Fale conosco
 
 
Receba nossos boletins
 
 
 
Artigos


Espiritualidade


Bem e felicidade
 
AUTOR: IRMÃ JULIANE VASCONCELOS ALMEIDA CAMPOS, EP
 
Decrease Increase
Texto
Solo lectura
0
0
 

Fr. Garrigou-Lagrange afirma que a busca da própria finalidade é a tendência de tudo o que existe, “desde o grão de areia até Deus. Nossa inteligência conhece sua própria finalidade: julgar em conformidade com a natureza e com a existência das coisas e elevar-se à sua Causa primeira e a seu Fim último”. 1

Essa tendência da busca de seu fim pode ser natural e inconsciente, sem sensibilidade nenhuma, como ocorre com os seres sem razão: um ser mineral, por exemplo, sempre tenderá para o centro da Terra, para sua estabilidade. Ou com sensibilidade vegetativa, como as plantas tendem para a luz e o calor do Sol; ou ainda com certo conhecimento sensível, como os animais que buscam alimento e defendem a própria vida, protegendo-se e evitando os perigos, que para eles constituem o contrário do bem ao qual tendem. Já os seres inteligentes devem querer seu fim de modo racional. Por isso, segundo São Tomás, no homem, “as coisas para as quais tem inclinação natural, a razão apreende como bens e, em consequência, como algo que deve ser buscado. E o contrário destas são como males, que devem ser evitados”. 2

Como ser racional, o homem é dono de seus atos, age pela razão e pela vontade, e estas faculdades atuam segundo seu livre-arbítrio. A busca do bem como seu fim é, portanto, o princípio do agir humano. E como o bem próprio e fim último dos seres inteligentes é a felicidade, o fim das ações humanas tem que ser a felicidade, 3 busca do homem de todos os tempos, meta moral, de caráter metafísico-antropológico, ou bem-aventurança. É esta a aquisição ou gozo do Bem Absoluto, o Sumo Bem. 4 Tal felicidade que o homem busca com desejo infinito não é senão Deus. Com razão diz o Catecismo da Igreja Católica: “O desejo de Deus está inscrito no coração do homem, já que o homem é criado por Deus e para Deus; e Deus não cessa de atrair o homem a si, e somente em Deus o homem há de encontrar a verdade e a felicidade que não cessa de procurar” (CCE 27).

É por isso, diz ainda o Fr. Garrigou-Lagrange, 5 que quando a criança chega ao uso da razão, tem a intuição simples do primeiro princípio da lei moral: “É preciso fazer o bem e evitar o mal”, pois este é o oposto de seu anseio primeiro, a felicidade. Ele faz uso das próprias palavras de São Tomás:

Assim como o primeiro olhar da inteligência especulativa leva ao ser, a do entendimento prático leva ao bem. Pois todo agente obra por um fim, que é um bem. E, portanto, o primeiro princípio da razão prática está fundado na noção de bem. E se expressa assim: é preciso fazer o bem e evitar o mal; este é o primeiro preceito da lei natural, sobre o qual se fundamentam todos os demais. 6

Tão elevada ideia tem São Tomás deste primeiro olhar da inteligência sobre o bem, que, segundo ele, fica justificada a criança não batizada, educada entre os pagãos se, ao chegar ao pleno uso da razão, ama um bem honesto em si superior, mais do que a ela mesma, afirma Fr. Garrigou-Lagrange. 7 Por quê? Porque assim ama a Deus, autor da natureza e soberano Bem, confusamente conhecido; amor eficaz, que em estado de queda não é possível senão pela graça que eleva e cura. 8 E vai mais além, ainda, com uma audácia admirável: “Quando começa a ter o uso da razão, o primeiro que o homem deve fazer é deliberar sobre si mesmo. E, se ordena sua vida ao devido fim, ao verdadeiro bem (amando eficazmente o bem honesto mais que a si mesmo), recebe pela graça a remissão do pecado original”.9 Esta é uma das formas do batismo de desejo, porque manifesta uma misteriosa luz sobrenatural, suficiente para um ato de fé sobrenatural e para a infusão da graça santificante e da caridade, sem as quais não seria perdoada a culpa original.10

Estes princípios todos são chamados de primeiros e são indeléveis, não podem ser apagados do ser do homem. Contudo, os desejos desordenados e as paixões desequilibradas da natureza humana podem aplicá-los mal ou fazer mau uso deles. Mas é preciso uma racionalização ― ou seja, dar uma justificativa racional ―, para permitir que a transgressão seja aceita pela própria inteligência. Por isso é impossível ao homem fazer o mal pelo mal. Sempre precisa dar-lhe uma aparência de bem, para que todo o seu ser se lance, como a realização e o encontro com seu próprio fim. E, mesmo assim, no caso de uma transgressão racionalizada, esta noção genérica e verdadeira de bem ainda permanecerá em uma espécie de “câmara obscura” da alma. De maneira que, aos poucos, pode-se trabalhar esta ideia esquecida, por exemplo, no contato com alguém virtuoso, em quem se encontra o bem “encarnado”. Nesse contato, o transgressor pode sentir a necessidade, então, de ir à la recherche d’une notion perdue. É por onde, muitas vezes, pessoas entregues ao vício podem vir a regenerar-se, revertendo o processo. 11

1) GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. El realismo del principio de finalidad. Buenos Aires: Desclée de Brouwer, 1947, p. 11.
2) TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica, I-II, q. 94, a. 2. Do ser ao Ser: um encontro com Deus
3) A esse respeito, ver: Id. Suma Teológica, I-II, q. 1, a. 1; Suma contra os Gentios, lib. I, c. 100, n. 2-3.
4) Cf. Id. Suma Teológica. I-II, q. 3, a. 1; ad 2.
5) Cf. GARRIGOU-LAGRANGE. El sentido común: la filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Op. cit. p. 336-338.
6) TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica, I-II, q. 94, a. 2.
7) Cf. GARRIGOU-LAGRANGE. El sentido común: la filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Op. cit. p. 338.
8) Cf. TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica, I-II, q. 109, a. 3, co.
9) Ibid. q. 89, a. 6.
10) Cf. GARRIGOU-LAGRANGE. El sentido común: la filosofía del ser y las fórmulas dogmáticas. Op. cit. p. 339.
11) Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Primeiro olhar e inocência. São Paulo, 29 maio 1974. Palestra. (Arquivo IFAT).

Texto extraído da revista Lumen Veritatis – Vol. 6 – Nº 22 – Janeiro a Março – 2013

 
Comentários