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Espiritualidade


O fermento dos fariseus
 
AUTOR: PE. FERNANDO NÉSTOR GIOIA OTERO, EP
 
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“Guardai-vos do fermento dos fariseus”, admoesta Nosso Senhor a seus discípulos e aos cristãos de todos os tempos. Diante desta divina advertência, cabe-nos perguntar: e nós, como somos?Justificamos nossa falta de integridade, em vez de rezar e lutar pela própria conversão?

Muitos dos importantes episódios da vida pública de Nosso Senhor estão marcados por seu entrechoque com um dos mais famosos tipos humanos da História: os fariseus.

A moeda do tributo, por James Tissot
-Museu do Brooklyn, Nova York

   A violenta oposição destes à Boa-nova trazida por Cristo é descrita pelos quatro Evangelistas, mas São Mateus dedica a ela seu capítulo 23 quase inteiro. É nele que encontramos as conhecidas objurgações de Jesus, tantas vezes repetidas: “Ai de vós, escribas e fariseus hipócritas!” (23, 13); “Ai de vós, guias cegos!” (23, 16); “Insensatos, cegos!” (23, 17); “Serpentes! Raça de víboras!” (23, 33).

Formidáveis lutas entre os fariseus e Jesus

   As controvérsias, todavia, começaram muito antes. Depois de discorrer sobre o Reino dos Céus no Sermão das Bem-aventuranças, Cristo faz esta severa advertência a seus discípulos: “Digo-vos, pois, se vossa justiça não for maior que a dos escribas e fariseus, não entrareis no Reino dos Céus” (Mt 5, 20).

   Por seu lado, os fariseus andavam à espreita para armar uma cilada ao Divino Mestre. Em determinada ocasião perguntam-Lhe, para pô-Lo a prova, se “era permitido ao homem repudiar sua mulher” (Mc 10, 2), recebendo magnífica resposta: “Não separe, pois, o homem o que Deus uniu” (Mc 10, 9). Outras vezes acusam-No de violar o sábado ou alguma das centenas de regras em torno das quais viviam, sendo igualmente confundidos por Nosso Senhor. Entretanto, a dureza de suas almas era tal que não se comoviam nem sequer em presença dos mais impressionantes milagres.

   Assim, enquanto o povo entusiasmado glorificava a Deus quando Jesus curou uma infeliz mulher mantida encurvada pelo demônio durante dezoito anos, o chefe da sinagoga dizia enfurecido: “São seis os dias em que se deve trabalhar; vinde, pois, nestes dias para vos curar, mas não em dia de sábado” (Lc 13, 14). E após a ressurreição de Lázaro a reação imediata dos fariseus, reunidos em conselho com os pontífices, foi a de proferir a sentença de morte contra o Salvador: “E desde aquele momento resolveram tirar-Lhe a vida” (Jo 11, 53).

   Analisando tais contendas por um prisma político e humano, o Cardeal Gomá y Tomás chega a afirmar que “os Evangelhos podem ser considerados, em boa medida, como uma epopeia na qual são descritas as formidáveis lutas travadas entre os fariseus e Jesus, no campo doutrinário e no da influência popular”.1

As mais fortes correntes político-religiosas da época

   Os fariseus eram, ordinariamente, membros da classe média, embora houvesse também alguns de meios mais populares. Sua origem remonta aos tempos das guerras dos Macabeus, quando um conjunto de fervorosos judeus tomou armas contra o Rei Antíoco Epífanes, que pretendia impor pela força os costumes pagãos dos gregos a todos os povos por ele subjugados (cf. I Mac 1, 11-64).

   Na época de Nosso Senhor Jesus Cristo, este grupo social dominava as sinagogas e exercia grande hegemonia espiritual entre o povo eleito. Calcula-se que fossem por volta de seis a sete mil, distribuídos por todas as cidades da Palestina. Pode-se facilmente imaginar a enorme influência que possuíam. Contando com o apoio da maioria da população, ousavam por vezes erguer a voz até mesmo contra o rei ou o sumo sacerdote.2 No campo doutrinário professavam a imortalidade da alma, a ressurreição da carne, o livre-arbítrio, a necessidade da graça para praticar o bem, a existência dos Anjos, os castigos depois da morte.

   Em confronto com eles se encontravam os saduceus, que detinham o poder sacerdotal e constituíam a classe alta da sociedade judaica. Eles não reconheciam senão o Pentateuco, os cinco primeiros livros do Antigo Testamento: Gênesis, Êxodo, Levítico, Números e Deuteronômio. Negavam a imortalidade da alma e a ressurreição dos corpos (cf. Lc 20, 27), por não constarem explicitamente em nenhum desses livros.

   Fariseus e saduceus viviam em constante polêmica sobre qual era a verdadeira norma fundamental do judaísmo. Para estes era a Torá, a Lei por excelência, a lei escrita, dada ao povo eleito por Moisés como único estatuto. Para aqueles, porém, a Torá era apenas uma parte, e não a mais importante, pois ao lado desta lei escrita havia outra mais ampla: a lei oral, constituída por inumeráveis preceitos da tradição.3

   Entre estas duas fortes correntes político-religiosas se dividia a opinião pública. Ambas se encontravam no Sinédrio junto com os anciãos, mestres da Lei e sumos sacerdotes eméritos, que ajudavam o sumo sacerdote em função a exercer seu governo.

Conspiração, por James Tissot
-Museu do Brooklyn, Nova York

Qual era a mentalidade dos fariseus?

   O vocábulo fariseu provém do hebreu םישורפ – perushim, que significa separado, ou aquele que se põe à parte, e os membros deste grupo, com efeito, se mantinham distanciados de tudo quanto era tido por eles como contrário à religião, a fim de ficarem limpos de qualquer impureza de alma e de corpo. Jactavam-se de não sofrerem contaminação nem na ordem doutrinária nem na vida prática.

   Os fariseus eram os guardiães da Lei. Assim o reconhece o próprio São Paulo quando escreve aos filipenses: “Hebreu e filho de hebreus. Quanto à Lei, fariseu” (3, 5). Mas à Lei Mosaica foram eles acrescentando, com o decorrer do tempo, tradições orais, ritos, regras e fórmulas diversas até compor um labirinto de normas que regulavam quase todos os atos humanos da vida. “O conjunto das tradições respeitadas pelos fariseus está compilado no Talmud, interminável barafunda de observações pueris, acréscimos mesquinhos e comentários inúteis da Lei, impossível a qualquer homem de os aprender, menos ainda de os cumprir”,4 escreve um jesuíta do passado século.

   Viviam eles “emaranhados em complicadas casuísticas de 613 preceitos. Destes, 365 – à imagem dos dias do ano – eram negativos, e 248 – à semelhança numérica dos ossos do corpo humano – eram positivos. Dos primeiros, alguns eram tão graves que só podiam ser reparados com a pena capital, e os outros, por uma penitência proporcionada. A miríade de outras obrigações menores proporcionava-lhes discussões intermináveis em suas escolas”.5

   Em tão vasto acervo legal estavam incluídas desde as complicadas normas para os sacrifícios rituais até a forma de lavar as mãos e as vasilhas, por fora, antes das refeições. Havia também minuciosas regras de procedimento para os tribunais públicos e um preceituário para o pagamento do dízimo, inclusive de produtos como a hortelã, o endro e o cominho (cf. Mt 23, 23). O corpo jurídico dos fariseus chegava a legislar se “era ou não permitido comer uma fruta caída espontaneamente da árvore durante o repouso do sá- bado”.6 As minúcias deste regulamento ultrapassavam amiúde os limites do ridículo. 

   Como afirma o Pe. Fillion, “a Lei Mosaica deveria ser para os israelitas um privilégio, e não um fardo; e, contudo, por obra dos fariseus e das numerosas prescrições acrescentadas por eles, pesava de maneira opressiva sobre os ombros dos judeus”.7 Por isso o Divino Mestre os recrimina com severidade, dizendo: “Atam fardos pesados e esmagadores e com eles sobrecarregam os ombros dos homens, mas não querem movê-los sequer com o dedo” (Mt 23, 4).

Protótipo da falsidade, orgulho e formalismo

   Vangloriavam-se os fariseus de serem os mais fiéis e fervorosos observantes da Lei, e os escribas ou doutores da Lei, de serem seus mais fiéis intérpretes e expositores. Eram ambos arrogantes, sedentos de aplausos humanos, ávidos de dinheiro e, sobretudo, hipócritas. E Nosso Senhor os increpou por todos estes vícios, como foi mencionado anteriormente: “Ai de vós, escribas e fariseus hipó- critas!”

Adoração Eucarística Perpétua na
Basílica de Nossa Senhora do
Rosário, Caieiras (SP)

   Gostavam “dos primeiros lugares nos banquetes e das primeiras cadeiras na sinagoga” (Mt 23, 6), e de serem “saudados nas praças públicas e chamados de rabi” (Mt 23, 7). Aprazia-lhes fazer-se notar em toda parte por sua austeridade e gravidade; exibiam sobre a fronte e no braço esquerdo seus filacté- rios, caixinhas que continham breves trechos bíblicos escritos em tiras de pergaminho. Alguns os levavam pendurados a um lado da testa ou da cintura, sobretudo quando iam orar no Templo, o que faziam erguendo os olhos e os braços ao céu. Ademais, ostentavam nas bordas do manto franjas coloridas, às quais atribuíam um caráter sagrado. Considerando-se superiores a todos os demais homens no campo religioso, sua hipocrisia e orgulho não conheciam limites.

   É preciso reconhecer que na história do partido farisaico não faltaram méritos. Por terem-se oposto à mentalidade pagã dos invasores estrangeiros, representavam eles o mais puro espírito judaico e gozavam de grande autoridade no campo religioso, contando entre seus membros célebres intérpretes da Lei.

   Sem embargo, eles recorriam a engenhosos subterfúgios para romper as estreitíssimas malhas da Lei que eles próprios haviam trançado. O espírito farisaico se havia degenerado ao longo dos séculos, “a ponto de tornar-se o protótipo da falsidade, do orgulho, da piedade deformada, da insídia, do formalismo tacanho e sombrio”.8 Com razão Cristo os censurava, pois procediam de modo contrário ao que ensinavam: “Os escribas e os fariseus sentaram-se na cadeira de Moisés. Observai e fazei tudo o que eles dizem, mas não façais como eles, pois dizem e não fazem” (Mt 23, 2-3).

   Em represália, tinham eles nos lábios sempre palavras de crítica e acusação contra Nosso Senhor, como Lhe disseram em certo dia de sábado, ao ver que os discípulos colhiam espigas de trigo para comer: “Teus discípulos fazem o que é proibido no dia de sábado” (Mt 12, 2). Ou quando a multidão perguntava cheia de admiração se não seria Jesus o “Filho de Davi” (Mt 12, 23), ao vê-Lo curar um infeliz possesso cego e mudo, eles se apressaram em lançar o veneno da calúnia: “É por Beelzebu, chefe dos demônios, que Ele os expulsa” (Mt 12, 24).

Fariseus os há em todos os séculos

   Ora, se não faltam nos Santos Evangelhos palavras duras de Nosso Senhor Jesus Cristo dirigidas aos fariseus, tampouco faltam expressões de sua bondade para com os pecadores arrependidos. Especialmente comovedor é o episódio da pecadora pública, a quem “seus numerosos pecados lhe foram perdoados porque ela tem demonstrado muito amor” (Lc 7, 47). Mais eloquente ainda foi o perdão concedido in extremis ao ladrão, no alto da Cruz: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43). Que enorme contraste entre a misericórdia divina e a implacabilidade dos fariseus!

   Não obstante havia entre eles e os mestres da Lei homens bons e honrados que se converteram e se tornaram seguidores de Jesus. Cabe lembrar aqui Nicodemos, José de Arimateia, Gamaliel ou o grande São Paulo. Os Atos dos Apóstolos, ademais, mencionam outros cujos nomes não conhecemos: “Levantaram-se alguns que antes de ter abraçado a Fé eram da seita dos fariseus” (15, 5).

   A questão está no espírito farisaico, como o que foi descrito neste artigo, pois este tem por principal característica o não querer saber de conversão. Quem está por ele infectado não deseja a virtude, senão a aparência da virtude; não quer a penitência, só o aplauso e as vantagens que ela traz; despreza todo sacrifício que não tenha por fruto aumentar seu prestígio diante dos homens.

   Almas assim houve, há e haverá em todos os séculos. Hoje elas são os que procuram revestir-se da aparência de bons cristãos, enquanto violam os Mandamentos e transgridem a moral. É por isso que Mons. João Scognamiglio Clá Dias se pergunta, em uma de suas homilias: “Será que Nosso Senhor, quando atacava os fariseus, pensava só naquele partido político do farisaísmo que existia na época ou tinha em vista os fariseus que iam perdurar até o fim do mundo?”9

   Ao alertar seus discípulos dizendo “guardai-vos com cuidado do fermento dos fariseus” (Mt 16, 6), o Divino Mestre exortava também os católicos de todos os tempos a se manterem em estado de alerta. A advertência de nosso dulcíssimo Salvador é, portanto, dirigida a cada um de nós, e diante dela nos cabe perguntar: e nós, como somos? Procuramos justificar alguma falta de integridade com desculpas?

   Neste ano que começa devemos envidar todos os esforços para arrancar logo de nossa alma qualquer resquício de mau fermento. E se sentirmos alguma debilidade nesse sentido, rezemos a oração com a qual Mons. João encerra a mencionada homilia: “Meu Deus, eu sou fraco, eu sou fraca, mas quero mudar de vida. Quero deixar de ser fariseu e quero ser íntegro. Quero ser santo, justo, irrepreensível. Quero abrir minha alma e entregar-me a Vós por inteiro!”10 (Revista Arautos do Evangelho, Janeiro/2018, n. 193, pp. 18 à 21)

1 GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Introducción. Infancia y vida oculta de Jesús. Preparación de su ministerio público. 5.ed. Barcelona: Rafael Casulleras, 1955, v.I, p.108. 2 Cf. Idem, p.107. 3 Cf. RICCIOTTI, Giuseppe. Vida de Jesucristo. 7.ed. Barcelona: Luis Miracle, 1960, p.46. 4 VILARIÑO UGARTE, SJ, Remigio. Nuestro Señor Jesucristo según los Evangelios. 6.ed. Madrid: Edibesa, 1930, p.111. 5 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. A sabedoria humana contra a Sabedoria divina! In: O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2013, v.II, p.417. 6 RICCIOTTI, op. cit., p.46. 7 FILLION, PSS, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Pasión, Muerte y Resurrección. Madrid: Rialp, 2000, v.III, p.53. 8 GOMÁ Y TOMÁS, op. cit., p.107. 9 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Homilia da Quarta-feira da XXI Semana do Tempo Comum. Caieiras, 26 ago. 2009. 10 Idem, ibidem.

 
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