Fale conosco
 
 
Receba nossos boletins
 
 
 
Artigos


Espiritualidade


A virtude da Fé: fundamento das grandes obras
 
AUTOR: IR. DANIELA MARIA MOREIRA DUARTE DA SILVA, EP
 
Decrease Increase
Texto
Solo lectura
0
0
 
Quem se une a Deus por meio da fé, participa de alguma forma do poder divino e se torna, em certo sentido, tão forte quanto é forte o próprio Deus.
Navio no meio da tormenta,
por Thomas Buttersworth

Nossa vida nesta terra de exílio bem pode ser comparada a um barco que percorre o mar imenso. Durante a bonança, ele desliza com suavidade em meio às águas tranquilas. Em outros momentos, porém, um forte vento começa a soprar, as ondas se agitam e o céu se tolda. Instantes depois, uma tempestade desaba sobre a frágil embarcação. Chegou o tempo das provações, dificuldades e dramas.

Navegar em águas revoltas não supõe, entretanto, uma tragédia para quem tem fé. A prática desta virtude teologal nos leva a considerar os obstáculos que surgem em nossa peregrinação por este vale de lágrimas não como um motivo de tristeza, mas sim como penhor do prêmio eterno.

Ora, o que vem a ser exatamente a virtude da fé?

Em que consiste a virtude da fé

No Sacramento do Batismo são infundidos em nossa alma, junto com a graça santificante que nos torna verdadeiros filhos de Deus, as virtudes e os dons, os quais conferem dinamismo ao nosso organismo sobrenatural, dando-nos a capacidade de fazer o bem e evitar o mal de forma meritória aos olhos de Deus. 

A disposição estável para agir bem se chama virtude. Ela consiste na repetição constante dos atos que nos levam a viver retamente, em oposição ao vício, que é o hábito do mal.

Quando adquiridas pelo exercício e aperfeiçoamento dos dons humanos, desenvolvendo-se pelo esforço da vontade e agindo sobre uma aptidão específica, as virtudes se chamam naturais; mas quando é o próprio Deus que as infunde em nossas almas, elas passam a ser qualificadas de sobrenaturais, por terem a Ele mesmo como fonte e ponto de referência.

Entre as virtudes infusas encontram-se as chamadas teologais – fé, esperança e caridade –, as quais, como o nome indica, levam-nos a conhecer e amar a Deus. Essencialmente sobrenaturais, além de ser dons divinos, dirigem-se ao Criador em seus atos. São o guia interior do homem, tornando-o capaz das atividades sobrenaturais que deverão atingir sua plenitude no Céu, e se desenvolvem a cada dia pelo exercício que se lhe é dado, com o auxílio da graça.

São Tomás de Aquino afirma que a fé é a primeira entre as virtudes por ser por meio dela que nosso fim último, o Criador, nos chega ao entendimento. Com efeito, “o conhecimento natural não pode atingir a Deus, enquanto objeto da bem- -aventurança, para o qual tendem a esperança e a caridade”.1

A fé constitui também a porta pela qual entram as demais virtudes e é em função dela que se crê naquilo que a graça mostra de forma meio obscura, habilitando o homem a dar seu firme assentimento à Revelação. Assemelha-se a uma faculdade auditiva espiritual, que nos permite ouvir as harmonias do Reino dos Céus e, de algum modo, a voz de Deus, antes mesmo de sermos admitidos na visão beatífica, conferindo à existência humana uma perspectiva sobrenatural.

Nosso Senhor acalma o mar
Igreja de São Pedro Bordeaux
(França)

Faz-nos participar da onipotência divina

Os milagres realizados por Nosso Senhor Jesus Cristo durante sua vida terrena estavam condicionados a que quem deles se beneficiasse, fosse capaz de contemplá- -los nessa perspectiva sobrenatural. Por isso, o Divino Mestre diz ao cego de Jericó: “Vê! Tua fé te salvou” (Lc 18, 42).

Em sentido contrário, Ele censura os Apóstolos por possuírem uma visão naturalista da vida e dos fatos, pervadida de critérios meramente humanos, e os exorta: “Em verdade vos digo: se tiverdes fé, como um grão de mostarda, direis a esta montanha: transporta-te daqui para lá, e ela irá; e nada vos será impossível” (Mt 17, 20).

Comentando esta passagem do Evangelho, Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP, afirma: “A fé é, de fato, capaz de mover montanhas, pois por detrás dela está o poder de Deus, e quando alguém se une à força divina pela robustez de tão valiosa virtude, torna-se tão forte quanto é forte o próprio Deus”.2 Ou seja, a fé nos faz participar da onipotência divina.

Antídoto extraordinário contra as tentações

Ademais, essa virtude orienta o intelecto para a verdade e, ao unir- -se à caridade, dispõe a vontade a um fim bom, como ensina o Doutor Angélico: “Enquanto pela fé o intelecto é determinado para a verdade, a fé ordena-se para um certo bem. Além disso, enquanto a fé é formada pela caridade, também se ordena para o bem, enquanto objeto da vontade”.3

Desse modo, a fé é um antídoto extraordinário contra as tentações que procedem do demônio, do mundo ou da carne. Se o demônio nos tenta para que não cumpramos os Mandamentos, pela fé cremos que há um só Senhor e Legislador, a quem devemos obedecer. Se o mundo nos seduz com uma prosperidade ilegítima ou nos atemoriza pelas adversidades, cremos que Deus recompensa os sofrimentos dos bons e castiga os maus. Se a carne nos aguilhoa com deleites momentâneos, cremos que esta vida é passageira e, se formos fiéis, gozaremos da felicidade eterna. 

Indispensáveis são as provações, os sofrimentos e as contradições para a santificação do homem, pois fazem com que a fé se revigore e gere uma obra de perfeição. Tudo o que nos acontece é permitido pela Providência a fim de “marcar em nós o momento culminante no qual Deus ou o demônio se torna vencedor no campo de batalha interior da alma”.4

Devemos, pois, pedir ao Pai que nos torne “fortes in fide” (I Pd 5, 9), pois esta virtude incute coragem e enche o espírito de entusiasmo. Ela “é o unguento para todas as nossas dores, é o ânimo e a alegria em meio aos sofrimentos deste grande deserto – a existência no exílio terreno –, até atingirmos um dia a felicidade eterna na glória celestial”.5

Acreditar na hora da insensibilidade

Crescer na virtude da fé conduz a uma confiança inabalável. O abandono nas mãos de Deus e a resignação à sua vontade são o testemunho mais eloquente da presença dessa virtude.

São Paulo Apóstolo
Basílica de São Patrício,
Montreal (Canadá)

Isso não significa, entretanto, que quem a pratica não passe por períodos de insensibilidade, nos quais seja assaltado por aflições, inseguranças e incertezas. Conforme afirma o Apóstolo, nesta vida “andamos na fé e não na visão” (II Cor 5, 7).

Até as almas mais santas passam por essas provações, e talvez o exemplo mais paradigmático tenha sido a grande Santa Joana d’Arc. A partir de certo momento sentiu-se abandonada pelas luzes sobrenaturais que a acompanhavam, mas instantes antes de sua morte na fogueira, em meio à tragédia da condenação injusta e atormentada pela dúvida, bradou de dentro das chamas: “As vozes não mentiram!”6

Deixava ela uma suprema mensagem aos homens: na hora do aparente abandono por parte de Deus, é preciso ter no fundo da alma a fé de que as vozes da graça não mentem nunca! “Eis porque ninguém pode duvidar da fé. Devemos acreditar mais nas verdades da fé do que nas coisas que vemos, porque a vista do homem pode falhar, mas a ciência de Deus é sempre infalível”.7

Fundamento das grandes obras

Fé e caridade são virtudes inseparáveis. Quem crê em Deus sabe-se amado, sustentado e acompanhado por seu infinito amor. A fé oferece também uma meta à nossa esperança.

“A fé é o fundamento da esperança, é uma certeza a respeito do que não se vê. Foi ela que fez a glória dos nossos antepassados. Pela fé reconhecemos que o mundo foi formado pela palavra de Deus e que as coisas visíveis se originaram do invisível” (Hb 11, 1-3), escreve São Paulo a seus compatriotas, depois de ter recebido do Redentor as mais sublimes revelações.

Na conjugação dessas três virtudes teologais, que, como vimos, nos colocam numa perspectiva divina, o homem torna-se capaz de grandes obras, como um pouco mais adiante ensina o mesmo São Paulo, lembrando as grandes figuras do Antigo Testamento: “Pela fé Abel ofereceu a Deus um sacrifício bem superior ao de Caim, e mereceu ser chamado justo, porque Deus aceitou as  suas ofertas. Graças a ela é que, apesar de sua morte, ele ainda fala. Pela fé Henoc foi arrebatado, sem ter conhecido a morte: e não foi achado, porquanto Deus o arrebatou; mas a Escritura diz que, antes de ser arrebatado, ele tinha agradado a Deus” (Hb 11, 4-5). 

E acrescenta: “Ora, sem fé é impossível agradar a Deus, pois para se achegar a Ele é necessário que se creia primeiro que Ele existe e que recompensa os que O procuram. Pela fé na palavra de Deus, Noé foi avisado a respeito de acontecimentos imprevisíveis; cheio de santo temor, construiu a arca para salvar a sua família. Pela fé ele condenou o mundo e se tornou o herdeiro da justificação mediante a fé” (Hb 11, 6-7).

Estando sua epístola dirigida ao hebreus, São Paulo se detém muito especialmente no patriarca do povo eleito: “Foi pela fé que Abraão, obedecendo ao apelo divino, partiu para uma terra que devia receber em herança. E partiu não sabendo para onde ia. Foi pela fé que ele habitou na terra prometida, como em terra estrangeira, habitando aí em tendas com Isaac e Jacó, co-herdeiros da mesma promessa. Porque tinha a esperança fixa na cidade assentada sobre os fundamentos eternos, cujo arquiteto e construtor é Deus. Foi pela fé que a própria Sara cobrou o vigor de conceber, apesar de sua idade avançada, porque acreditou na fidelidade d’Aquele que lhe havia prometido. Assim, de um só homem quase morto nasceu uma posteridade tão numerosa como as estrelas do céu e inumerável como os grãos de areia da praia do mar” (Hb 11, 8-12).

Santa Teresa de Ávila
Igreja Nossa Senhora
da Glória, Juiz de Fora
(MG)

Almas cheias de fé

No Novo Testamento não nos faltam exemplos de prática dessa admirável virtude. Desde a fundação da Igreja, Deus sempre elegeu almas de escol para, cheias de fé, marcarem a História com suas obras.

Uma dessas almas foi Santa Teresa de Ávila, grande e admirável dama que brilhou no firmamento da Igreja no século XVI. Tendo reformado o Carmelo, fez de cada um dos conventos por ela fundados um baluarte de fé, habitado por corações incendiados na caridade.

Santo Inácio de Loyola, fundador da Companhia de Jesus, também edificou sua obra na fé, robusta e logicamente enraizada na mais pura doutrina. Isso lhe permitiu revigorar o fervor no seio da Igreja, numa época marcada pelo protestantismo e pela frivolidade renascentista.

Poderíamos aqui discorrer sobre outras inumeráveis almas que nos deram seu mais nobre testemunho de fé, mas isso extrapolaria os limites deste artigo. Guardemos esses nomes cheios de glória e tiremos um valioso ensinamento de seus exemplos: quem quiser fazer grandes obras, deve começar por robustecer a sua fé.

Nesta vida passageira, na qual as obras não são senão uma escada para a eternidade, marca a História quem crê e age em função da fé, pois quem apenas age, sem fé, desaparece com a poeira do tempo. (Revista Arautos do Evangelho, Abril/2019, n. 208, p. 22-25)

1 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.4, a.7. 2 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Como enfrentar as desilusões? In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2012, v.VI, p.395. 3 SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., a.5, ad 1. 4 CLÁ DIAS, op. cit., p.400. 5 Idem, p.401. 6 BOURRE, Jean-Paul. Guerrier du rêve. Paris: Belles Lettres, 2003, p.240. 7 SÃO TÓMAS DE AQUINO. Exposição sobre o Credo. Introdução. 5.ed. São Paulo: Loyola, 2002, p.21.

 
Comentários