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Plinio Corrêa de Oliveira


Quais os fins de uma universidade?
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 17/05/2019
 
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Com solenidade e a presença de autoridades (incluindo o governador do Estado e diversos secretários), iniciava suas atividades em 2 de abril de 1960 a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Jacarezinho, uma das primeiras do Norte do Paraná. Proferindo a aula inaugural, Dr. Plinio expôs sem rodeios sua convicção: o ensino e as pesquisas universitárias devem ter um pressuposto religioso, vendo Deus como criador do universo harmônico, ordenado e hierárquico, acessível à inteligência do homem por um conjunto de conhecimentos que formam o saber

O tema que me incumbiram de tratar é a universidade. Ao começar a coligir idéias e dados para esta aula, verifiquei encontrar-me naquela situação de Santo Agostinho, que encontrou na praia um menino tentando colocar toda a água do mar num buraco da areia. Seria preciso transpor todo um mundo de idéias, horizontes, perspectivas, para a pequena caixa de uma aula! Considerei, pois, que minha obrigação era falar do assunto debaixo de um ângulo tal que, num aperçu, pudesse ser visto no que tem de central.

Em lugar de dizer tudo o que sobre a universidade se possa, resolvi vos entreter a respeito de sua finalidade. Esta contém de algum modo tudo o que se diz da instituição, uma vez que o fim de uma coisa é como o espelho dela, filosoficamente falando.

Bibliografia caótica e fragmentária, opiniões conflitantes

Seguindo um costume que não está no pendor de meu espírito, pensei em consultar livros. Mas antes, lembrei-me de leituras feitas há tempos e me dei conta de que a bibliografia a respeito do assunto é caótica e fragmentária.

Na Europa ou nos Estados Unidos, se há muitos livros sobre universidade, são em geral circunscritos ao âmbito nacional ou a determinada área de cultura, e não abrangem o problema de modo a se poder aplicálo à realidade brasileira. A nós não interessa tanto saber o que pensam sobre as universidades alemãs, francesas, americanas, espanholas ou inglesas, os intelectuais desses países, mas qual a finalidade de uma universidade em tese, libertada de suas circunstâncias locais, e mesmo das de tempo.

Para vos dar exemplo do caos reinante na matéria, escolhi obras de três intelectuais ingleses: Flexner, que escreveu The university American, English and German, edição da Oxford University Press; depois Boverly, com o livro The crisis of the university, Londres, 1949. O terceiro é de Brust, The new British universities, sobre as universidades novas da Inglaterra e suas relações com as antigas, Oxford e Cambridge.

Eles não dão um apanhado de conjunto do assunto, e cada um trata de um problema que não se encaixa no que é tratado pelo outro. Assim, por exemplo, a grande questão: uma universidade se destina à pesquisa científica ou só ao ensino? Ou a ambos? Admitindo-se que a universidade visa ao ensino, o ensino visa a quê? Apenas à formação das classes dirigentes? Ao progresso material do país? O que o estudante deve ter em vista obter? Um diploma que habilite a exercer a profissão? Uma cultura clássica? Uma cultura especializada? O que acima das outras coisas a universidade deve lhe dar? E o que vem a ser a pesquisa? É feita por interesse prático ou tem apenas um sentido idealista? Por outro lado, se a pesquisa visa à cultura, podemos perguntar qual é o conceito de cultura. E nos poríamos em outro mare magnum de problemas.

Como se todas essas graves questões não fossem as únicas, ainda teríamos outras para considerar, entre as quais esta muito delicada: vivemos em um mundo em crise, na qual a crise da cultura constitui um dos aspectos mais importantes. A universidade é feita para tomar conhecimento dos problemas do mundo? É feita para resolver os problemas atuais? Ou, pelo contrário, é um conjunto de intelectuais que se segregam dos problemas do tempo, para que a poeira dos acontecimentos concretos não empane a lucidez do estudo, preocupando-se exclusivamente com questões em tese, fazendo com que, como por osmose, esse saber, formado nos laboratórios da universidade, filtre depois, e as classes dirigentes tirem daí os ensinamentos que vão orientá-las?

É raro encontrarmos uma obra que englobe todos esses problemas num só aspecto e nos dê uma síntese sobre o que deve ser, sob um ponto de vista superior, uma universidade. E mesmo a esse respeito as opiniões são surpreendentes. Vemos homens com um saber eminente, como o Cardeal Newman, afirmar que a universidade só tem em vista o ensino, e não a pesquisa, e que se o ensino não fosse o fim da universidade, não se compreende por que ela deveria ter alunos. Vamos encontrar Bresclay, que diz que a universidade deve ter por fim só a pesquisa, e não o ensino.

Tocar violino nas horas graves…

Certos espíritos lúcidos (nada mais perigoso do que ler muito! toma-se uma espécie de excesso de velocidade intelectual, em que o peso da gravidade do bom senso se perde, e as idéias começam a ser extravagantes) imaginaram que a universidade deveria ser constituída (jovens colegas, vós vos espantareis com a idéia!) com homens que se retiram do mundo para uma vida quase conventual, que não tomam contato com nada e nem tenham alunos. E que fiquem apenas confabulando entre si para a formação da ciência abstrata. E vos vejo plantados num desses três morros pequenos de Jacarezinho, numa colônia isolada, alheios a tudo, severamente proibidos pelo policiamento do governador Lupion a entrardes em contato com a cidade de Jacarezinho, para manter a pureza de vossas preocupações intelectuais. E vós elaborando uma ciência abstrata intemporal da qual, de vez em quando, saem alguns bolidos para nos iluminar nas planícies de Jacarezinho…

Positivamente, não sou desta opinião. Sua singularidade e nisto está uma das ciladas do ensino universitário mostra como se derrapa na vida intelectual, e como é débil o muro de separação entre a alta inteligência e a extravagância, a qual, por sua vez, tem um débil muro de separação com o desequilíbrio.

Vemos, portanto, quanta incerteza voga nesses campos.

Eis a definição dada por um intelectual da Universidade de Harvard, Bresley, que declara: Universidade é, por definição, o local onde nada se estuda de útil; se o estudo tem algo de útil, deixa de ser universidade. Estou certo de que dificilmente vos resignaríeis a uma vida que vos condenasse a estudar nada de útil.

A qual seria difícil de negar seria uma vida inútil. Moderli se coloca em outro ponto de vista: com a lucidez de homem de bom senso, ele mostra que, depois das duas guerras mundiais, o mundo entrou num estado de crise, e estamos no vórtice de um abismo, marcado por uma insegurança material. O descobrimento da energia atômica colocou todos nós num estado de insegurança mas não é a energia atômica que cria essa insegurança. O perigo está na vontade de brigar dos homens. E daí a crise se desloca do campo puramente físico para o moral e o cultural. E diz que seria difícil pretender que um problema enunciado com caráter cultural, e não com caráter físico, não seja um problema universitário. Tudo o que existe tem o seu instinto de conservação. As instituições também. E a universidade e tudo o que existe sobre a prateleira da civilização ocidental e cristã pode ir pelos ares… Não será bem verdade que a tarefa primordial da universidade é resolver os problemas do momento, sobretudo esse grande problema, senão ela mesma não sobrará?

É um ponto de vista diametralmente oposto ao anterior. Vemos aí um choque entre professores de universidade. Lembro-me a esse respeito de um fato ocorrido quando da entrada dos turcos em Constantinopla. Tem algo de legendário, mas se não é vero, è bene trovato. Conta-se que eles entraram por todas as ruas de Constantinopla massacrando e depredando. Na Basílica de Santa Sofia, encontraram no coro, em meio à tragédia da cidade, um monge cismático que tranqüilamente tocava violino. Uma espadagada acabou com ele e acabou com o violino. Foram as últimas notas de harmonia da cultura clássica ouvidas ali.

A universidade que toca violino faz coisas inúteis dentro de toda a crise contemporânea.

A influência dos intelectuais na história

Na história da Europa, os altos estudos da universidade não só estiveram na raiz de todas as invenções que deram origem ao desenvolvimento econômico, mas também na origem das transformações políticas, boas ou más, funestas ou auspiciosas, que deram ao mundo contemporâneo o aspecto que ele tem.

Num momento de grande importância histórica, no período em que a Confederação Germânica oscilava entre a influência austríaca e a prussiana, uma equipe de intelectuais fez cair a balança para o lado da Prússia. As investigações de Siebel, Fischer, Reuter, Preiske, Momsen, influíram para modelar a opinião pública no sentido militarístico-burocrático-centralizador, de que haveria de nascer o império bismarckiano e, ao menos em boa parte, a tragédia das duas guerras mundiais. Hitler não é senão a quintessência e a realização, em seus últimos aspectos categóricos, dos sonhos desses intelectuais.

Contra eles se levantou uma voz hoje malvista pela crítica histórica má cuja glória preciso reivindicar, a de Janssen, que falava pela tradição orgânica e harmônica da Alemanha. Se nesse conflito, que foi sobretudo de intelectuais, a balança tivesse pendido para o lado da tradição católica, certamente não teríamos a guerra mundial.

A universidade deve se voltar para uma verdade superior

Tentaremos agora estabelecer uma síntese do assunto, não só porque o espírito humano pede que os elementos díspares sejam reduzidos numa unidade harmônica, mas também porque é parte da índole do espírito brasileiro. Quando se encontra diante de contradições, de oposições muito violentas, em vez de logo tomar um partido ardente, o brasileiro procura estabelecer o conjunto do problema, procura uma espécie de conciliação entre os pontos de vista opostos, só entrando na liça depois de verificar que algo de irremediável se encontra nessa oposição. Povo feito para o contato com as culturas mais diversas, tendo herdado algo da doçura do luso, o brasileiro tem a largueza de vistas pela qual, sem cair na lógica da escola intelectual liberal, sabe tirar o proveito de cada doutrina, aquilo que pode ser aproveitado e incorporado legitimamente dentro de uma síntese pessoal.

Há parcelas de razão em cada um dos pontos de vista que expusemos. Mas desde logo vos digo que o conhecimento objetivo da verdade no nível superior, sem preocupação de circunstâncias de tempo e de lugar, é a tarefa mestra e o eixo central da atividade universitária.

O que está subjacente a esta concepção é a idéia de que, em todos os ramos do saber superior, por mais diferenciados que sejam entre si, há uma coerência profunda, há a possibilidade de estabelecer uma correlação e uma harmonia completa, porque, dentro da concepção cristã, o mundo não é aquele pesadelo de louco que seria o de Jean-Paul Sartre. O universo não é uma espécie de inferno materialista, como seria o dos comunistas de nossos dias, mas é um cosmo no sentido helênico mais exato da palavra: um conjunto de elementos sabiamente ordenados uns para os outros. E, em face dessa concepção, a ciência não é senão o conhecimento da harmonia que orienta e coordena todos esses elementos, e harmonia hierárquica entre vários elementos desse conhecimento, que se subordinam uns aos outros até o ápice, o ponto supremo que contém os princípios gerais dessa ordem. Que, portanto, contém o elemento rector não só de todo o saber, mas também de toda a atividade universitária.

A atividade universitária deve se congregar, portanto, em torno de uma filosofia, mas a filosofia não basta. Em torno de uma teologia, mas a teologia não basta. Em torno de um pressuposto religioso, e este pressuposto religioso é Deus, como um fator infinitamente poderoso que cria o universo harmônico, ordenado e hierárquico, acessível à inteligência do homem por um conjunto de conhecimentos ordenados, hierárquicos também, que formam o saber.

Este é o ponto mais profundo de todo estudo universitário. Não é saber isto ou aquilo, não é conhecer línguas anglo-germânicas ou ensinar matemática, ou saber a história de Henrique IV da França. Mas é subir daí para mais alto, é aprender a considerar todos esses conhecimentos por um ápice, por um domínio de conhecimentos mais elevados segundo os quais esses outros se coordenam.

Especialização e generalização

Esses dados não obstam a que, do alto dessa montanha de saber, o professor universitário se volte para os problemas de seu tempo. Não há saber que se alimente apenas de leitura. É preciso ter contato com a vida, com as realidades concretas; e não só com as atividades de um tempo, mas com as lutas, as angústias, os problemas desse tempo.

Ao tomar conhecimento dos problemas do tempo, as universidades cumprem antes de tudo uma altíssima missão. Sendo células de um organismo, não podem deixar de dar seu contributo para que esse organismo progrida e se conserve. Mas é mais do que isso. A universidade abre a ventilação da realidade para as suas elucubrações que, sem isso, se tornariam por demais abstratas, e atende os problemas do tempo, resolve e dá orientação. Isso vem a ser a tarefa fundamental de uma universidade, da qual não poderia fugir sem trair sua missão.

É certo que o estudo da universidade assim concebido não pode resignar-se a uma espécie de ruptura entre especialização e generalização. A idéia de alguém que se especializa tanto que perde os princípios gerais é como a idéia de um escafandrista que se aprofundasse tanto no mar que perdesse o contato com tudo o que o liga até o ar, quer dizer, acabaria morrendo. Assim, um especialista que se aprofunda tanto que se esquece dos princípios gerais, morreria, porque o princípio geral é que dá vida à especialização. E visto sob esse aspecto, parece-me que o ensino universitário, por mais que se especialize, deve especializar-se com a preocupação de ter sempre como ponto de referência aquela luz primeira, aquela procura da verdade absoluta, da verdade pura, da verdade total, da verdade harmônica e completa que é o fim harmonioso da universidade.

Um escritor medieval disse que as três forças de seu tempo eram a Igreja Católica, o Sacro Império Romano-Germânico e as universidades. Já um professor inglês contemporâneo escreve com um tom perpassado de sorriso: Nós, professores universitários de hoje, não ousaríamos colocar tão alta a importância de uma universidade. Entretanto, ele acaba dizendo que a universidade deve ser considerada como power-house que concorre para a orientação da humanidade.

Na ânsia da produção econômica, decadência da noção dos valores intelectuais e espirituais

Um dos grandes problemas de nosso país e do presente é que, na ânsia da produção econômica, legítima em si e reclamada pelas circunstâncias, a noção dos valores intelectuais e espirituais vá pouco a pouco decaindo. A condição de intelectual é tal entre nós que os homens de maior capacidade, de maior produtividade, de carreira mais prometedora, se voltam para a produção material e não encontram nem atrativo nem interesse para a produção intelectual.

Um dos grandes problemas de nosso país e do presente é que, na ânsia da produção econômica, legítima em si e reclamada pelas circunstâncias, a noção dos valores intelectuais e espirituais vá pouco a pouco decaindo. A condição de intelectual é tal entre nós que os homens de maior capacidade, de maior produtividade, de carreira mais prometedora, se voltam para a produção material e não encontram nem atrativo nem interesse para a produção intelectual.

Este fato é alarmante, sobretudo se o colocarmos em conexão com outro: nossa época é tão profundamente encharcada de pensamento materialista que encontramos tendências materialistas até nos que fazem fé de espiritualismo. Nossa época vota uma atenção exagerada aos problemas do corpo, da saúde, aos prazeres do esporte, ao culto da beleza física. E por isso nosso crescimento se vai dando de modo errado, fora da verdadeira diretriz, porque, em vez de a alma preceder o corpo, é o corpo que precede a alma. Corpo agigantado, no qual a alma fica retrógrada. Gigante imenso de alma infantil, feito para ser escravo dos que têm inteligência, e caráter superior.

O Brasil não pode continuar a trilhar esse caminho. É o próprio futuro e independência de nosso país que estão interessados numa retificação de valores. (Revista Dr. Plinio, Março/2002, n. 48, pp. 22 a 28).

 
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