herodianos, ou ao único que consentiam em pagar os fariseus. Por fim, aquele que os comandava por trás certamente lhes soprou que entregassem a Jesus a moeda romana. Nosso Senhor a levantou, mesma atitude que tomaria se Lhe passassem dinheiro judaico, e perguntou de quem era “a figura e a inscrição” que possuía. Nela estava cunhada a efígie do imperador reinante cingido de louros, provavelmente Tibério ou algum outro anterior. Na primeira hipótese, a inscrição da moeda dizia: “Tibério César, sublime filho do divino Augusto”. Ao fato da dominação estrangeira unia-se a divinização do imperador… era a heresia das heresias!

   Diante da evidência, os aprendizes de rabino responderam sem hesitar: “De César”. Inteligentes, eles tiraram todas as consequências de suas palavras e, humilhados, perceberam que o feitiço havia virado contra o feiticeiro…

Deus quer a existência da autoridade civil

21b Jesus então lhes disse: “Dai pois a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.

   Em face dessa conclusão magnífica, aqueles novatos ficaram calados… Uma situação tão complicada, segundo os critérios dos que tentavam Nosso Senhor, foi desfeita com maestria extraordinária por Aquele que é a Sabedoria Eterna e Encarnada. A simples circulação dessa moeda entre o povo importava em reconhecer a supremacia do poder romano sobre a nação israelita, e isso, de si, desde que não se mandasse o pecado, em nada prejudicava a verdadeira religião, por ser um poder legitimamente constituído.

   Com essa afirmação, Nosso Senhor ensinava que a autoridade civil é também querida por Deus. São necessários o governo efetivo, o poder legislativo e o braço coercitivo da justiça. É o que Ele dirá poucos dias depois a Pilatos, quando este invocar seu mando: “Não terias poder algum sobre Mim, se de cima não te fora dado” (Jo 19, 11). E encontramos o mesmo princípio nas cartas de São Paulo, especialmente na Epístola aos Romanos: “Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus; as que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus; e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação” (Rm 13, 1-2). O poder civil, portanto, deve ser respeitado, porque é imagem de Deus, e obedecido naquilo que não implique pecado, pois, neste caso, agiria contra si próprio e extrapolaria suas atribuições.

Sagrada Família
Igreja de Santa Eulália, Bordeaux (França)

A harmonia cristã das duas esferas

   Aqui está também involucrada outra doutrina muito importante: se a esfera religiosa existe para levar os homens a alcançar sua finalidade última, que é Deus, a sociedade temporal se propõe a cuidar dos assuntos relativos ao bem-estar humano e ao bom desenvolvimento dos interesses públicos, com vistas a que todos, no seu conjunto e individualmente, possam atingir com facilidade seu fim, valendo-se para isso de leis justas.

   Por conseguinte, não há dissensão entre os dois poderes, uma vez que ambos, um de forma imediata e outro de forma mediata, têm o mesmo objetivo. As palavras de Nosso Senhor indicam que as duas esferas devem ser harmônicas, sem em nada sugerir que seguem rumos diferentes. As lutas travadas na História a esse propósito deram-se por se ignorar os valiosos ensinamentos do Evangelho e das epístolas de São Paulo, claríssimos para os primeiros cristãos. Não é outro o pensamento do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, manifestado de modo magistral em um discurso proferido diante de centenas de milhares de católicos, nos idos da década de 1940: “Às margens do Jordão como do Nilo, à sombra das colunas clássicas de Atenas como nos esplendores da grande metrópole de Cartago, no fastígio do poder da Idade Média como nas lutas tormentosas contra o proto-totalitarismo josefista ou pombalino, sempre que assembleias como esta se têm reunido, a Igreja repete ao poder temporal com uma constância e uma uniformidade impressionante, a mesma mensagem de paz e aliança, em que para si reserva tão somente o reino do espiritual, ciosa de respeitar a plena soberania do poder temporal em todos os outros terrenos, dele pedindo tão somente que ajuste suas atividades aos preceitos evangélicos, ou seja, aos princípios que constituem o fundamento da civilização cristã católica”.1

   Esta harmonia, aliás, encontramo- la refletida nos outros textos da Liturgia deste domingo. Na primeira leitura (Is 45, 1.4-6), vemos como o Todo-Poderoso utiliza Ciro, imperador dos persas a quem chama de “seu ungido” (Is 45, 1), como instrumento para realizar seu desígnio de reconstruir o Templo de Jerusalém. É Deus Se servindo do poder temporal pagão para mostrar que Ele é o único Senhor. Isso prova o quanto escolhe aqueles que quer para conduzir sua obra, e a governa com inteira sabedoria e potestade. Já na segunda leitura (I Tes 1, 1-5b), São Paulo se dirige à Igreja de Tessalônica como chefe da sociedade espiritual naquele local, em cujas mãos transparece ainda mais a ação e o poder de Deus.

   Desse modo, querer separar a sociedade temporal da espiritual, sob o pretexto de que têm fins completamente diferentes e às vezes até opostos, não está de acordo com a vontade de Deus. E tudo deve conjugar-se com a Lei d’Ele.

III – Se dermos a Deus o que é d’Ele, o resto nos virá por acréscimo

   A Liturgia deste domingo tem ainda uma oportuna aplicação para nossa vida espiritual, pois a mesma relação entre o poder civil e o poder religioso descrita nas leituras reflete-se em nossa existência.

   No convívio familiar, pai e mãe representam o poder do Altíssimo e, por isso, devem ser obedecidos, a ponto de haver um Mandamento do Decálogo que vela por essa observância. Aos filhos cabe acatar suas determinações, a não ser que exijam o pecado, o que significaria voltar- -se contra a própria autoridade a eles confiada. Tal como convém dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus, na família deve- -se dar aos pais o que é dos pais, e a Deus o que é de Deus.

   Portanto, é preciso que a educação dos filhos seja conduzida em função do Senhor, baseada em uma formação moral boa e estável, que os encaminhe rumo à plenitude da santidade. Ao mesmo tempo, o cumprimento desse fim primordial impõe que certas necessidades materiais sejam atendidas. Nestes casos, é mister dar a César o que é de César, sempre em conformidade com a Lei divina. Entretanto, deve-se ter o cuidado de não fazer consistir a vida só em César, pois ele é secundário e contingente em relação ao Criador. A essência está em “dar a Deus o que é de Deus”.

   Eis o convite da Liturgia de hoje: mantermos um equilíbrio perfeito entre o que, em nossas vidas, pertence a Deus e o que cabe aos cuidados da nossa natureza, sem jamais sobrepor estes ao que é mais importante. Agindo assim, estaremos buscando o Reino de Deus e sua justiça, e todo o resto nos será dado por acréscimo (cf. Mt 6, 33)! (Revista Arautos do Evangelho, Outubro/2017, n. 190, pp. 8 à 15)

1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Saudação às autoridades civis e militares. In: Legionário. São Paulo. Ano XVI. N.525 (7 set., 1942); p.2.

 
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