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Espiritualidade


Um caleidoscópio de maravilhas
 
AUTOR: EP
 
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Os olhos corporais nos comunicam com as realidades naturais. Mas se vivermos em função das realidades sobrenaturais, apesar de nossas misérias, atrairemos a misericórdia do olhar divino.

“Viver é estar juntos, olhar-se e querer-se bem”. Quanta sabedoria encerra esta singela máxima de Da. Lucilia Ribeiro dos Santos Corrêa de Oliveira!

Dentre os elementos que a compõem, não cabe dúvida de ser o mais importante o “querer-se bem”, pois sem ele os outros perdem seu valor. No entanto, a possibilidade de se olhar, ao se estar juntos, dá ensejo a muitas manifestações do querer-se bem!

O lema luciliano põe em realce como há certas circunstâncias em que as palavras são impotentes para transmitir o que se leva na alma. Fala-se, então, pelo simples olhar… E, não raro, com quanta eloquência! Quantos sentimentos podem ser manifestados em um só olhar! Sendo os olhos “a lâmpada do corpo” (Lc 11, 34), eles expressam o que se passa no coração.

Peregrinemos por este tema em suas várias facetas, como por um maravilhoso caleidoscópio, partindo de uma análise do olhar físico,1 para chegar ao auge deste outro aspecto naqueles cujos olhares, por viverem em função das realidades sobrenaturais, refletem a pulcritude e a força do olhar divino, o olhar por excelência.

Dom Prosper Guéranger

Olhos do corpo e olhos da alma

Além dos olhos corporais, Deus, em sua infinita generosidade, concedeu aos seres humanos outros olhos que possuem uma capacidade de visão indizivelmente maior: os da alma! Tal é o ensinamento cheio de sabedoria de São Teófilo de Antioquia: “Aqueles que veem com os olhos do corpo observam aquilo que se passa na vida e sobre a terra, discernindo juntamente as diferenças entre a luz e a escuridão, entre o branco e o negro, entre o disforme e a bela forma, entre o que é harmonioso, bem proporcionado e o que é desarmonioso e desproporcional, desmesurado e truncado; a mesma coisa para aquilo que cai sob o sentido dos ouvidos: sons agudos, graves e suaves. Acontece do mesmo modo com os ouvidos do coração e os olhos da alma, aos quais é possí- vel perceber Deus”.2

A sensibilidade das almas em relação a essas realidades sobrenaturais, todavia, possui graus. Isto porque, continua o Santo, “Deus é experimentado por aqueles que podem vê-Lo, desde que os olhos de sua alma estejam abertos”,3 quer dizer, em graça. Ou seja, quanto maior é a união da alma com Deus, mais ela perceberá o que seus meros sentidos não captam.

E se os olhos, sendo a lâmpada do corpo, são o espelho da alma, como será o olhar de quem tem os olhos da alma postos sempre no sobrenatural?

A linguagem do olhar

Na verdade, os olhos não servem apenas como órgãos que nos permitem a comunicação com o exterior, mas revelam aos outros o nosso interior, pois, conforme explica o Papa Pio XII, tudo se reflete neles: “Não só o mundo visível, mas também as paixões da alma. Um observador, ainda que superficial, neles descobre a expressão dos mais variados sentimentos: cólera, medo, ódio, afeto, alegria, confiança, serenidade. O jogo dos diversos músculos do rosto de algum modo se encontra concentrado e resumido nos olhos, como num espelho”.4 Este é o olhar.

Até numa pintura, de qualquer personagem que seja, a primeira coisa que procuramos é o olhar. É através dele que percebemos, ao menos de forma elementar, o caráter da pessoa que o pintor visou retratar.

A imponderável linguagem do olhar é difícil de ser expressa em palavras, entretanto é sumamente profunda e significativa. Há um fato ocorrido no tempo de São João Batista Maria Vianney que é muito paradigmático nesse sentido. Depois do árduo trabalho feito pelo Santo Cura d’Ars de levantar a fé daquela aldeia, um de seus paroquianos, velho camponês, passava horas a fio diante do sacrário, sem se mexer ou sequer mover os lábios. Certa vez, ao ser inquirido pelo pároco acerca do que dizia a Jesus Sacramentado, sua resposta foi cheia de singeleza: “Ele olha para mim e eu olho para Ele”.5

Quanta candura, porém quanta profundidade naquele colóquio mudo entre o Coração Eucarístico de Jesus e tal filho piedoso! “Os maiores místicos não encontraram fórmula mais simples, mais certeira, mais completa, mais sublime para exprimir o diálogo da alma com Deus”,6 conclui o biógrafo do Santo, depois de narrar o caso.

Expressividade dos olhares

Para ilustrar melhor a expressividade desses olhares, vejamos o que nos dizem eles em algumas fisionomias.

Uma delas é a de Dom Prosper Guéranger, restaurador da Sagrada Liturgia e da Ordem Beneditina na França do século XIX, no antigo priorado do Mosteiro de Solesmes que havia sido secularizado nos tempos da Revolução, além de escritor exímio. Seus grandes olhos “parecem feitos para a exclusiva consideração do que há de mais transcendental nesta vida e para os imensos horizontes do Céu. Mas ao mesmo tempo olhar de uma invencível força perfurante em relação às coisas da terra, capaz de transpor todas as aparências, todos os sofismas, todos os artifícios dos homens, mergulhando até o mais fundo recôndito dos acontecimentos e dos corações”.7

Outro olhar que, apesar de ter as pálpebras quase cerradas, fala sem palavras é o de São Charbel Makhlouf, religioso maronita libanês. “Tem-se a impressão, observando-se seus olhos, de que eles são duas janelas abertas para o Céu. Olhos de um escuro, negro profundo, ou talvez castanho, mas muito escuro, têm profundidade, e no fundo dessa profundidade há algo de sublime e celestial; pelo que se vê que ele olha para o Céu, o qual se reflete em seu olhar, e que peregrinando dentro do olhar dele o que se encontra é o Céu”.8

Não podemos nos esquecer de Santa Teresinha do Menino Jesus, cuja fisionomia ficou imortalizada nas fotos que compõem o álbum Visage, editado pelo Carmelo de Lisieux: “São olhos claros e são tão luminosos que impressionam. Tem-se a sensação de que entrando ali, se entra em um vitral. Percebe-se a menina dos olhos. A pureza é completa, mas a fixidez do olhar é inteira também. Por detrás deste rosto impassível, cada olho é uma chama. É uma chama de uma alma que crepita e que, dentro da impassibilidade grandiosa da vida carmelita, pensa e cogita, quer e deseja”.9

São Charbel Makhlouf

A força de um olhar unido a Deus

O olhar daqueles que vivem unidos a Deus, por penetrarem as realidades sobrenaturais, não só refletem a pureza e a beleza de seu interior, senão que participam da força divina, que advém da contemplação do Criador.

Exemplo clássico é o de São João Batista. Ao ter sua cabeça cortada por ordem de Herodes e apresentada num prato a Herodíades (cf. Mc 6, 28), seus olhos fechados pela morte pareciam cravar-se no casal adulterino e ainda bradar: “Non licet tibi – Não te é lícito” (Mt 14, 4). Havia tanta vitória naquele olhar cerrado, uma força moral tal, que se diria que “tem efeitos físicos da integridade da Lei de Deus. Quem pratica a Lei de Deus na sua integridade tem uma força que se chama força divina, é a força do próprio Deus”.10

Um acontecimento narrado por Santa Teresinha nos manuscritos de sua vida é muito significativo para exemplificar tal força. Conta ela que aos quatro anos de idade teve um sonho no qual passeava pelo jardim e via sobre um barril de cal dois horríveis demoninhos. Ao vê-la ficaram aterrorizados e se esconderam na lavanderia em frente. Aproximou-se ela da janela e os viu correndo sobre as mesas, sem saber como fugir de seu olhar. E de vez em quando espreitavam, inquietos, para ver se ela ainda estava ali e corriam desesperados.

A santa carmelita conclui que, de si, o sonho não tem nada de extraordinário; mas, diz ela, “creio que o Bom Deus permitiu que me lembrasse dele a fim de me mostrar que uma alma em estado de graça não tem nada a temer dos demônios, que são uns covardes, capazes de fugir diante do olhar de uma criança…”11

No mesmo sentido São Gregório Magno, ao escrever sobre a vida de São Bento, relata o episódio de um godo ariano, chamado Zalla, que fervia de ódio à Igreja Católica e, tomado pela avareza, afligia com torturas e suplícios um pobre camponês católico, exigindo-lhe seus bens. Este, para ver-se livre dos tormentos, afirmou havê-los dado a São Bento. O bárbaro, então, amarrou os braços do lavrador e o obrigou a conduzi-lo ao mosteiro do santo varão.

Ali chegando, “fixou nele um olhar com o furor de alma perversa”12 e começou a gritar intimando a entrega dos bens que desejava. Tirando os olhos da leitura que fazia, São Bento lhe “dirigiu um olhar e logo também olhou o camponês que permanecia amarrado. Quando fixou os olhos em seus braços, de forma milagrosa e com grande rapidez, começaram a se desatar as cordas que os atavam; nunca poderiam ser desatadas por trabalho humano com tal rapidez. Quando o lavrador, que tinha vindo amarrado, começou a ficar livre em um instante, Zalla, temeroso pela força de tanto poder, caiu por terra e ante aquele olhar abaixou a cabeça, antes cheia de crueldade inflexível, e se encomendou às suas orações”.13

Santa Teresinha do
Menino Jesus

O olhar por excelência

Se o olhar de um homem pode ter semelhante poder, qual será a força do olhar do próprio Deus? Tendo-Se encarnado e habitado entre nós, Ele só poderia ter o olhar por excelência.

O Salvador devia possuir um “olhar muito sereno, aveludado quase… No fundo, porém, revelando uma sabedoria, retidão, firmeza e força que nos enchem ao mesmo tempo de encanto e de confiança”.14 A pessoa que fosse objeto de seu olhar se sentiria vista até o mais íntimo da alma, estimulada em seus lados bons, convidada a rechaçar seus lados maus e à prática a virtude.

Poderíamos recordar aqui inúmeras passagens evangélicas, imaginando o olhar de Jesus em cada uma delas. Por exemplo, não seria concebível que Ele, antes de multiplicar os pães para o povo faminto reunido junto a Si há três dias, dissesse “Tenho piedade esta multidão” (Mt 15, 32) com os olhos fechados. Seu olhar devia estar pervadido de compaixão e carinho!

Em sentido oposto, quando Ele “encontrou no Templo os negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas” (Jo 2, 14), e teceu “um chicote de cordas, expulsou todos do Templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas” (Jo 2, 15), como seria seu olhar? Comentando esta passagem, São Jerônimo afirma ter sido um milagre que um só homem conseguisse expulsar com apenas um látego semelhante multidão, e foi porque “de seus olhos se irradiava algo de fogoso e celestial, e reluzia em sua face a majestade e a divindade”.15

Um dos mais belos episódios narrados no Evangelho da força deste olhar divino foi aquele que se manifestou depois da tríplice negação do Príncipe dos Apóstolos, quando Jesus o encontrou. “Voltando-se o Senhor, olhou para Pedro” (Lc 22, 61). Gravíssimo havia sido seu pecado. Sem embargo, sua falta atraiu o olhar do Redentor e maior foi o amor divino ali refletido! Num instante “São Pedro se sentiu tomado por inteiro. E ele, que havia visto tudo quanto os Evangelhos narram – ou como testemunha direta, ou tendo recebido uma repercussão imediata dos acontecimentos –, foi objeto de uma graça ímpar, que reavivou em sua alma, de modo intenso e esplendoroso, tudo o que ele conheceu da infinita bondade de Nosso Senhor. E essa lembrança venceu a ingratidão dele. Por isso, diz a Escritura: ‘Et flevit amare – E chorou amargamente’”.16

São Pedro não endureceu seu coração à graça recebida por meio daquele olhar. “Anos mais tarde, quando se viam profundos sulcos em suas faces, diziam que haviam sido cavados pelas lágrimas que ele jamais cessou de verter por aquele instante”.17 Tal olhar marcara sua alma até o fim de seus dias e o fortalecera na humildade para suportar o doloroso martírio que padeceu por amor a Cristo Jesus.

Sagrado Coração de Jesus
Casa Monte Carmelo, Caieiras (SP)

“Olhai-me, ao menos”…

E nós, miseráveis pecadores, de que maneira poderemos atrair o olhar do Homem-Deus? Se lemos na Sagrada Escritura que “os olhos do Senhor estão sobre os justos” (I Pd 3, 12), então somente os Santos têm a incomensurável graça de ser alvo do olhar de Nosso Senhor?

Não foi o que vimos no exemplo de São Pedro. E o próprio Jesus, cheio de bondade em seu Coração Divino, afirmou a Sóror Josefa Menéndez: “Lembra-te de que teu nada é o ímã que atrai meus olhares”.18 Também o autor sagrado o confirma, na pena do profeta: “Eis para quem olharei: para o humilde e contrito de espírito, que treme da minha palavra” (Is 66, 2).

Com efeito, foi a alma de Maria posta sempre nas realidades sobrenaturais e sua profunda humildade que moveram a Deus para escolhê-La por Mãe, como Ela mesma cantou em seu Magnificat: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegrou em Deus, meu Salvador, porque contemplou na humildade da sua serva” (Lc 1, 46-48).

Imitando sua humildade, ainda que miseráveis, poderemos chegar a ser verdadeiros ímãs do olhar de Jesus Cristo, que transformará nossas almas, como o fez com São Pedro, levando-nos a viver em função do sobrenatural. Por este motivo, cheios de confiança imploremos a Ele em nossas dificuldades: “Rogo-Vos: olhai-me ao menos. Se me concederdes um olhar, Vós me tereis dado tudo!”19

E não nos esqueçamos de que, como Mãe de Deus e nossa, “Nossa Senhora tem olhos de misericórdia, e um olhar seu pode salvar-nos. Este é o sentido da Salve Rainha: olhai a miséria de nossa situação, atendei a penúria em que estamos. Tende pena de nós, Vós que sois nossa Advogada. É preciso pedirmos, invocarmos, insistirmos que estes olhos se voltem para nós”.20 (Revista Arautos do Evangelho, Abril/2018, n. 196, p. 28-31)

1 Embora as verdades reveladas penetrem em nossa inteligência pela audição (cf. Rm 10, 17), é a visão que nos fornece mais conhecimentos das realidades concretas. Por isso assevera o Doutor Angélico que ela “é o mais excelente de todos os sentidos, e o que se estende a um maior número de objetos” (SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teoló- gica. I-II, q.77, a.5, ad 3). 2 SÃO TEÓFILO DE ANTIOQUIA. A Autólico. L.I, c.2. In: PADRES APOLOGISTAS. 3.ed. São Paulo: Paulus, 2005, p.215-216. 3 Idem, p.216. 4 PIO XII. Discurso aos participantes do I Congresso Latino de Oftalmologia, 12/6/1953. 5 GHÉON, Henri. O Cura d’Ars. 2.ed. São Paulo: Quadrante, 1998, p.56. 6 Idem, ibidem. 7 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Ambientes, Costumes, Civilizações: “Tudo se reflete nos olhos: cólera, medo, afeto ou alegria”. In: Catolicismo. Campos dos Goytacazes. Ano IV. N.45 (Set., 1954); p.7. 8 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Conferência. São Paulo, 21 maio 1983. 9 Idem, ibidem. 10 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. Conferência. São Paulo, 6 jun. 2003. 11 SANTA TERESA DE LISIEUX. Manuscrito A. Eu escolho tudo. In: Obras Completas. São Paulo: Paulus, 2002, p.60. 12 SÃO GREGÓRIO MAGNO. Vida de San Benito, c.XXXI, n.2. Santiago: Abadía de la Santísima Trinidad de Las Condes, 1993, p.66. 13 Idem, n.3. 14 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. O sacrossanto olhar de Jesus. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano VII. N.70 (Jan., 2004); p.19. 15 SÃO JERÔNIMO. Comentario a Mateo. L.III (16,13- 22,40), c.21, n.49. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2002, v.II, p.289. 16 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Num olhar de Maria, a imensidade de suas virtudes. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano II. N.13 (Abr., 1999); p.27-28. 17 WALSH, William Thomas. O Apóstolo São Pedro. São Paulo: Melhoramentos, 1954, p.201. 18 MENÉNDEZ, Josefa. Un llamamiento al amor. 4.ed. Guadalajara: Montaño, 1996, p.133. 19 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. “Não apartes de mim o teu rosto…” In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano VIII. N.83 (Fev., 2005); p.13. 20 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Vossos olhos misericordiosos a nós volvei. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano XIII. N.149 (Ago., 2010); p.36.

 
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