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Espiritualidade


Cultura, Evangelho e inculturação
 
AUTOR: PE. MARCOS FAES DE ARAÚJO, EP
 
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Se a ruptura entre o Evangelho e a cultura é, como observou o Papa Paulo VI, o drama da nossa época, torna-se da maior importância para a Igreja não só evangelizar as culturas, mas também enraizar nelas o Evangelho.

O instinto natural com que Deus enobreceu o coração materno – um dos mais extraordinários dons concedidos ao ser humano -, não é senão um pálido reflexo de outro “instinto”, este de ordem sobrenatural, com o qual Cristo adornou o coração de sua esposa, a Santa Igreja Católica Apostólica e Romana. Ela é a mãe terníssima que infunde o Lumen Christi nos povos, através da proclamação do Evangelho, e gera para a vida sobrenatural os irmãos de Cristo, por meio dos Sacramentos; incentiva cada qual a fazer desabrochar plenamente seus próprios talentos e os educa para um relacionamento fraterno, harmônico e de mútua complementaridade.

Cultura, Evangelho e inculturação

Na Igreja se encontra, portanto, a matriz e arquétipo do instinto materno, o qual se expressa na benquerença, na solicitude e na ternura com que ela evangeliza os homens, os povos e as culturas mais diversas, dando cumprimento ao mandato do divino Mestre: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações; batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi” (Mt 28, 19-20).

Pari passu ao anúncio do Evangelho, a Igreja, como mãe benigníssima, identificará as qualidades de cada povo e de cada cultura; protegê- las-á e estimulará seu pleno florescimento, eventualmente assimilando- as e tornando-as parte de seu formidável tesouro cultural. É uma nota característica do modus operandi da Igreja fazer com que os povos mais díspares se sintam irmanados em seus braços maternos como membros de uma grande família, a família de Cristo.

As três fases do mandato divino

Para muitos de nossos contemporâneos pode parecer que evangelizar consiste no mero anúncio da Boa Nova salvífica de Cristo a estes ou aqueles indivíduos, a este ou aquele povo, ou mesmo a certa área de influência cultural específica, sem preocupar-se com uma transformação das psicologias, dos estilos de vida, dos contextos culturais e sociológicos nos quais vivem; tampouco sem incomodar-se com favorecer o pleno florescimento das suas virtudes e talentos, ou sem combater seus vícios e más inclinações.

Entretanto, uma análise mais atenta do mandato do divino Mestre, contido nos mencionados versículos de São Mateus, revela todo um processo de transformação subjacente ao primeiro anúncio do Evangelho, e delineia com clareza três fases distintas para a sua plena realização:

Primeira, a proclamação ou anúncio universal da Boa Nova, propriamente dito: “Ide, pois, e ensinai a todas as nações”.

Segunda, a necessidade do Batismo, condição essencial para o nascimento do homem novo em Cristo: “Batizai-as em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”. Este requisito, Cristo o afirma de forma ainda mais peremptória e inequívoca na conversa com Nicodemos: “Em verdade, em verdade te digo: quem não renascer da água e do Espírito não poderá entrar no Reino de Deus” (Jo 3, 5).

Terceira, a etapa mais complexa e importante sob o prisma da práxis evangelizadora, e também quanto à sua duração: “Ensinai-as a observar tudo o que vos prescrevi”. Podemos chamá-la a fase do discipulado, da assimilação e da transformação total em Cristo, segundo nos exorta São Paulo: “Renunciai à vida passada, despojai-vos do homem velho, corrompido pelas concupiscências enganadoras. Renovai sem cessar o sentimento da vossa alma, e revesti- vos do homem novo, criado à imagem de Deus, em verdadeira justiça e santidade” (Ef 4, 22-24).

Victor Toniolo

Como se pode, sem dificuldade, deduzir das palavras do Apóstolo, quer se trate de um indivíduo quer se trate de um povo, esta fase abarcará necessariamente toda a sua existência, pois a conversão a Cristo implica um processo de contínua transformação e aperfeiçoamento dos hábitos mentais, dos estilos de vida, da visualização do fim último da vida terrena, do relacionamento com os demais seres humanos, etc. É toda uma concepção do homem, do universo e do próprio Deus que deve ser com frequência ajustada e atualizada em função de Nosso Senhor. Ou seja, se requer uma total metamorfose em Cristo.

Metamorfose em Cristo: objetivo último da evangelização

Em sua Constituição Pastoral Gaudium et spes sobre a Igreja no mundo, o Concílio Vaticano II nos ensina: “O Evangelho de Cristo renova continuamente a vida e cultura do homem decaído, e combate e elimina os erros e males nascidos da permanente sedução e ameaça do pecado. Purifica sem cessar e eleva os costumes dos povos. Fecunda como que por dentro, com os tesouros do alto, as qualidades de espírito e os dotes de todos os povos e tempos; fortifica-os, aperfeiçoa-os e restaura- os em Cristo”.1

Confirmando a importância dessa metamorfose como objetivo último da evangelização, assim se exprimiu o Papa Paulo VI: “Para a Igreja não se trata tanto de pregar o Evangelho a espaços geográficos cada vez mais vastos ou populações maiores em dimensões de massa, mas de chegar a atingir e como que a modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação”.2 E o Pontífice acrescentou: “A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas”.3

Nesse contexto da metamorfose em Cristo, façamos uma rápida incursão por um dos aspectos da evangelização das culturas mais em foco hoje em dia: a noção de inculturação do Evangelho. Ela é de capital importância para a Igreja obter o fruto precioso do mandato recebido do Divino Mestre: gerar o homem novo em Cristo, segundo a expressão do Apóstolo (cf. Ef 4, 22-24).

O que vem a ser “inculturar” o Evangelho?

A palavra inculturação – neologismo surgido no início dos anos 60 – tem sido por vezes objeto de definições um tanto vagas e ambíguas, dando margem a certas discrepâncias de cunho semântico. Sem entrar no mérito do problema, pois isto extrapolaria os limites deste artigo, consideraremos aqui inculturação como “o processo pelo qual a Igreja torna-se parte da cultura de um povo”, conforme define o teólogo jesuíta Roest Crollius.4

Embora a Igreja, pelo próprio caráter de sua vocação universal, não esteja vinculada exclusivamente a nenhuma nação, raça ou cultura específica, nem a qualquer agremiação social, política ou econômica, 5 ela procura se relacionar não apenas com os indivíduos, mas também com os diversos grupos sociais ou culturais. Nesse sentido, afirma o Decreto Ad Gentes: “A fim de poder oferecer a todos o mistério de salvação e a vida trazida por Deus, a Igreja deve inserir-se em todos esses agrupamentos, impelida pelo mesmo movimento que levou o próprio Cristo, na Encarnação, a sujeitar-Se às condições sociais e culturais dos homens com quem conviveu”.6

Em todas as civilizações há resquícios da ordem natural

Stavkirke de Hopperstad
A preocupação da Igreja em inculturar
o Evangelho não é um fenômeno
recente, exclusivo dos tempos
pós-conciliares

 

Na realidade, a preocupação da Igreja em inculturar o Evangelho não é um fenômeno recente, exclusivo dos tempos pós-conciliares: ela remonta às próprias origens do Cristianismo. Já São Justino, o grande apologista do século II, ensinava ser necessário, ao entrar em contato com novas realidades culturais, discernir as “sementes do Verbo” (σπ?ρμα του λ?γου) nelas pré-existentes, 7 purificá-las de tudo quanto não fosse segundo o espírito de Cristo, promover seu florescimento pleno e, de alguma forma, assimilá-las ao próprio tesouro espiritual e cultural da Igreja.

De fato, até mesmo nas civilizações pagãs mais distantes do Cristianismo encontraremos resquícios da ordem natural estabelecida por Deus em toda a criação. Enquanto reflexos do Criador, eles são dignos de apreço e devem ser incorporados ao tesouro da Igreja, sacramento de salvação universal e custódia da ordem do universo.

Esse ensinamento de São Justino foi reafirmado por diversos Padres da Igreja, e constitui um fundo de quadro para compreendermos o procedimento da Esposa de Cristo no campo da evangelização através dos séculos. Nós mesmos, vivendo em pleno século XXI, podemos testemunhar em vários campos os efeitos concretos dessa inculturação já bimilenar; por exemplo, na diversidade das numerosas liturgias que a Igreja conserva em nossos dias, bem como na variedade e peculiaridade da iconografia católica.

Necessidade de evangelizar as culturas

O Magistério pós-conciliar tem insistido de modo especial sobre este particular. Uma das razões para enfatizá-lo é, sem dúvida alguma, a crescente onda de secularização e relativismo do mundo moderno.

O Papa Bento XVI tem sido pródigo em declarações ora sobre a necessidade de uma inculturação do Evangelho ora sobre a evangelização das culturas, como instrumento necessário para a Palavra de Deus poder penetrar e transformar os corações. Afirmou ele: “Cada povo deve inserir na própria cultura a mensagem revelada e expressar a sua verdade salvífica com a linguagem que lhe é própria”.8

Poucos meses antes, recomendara aos Bispos guatemaltecos: “A evangelização das culturas é uma tarefa prioritária para que a Palavra de Deus se torne acessível a todos e, acolhida na mente e no coração, seja luz que as ilumina e água que as purifica com a mensagem do Evangelho que traz a salvação para todo o gênero humano”.9

 

Se a “ruptura entre o Evangelho e a cultura” é, como observou o Papa Paulo VI, “o drama da nossa época”, torna-se da maior importância para a Igreja não só evangelizar as culturas, mas também enraizar nelas o Evangelho, ou seja, criar uma atmosfera favorável ao desabrochar dos próprios dons e, consequentemente, ao florescimento de um estilo de vida peculiar a cada povo, impregnado das mais variadas virtudes características do espírito cristão.

Multiplicidade e diversidade da criação

Conforme nos explica São Tomás de Aquino, Deus, em seu ato criador, não poderia ter feito apenas uma única criatura, por mais excelsa que esta fosse; tampouco poderia ter criado uma multidão de seres, porém, todos de uma mesma espécie. A razão apresentada pelo Doutor Angélico é cheia de lógica e de sabedoria: tendo a criação por finalidade última espelhar o Altíssimo de modo tão perfeito quanto possível, a multiplicidade e a diversidade das criaturas era mais conveniente, para assim elas refletirem melhor as infinitas perfeições do Criador.10

Paulo VI
Paulo VI – “Torna-se da maior impor-
tância para a Igreja não só evangelizar
as culturas mas também enraizar
nelas o Evangelho”

Este princípio foi manifestado também pelo Autor Sagrado no livro do Gênesis, ao relatar a obra da criação: cada uma das partes, individualmente considerada, era boa: “E Deus viu que isso era bom” (Gn 1, 12.18.25); mais excelente, porém, era o conjunto: “Deus contemplou toda a sua obra, e viu que tudo era muito bom” (Gn 1, 31).

Ora, se é portentosa a diversidade entre os seres irracionais, muitíssimo mais prodigiosa ela é quando consideramos o homem, pois este engloba em si elementos de todas as ordens do criado, seja do reino mineral, do vegetal, do animal ou mesmo do angélico. Obra-prima da criação, feito à imagem e semelhança do Criador, o ser humano constitui um verdadeiro microcosmo, cumulado por Deus com superabundância de dons naturais, preternaturais e sobrenaturais.

Maravilhado com a magnificência com a qual Deus ornou sua criatura amada, o Salmista canta: “Que é o homem, digo-me então, para pensardes nele? Que são os filhos de Adão, para que vos ocupeis com eles? Entretanto, Vós o fizestes quase igual aos anjos, de glória e honra o coroastes” (Sl 8, 5-6).

E refletindo sobre a grande diversidade de dons concedidos pelo Espírito Santo ao homem, o Apóstolo comenta: “A um é dada pelo Espírito uma palavra de sabedoria; a outro, uma palavra de ciência, por esse mesmo Espírito; a outro, a fé, pelo mesmo Espírito; a outro, a graça de curar as doenças, no mesmo Espírito; a outro, o dom de milagres; a outro, a profecia; a outro, o discernimento dos espíritos; a outro, a variedade de línguas; a outro, por fim, a interpretação das línguas” (I Cor 12, 8-10).

Assim, os diferentes talentos, aptidões, psicologias e gostos de cada pessoa darão origem a distintas expressões artísticas, comportamentos, crenças, estilos de vida, originando grande diversidade de criaturas.

Estas constituem um dos tesouros mais preciosos de vida espiritual, intelectual e social que o homem herda quando nasce e é chamado a enriquecê-lo com seu próprio contributo e transmiti-lo às gerações seguintes.
As culturas, em suma, de um lado são formadas pelo homem, e de outro contribuem poderosamente para formá-lo.

A Encarnação do Verbo

Alternando severas punições corretivas com misericórdias divinas, Ele formará gradualmente o povo eleito para o magno evento da História: “Quando, porém, chegou a plenitude dos tempos, Deus enviou o seu Filho, nascido de uma mulher, submetido à Lei, para resgatar aqueles que estavam submetidos à Lei, a fim de que fôssemos adotados como filhos” (Gal 4, 4-5).

Bento XVI
Bento XVI – “Cada povo deve inserir
na própria cultura a mensagem
revelada e expressar a sua verdade
salvífica com a linguagem
que lhe é própria”.

O Verbo Encarnado viveu, pois, como um típico judeu de seu tempo, não apenas guardando os preceitos estabelecidos pela Lei divina, mas também submetendo-Se às leis humanas e aos costumes sociais de seu povo em tudo, “com exceção do pecado” (Hb 4, 15). E no contexto religioso, social e cultural desse povo Ele operou a Redenção universal e proclamou sua mensagem salvífica para todo o gênero humano: “De fato, o Senhor Jesus, precisamente no mistério da Encarnação, ao nascer de uma mulher como perfeito homem (Gal 4, 4), colocou-Se em relação direta não só com as expectativas que se registravam no âmbito do Antigo Testamento, mas também com as cultivadas por todos os povos; manifestou, assim, que Deus pretende alcançar-nos no nosso contexto vital”.11

A grande doxologia final da História

Uma última consideração, a título de epílogo.

Na Divina Comédia, o imortal Dante qualifica de “netas de Deus” as obras de arte humanas.12 De fato, embora não tenham elas saído diretamente das mãos do Criador, são filhas dos talentos do homem. Neste sentido, se compreende sem dificuldade a afirmação do poeta.

Parafraseando Dante, e na mesma ordem de ideias, poderíamos dizer que as culturas são netas de Deus, pois “a cultura é do homem, pelo homem e para o homem”.13 E enquanto fruto da multiplicidade de dons postos pelo Altíssimo na alma humana, também elas participam do chamado a refletir as perfeições e a render glória a Deus, o Criador de seus criadores. Ora, elas só poderão alcançar este objetivo se estiverem imbuídas do espírito de Cristo.

Aqui nós compreendemos mais em profundidade o desvelo maternal da Igreja ao promover o desenvolvimento pleno das peculiaridades de cada povo e de cada cultura segundo o espírito do Evangelho. Assim, no fim dos tempos, também elas serão, de alguma forma, glorificadas quando Cristo “entregar o Reino a Deus, ao Pai, depois de haver destruído todo principado, toda potestade e toda dominação. […] E, quando tudo Lhe estiver sujeito, então também o próprio Filho renderá homenagem Àquele que Lhe sujeitou todas as coisas, a fim de que Deus seja tudo em todos” (I Cor 15, 24.28). Esta será a grande doxologia final da História, dirigida pelo próprio Filho ao Pai.

Esse canto de glorificação, entoado pelo Verbo Encarnado como Primogênito de toda a criação, incluirá obviamente todas as criaturas, tanto racionais quanto irracionais. Entre as racionais encontraremos o homem com as suas belas obras, entre as quais as mais variadas culturas, na medida em que elas se assemelhem a Cristo. Nessa perspectiva, poderíamos por certo afirmar que quanto maiores forem a multiplicidade e a diversidade dessas culturas pervadidas pelo espírito do Evangelho, tanto mais nobre e bela será a participação dos homens na magna doxologia com a qual Cristo concluirá e coroará a obra da criação.

1 CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n.58.
2 PAULO VI. Evangelii nuntiandi, n.19.
3 Idem, n.20.
4 ROEST CROLLIUS, SJ, Ary. What is so new about Inculturation? In: Inculturation, Working Papers on Living Faith and Cultures. Roma: Pontificia Università Gregoriana, v.V, 1991.
5 Cf. CONCÍLIO VATICANO II. Gaudium et spes, n.58.
6 CONCÍLIO VATICANO II. Ad gentes, n.10.
7 Cf. SÃO JUSTINO. Apologia Secunda, 8. MG 6, 457.
9 BENTO XVI. Audiência Geral de 17/6/2009.
10 BENTO XVI. Discurso aos Bispos da Guatemala de 6/3/2008.
12 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Summa Contra Gentiles, l.2, c.45.
13 BENTO XVI. Sacramentum Caritatis, n.54.
14 DANTE ALIGHIERI. Divina Comédia. O inferno. Canto XI, v.105.
15 PAUL POUPARD. Culture et Inculturation: Essai de définition. In: Seminarium. Vaticano. Anno 32, n.1.

(Revista Arautos do Evangelho, Março/2012, n. 123, p. 18 – 23)

 
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