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Realeza abraçada à dor
 
AUTOR: IR. CARMELA WERNER FEREIRA, EP
 
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Sua nobreza de sangue foi a causa dos sofrimentos pelos quais Deus quis torná-la uma alma orante, vítima agradável e exemplo de desprendimento no ganancioso cenário político da França do século XV.

Nossa época, marcada pelo signo da laicidade, procura de todas as formas excluir da vida a dor, como se esta fosse algo nocivo que nos afasta das vias da felicidade. Entretanto, ainda que os recursos proporcionados pela ciência diminuam o impacto de seus efeitos, não se pode negar que os padecimentos físicos e morais fazem parte da nossa condição humana.

Santa Joana de Valois
Igreja de Sauzé-Vaussais
(França)

  Dada a natural inclinação do homem para o egoísmo, facilmente ele se esquece de seu Criador nas situações de bem-estar e sucesso. A adversidade é, pois, um poderoso auxílio para purificar a alma do apego às criaturas, obrigando-a a considerar a limitação dos bens passageiros e voltar-se para o único Bem do qual tudo se pode esperar: Deus. Tais disposições perante o sofrimento conferem um caráter respeitável àquele sobre quem ele se abate, tornando-o digno de admiração.

  Eis o traço dominante da existência da Bem-aventurada que ora vamos contemplar: Santa Joana de Valois, cuja vida evoca o heroísmo de haver carregado sucessivas e pesadas cruzes. Considerar as íngremes veredas pelas quais a Providência guiou esta dama até conduzi-la ao auge da santidade não deixa de ser um auxílio para aceitarmos resignadamente nossos próprios infortúnios, como também para melhor compreendermos o valor inapreciável da dor neste vale de lágrimas, meio escolhido por Nosso Senhor Jesus Cristo para operar a Redenção.

Dramático nascimento em berço real

  Às dinastias reais costuma-se associar os conceitos de prestígio, poder e beleza. Deus, contudo, parece ter permitido a esta sua filha vir ao mundo em tão alto berço apenas para que a nobreza de sangue fosse a causa dos seus suplícios e, assim, torná-la uma alma orante, vítima agradável e exemplo de desprendimento florescido em meio ao ganancioso cenário político da França do século XV.

  Santa Joana de Valois, segunda filha dos reis Luís XI e Carlota de Saboia, nasceu a 23 de abril de 1464. Seu pai, homem irascível e dominador, aguardava impaciente um herdeiro que lhe assegurasse a descendência no trono, festejando de antemão a chegada de um príncipe.

  Ao receber a notícia de que a rainha dera à luz uma menina, o monarca tomou-se de inconformidade e atribuiu à pequenina a causa de sua pretensa desgraça. Um ódio sem fundamento cresceu em Luís XI, que se negou a estar com a filha recém-nascida e a dar-lhe qualquer atenção. A aversão paterna atingiu o auge quando, pouco tempo depois, foi possível notar as características físicas da princesa: ela apresentava deformidades no rosto e em sua débil constituição, prenunciativas das insuficiências que a marcariam na idade adulta, pois ficaria quase anã, encurvada e manca.

Paroxismo do desprezo paterno

  A desditada criança foi crescendo num ambiente marcado pelos desprezos do rei, mas que eram compensados em alguma medida pela afetuosa presença materna. A rainha sentia compaixão pela filhinha e incutia-lhe o fervor religioso que a distinguia, ensinando-a a voltar-se para Deus como a um bom Pai, que possui infinito amor por cada um de seus filhos.

Luís XII, por Jean Perréal
Hampton Court (Inglaterra)

  Desde terna infância Joana denotava uma mansidão humanamente inexplicável, sem externar qualquer revolta com suas limitações ou com o desagrado pouco dissimulado de quase todos os que dela se aproximavam. Movida por inteira submissão à vontade de Deus, conformou-se com seu estado e passou a buscar conforto no sobrenatural, insistindo com as damas de honra que a levassem sempre a alguma igreja onde pudesse permanecer em silenciosa oração.

  Esta devoção precoce também irritou Luís XI, que não via com bons olhos sua presença no castelo. Temendo que a princesa diminuísse com suas deficiências o brilho da casa real, decidiu mandá-la para longe e afastá-la da rainha, que nunca mais tornaria a ver. Para este fim, escolheu um feudo distante confiado a um casal de nobres sem filhos, os barões de Linières.

  Joana de Valois, então ainda criança, partiu de junto dos seus para enfrentar sozinha as contrariedades de um futuro obscuro, o qual não seria menos doloroso do que seus primeiros anos de vida.

Uma promessa de Nossa Senhora

  Os Linières receberam com cristãs disposições a princesinha em seus domínios, na região histórica do Berry. Apesar do abandono familiar e material a que Joana se viu reduzida, aprendeu com prazer a bordar, a tocar alaúde e a exercer outros ofícios manuais próprios à sua idade. Todavia, dedicava o melhor de seu tempo às práticas de piedade, quase como uma contemplativa.

  Ela nutria entranhada devoção a Nossa Senhora, a quem amava como sua terna Mãe. Certo dia, implorando o auxílio que não esperava de nenhum poder humano, formulou devotamente um pedido: “Ó minha Mãe, ensinai-me Vós mesma o que devo fazer para Vos agradar!”.1 Ao que a Santíssima Virgem lhe respondeu: “Minha filha, seca tuas lágrimas, pois um dia fugirás deste mundo do qual temes os perigos e farás nascer uma ordem de santas religiosas dedicadas a cantar os louvores de Deus, fiéis em seguir os meus passos”.2

  Quando se daria tal fundação? A Rainha dos Céus não o revelou, configurando-se para Joana mais uma prova de confiança. Sendo tão jovem, apenas lhe cabia rezar e esperar um sinal antes de pensar em tomar qualquer iniciativa.

Submissão e obediência heroicas

  Com o passar do tempo, paradoxalmente, Luís XI decidiu tirar proveito da mão de sua filha em benefício de seus planos. Sem o mínimo remorso, arquitetou um matrimônio favorável aos interesses da coroa, deixando a Santa perplexa.

  Ele a queria longe da corte e ela só desejava viver dedicada a Deus. Sem embargo, com vistas a consolidar sua autoridade num quadro político incerto e diminuir o risco de qualquer rivalidade futura com os duques de Orléans, o rei decretou as núpcias entre o sobrinho Luís e sua filha Joana, eliminando assim, num só lance, um dos principais adversários do trono.

  As bodas realizaram-se a 8 de setembro de 1476, quando Joana tinha tão só 12 anos e o duque de Orléans, 14. Neste episódio provou-se, uma vez mais, a abnegada disposição da princesa em obedecer às determinações paternas, sobretudo diante da gélida indiferença do marido, que não a olhou sequer uma vez durante a cerimônia.

  Luís de Orléans era um jovem de notáveis dotes naturais que vivia em meio ao fausto de seu castelo e, desde o início, evitou ter junto de si uma esposa enfermiça, por quem manifestava pública antipatia. Sua conduta para com ela seria de franca indiferença, quando não abertamente hostil, até mesmo nas encruzilhadas futuras em que ela chegaria a salvar-lhe a vida.

  No entanto, a rejeição de Luís de Orléans correspondeu, de alguma forma, aos anseios de Joana. Ao receber a notícia do casamento, ela se prosternara diante de um Crucifixo e suplicara ao Senhor que não desprezasse seu propósito de total consagração a Ele.

Um lenitivo: a chegada de São Francisco de Paula

  Cumpre reconhecer que nem todas as decisões tomadas ao longo do reinado de Luís XI foram tão descabidas quanto a do matrimônio de sua filha. Se quisermos ressaltar alguma obra piedosa na vida deste monarca, convém mencionar a que tomou pouco antes de falecer: vendo-se acometido pela grave enfermidade que lhe ceifaria a vida em 1483, quis trazer para sua corte um varão de grande virtude, na esperança de que este obtivesse do Céu uma cura milagrosa.

Após auxiliar pacientemente o rei para uma morte
resignada, São Francisco de Paula permaneceu no
país por longas décadas Luís XI de joelhos diante de
São Francisco de Paula, por Nicolau Gosse – Museu
Anne-de-Beaujeau, Moulins (França)

  Sua escolha recaiu sobre um taumaturgo italiano chamado Francisco de Paula, cuja fama de santidade atravessara os Alpes e chegara à França. Este insigne apóstolo da caridade recebeu ordem papal de atender o enfermo, apresentando-se a este cheio de luzes do Espírito Santo, para realizar em terras francesas um enorme bem.

  Com paciência, ele auxiliou o rei durante a enfermidade, manifestando-lhe, porém, ser vontade de Deus que o prodígio desejado não se operasse, pois ele deveria deixar este mundo. O Santo preparou o soberano para uma morte resignada e permaneceu no país por longas décadas, durante as quais orientou a princesa em momentos decisivos de sua vida espiritual e da fundação da ordem prevista por Nossa Senhora.

Retribuir o mal com o bem

  Falecido o pai quando Joana contava 19 anos, o peso da cruz do matrimônio indesejado tornou-se mais árduo, com fatos permitidos por Deus para aumentar os méritos da coroa de glória que lhe estava reservada na eternidade.

  Tal como Luís XI havia desejado, um filho varão nascido depois de Joana o sucedeu no governo, com o nome de Carlos VIII. Entretanto, as desconfianças do jovem rei a respeito do seu cunhado não careciam de fundamento, pois Luís de Orléans não demorou em levantar armas na tentativa de usurpar-lhe a coroa. Sua revolta contra o Estado – a chamada Guerra Louca de 1488 – foi abafada a tempo e duramente reprimida pelo rei. O duque foi enviado à prisão e condenado à pena capital.

  Santa Joana de Valois percebia o espírito ambicioso dos envolvidos neste entrechoque de forças político-familiares. Embora ciente da culpa do marido, solicitou com insistência ao irmão sua libertação. Havendo passado três anos numa masmorra, Luís de Orléans voltou a ver a luz do dia graças à paciente intercessão da esposa, sem jamais externar um só gesto de gratidão à sua benfeitora. Pelo contrário, nas vezes em que ela foi visitá-lo no cárcere, negou-se a vê-la e a dirigir-lhe a palavra.

  Era com doçura que Joana retribuía os maus-tratos do esposo, que se intensificaram quando ele se tornou rei, ao morrer Carlos VIII sem descendência. Uma das primeiras medidas do recém-coroado Luís XII foi levar a cabo o processo de anulação matrimonial iniciado anteriormente em segredo, alegando ao Santo Padre ter sido forçado pelo sogro a contrair as núpcias sob pena de morte.

  Finalizada a fase de trâmites burocráticos e declarações sob juramento, a anulação foi concedida por Alexandre VI, acarretando mais uma grande humilhação pública para a Santa, que agradeceu ao rei com uma oração: “Bendito seja o Senhor que permitiu esta separação para me ajudar a servi-Lo melhor do que fiz até agora”.3 Impressionado, desta vez, pela virtude a toda prova de Joana, Luís XII teve para com ela seu único gesto de deferência em vida, ao conceder-lhe em usufruto o ducado de Berry, que ela governou com prudência até a morte.

  Antes de partir para estabelecer residência em Bourges, sua capital, Joana despediu-se do rei em termos comovedores: “Eu tenho por vós uma gratidão como teria por um libertador, pois vós me livrastes da dura servidão do século. Perdoai-me os erros que possa ter cometido para convosco. Eu quero expiá-los consagrando minha vida à oração por vós e pela França”.4

Fundação das Anunciadas e edificante morte

 No meio das tribulações, Santa
Joana mantinha a mente e o coração
voltados para Nossa Senhora Santa
Joana de Valois retratada por Jean
Perréal em inícios do século XVI

  Agora, finalmente, ela estava livre de qualquer sujeição terrena para realizar os desígnios revelados por Nossa Senhora quando era menina. Em frequente intercâmbio epistolar com São Francisco de Paula, este lhe confirmou a origem divina da inspiração tida na infância, dando-lhe anuência para empreender a fundação.

  A Santa, que, entre todas as tribulações sofridas, matinha a mente e o coração na filial contemplação dos privilégios de Nossa Senhora, reuniu entre as jovens de Bourges um grupo desejoso de imitá-La em todas as suas virtudes, em especial estas: fé, caridade, castidade, prudência, humildade, pobreza, obediência, piedade, paciência e devoção. Nascia a Ordem contemplativa das Anunciadas, em honra da Anunciação de Nossa Senhora, reconhecida pela Santa Sé em 1501.

  Congregadas em torno da nobre dama, as primeiras comunidades cresceram em número e santidade, até conformarem e estabelecerem solidamente o novo instituto. A princípio dividida entre a administração do ducado e o cuidado das religiosas, aos poucos Joana de Valois já não se ausentava mais do claustro, onde encontrou a verdadeira felicidade.

  Em janeiro de 1505, seu corpo disforme e macerado por penitências apresentou sinais de insuficiência cardíaca, que foram se tornando mais acentuados, anunciando a morte próxima. A 4 de fevereiro ela expirou serenamente, rodeada pelas filhas espirituais e acompanhada por uma claridade miraculosa que reluziu junto ao seu leito por uma hora e meia, desde que exalou o último suspiro.

  No palácio de Luís XII outra luminosidade descida do firmamento indicou a hora exata da partida daquela vítima expiatória, que agora se apresentava diante de Deus para rogar pelo rei e pela França. O monarca, comovido e impressionado por este sinal divino, arrependeu-se dos maus-tratos que lhe dispensara e ordenou serem oferecidas à sua antiga esposa pompas fúnebres reais.

  Deixando à posteridade uma lição da realeza abraçada à dor, a vida de Santa Joana de Valois pode ser sintetizada nestas sublimes palavras de Santo Agostinho: “Apesar de [os justos e os maus] sofrerem o mesmo tormento, virtude e vício não são a mesma coisa. Assim como com um mesmo fogo o ouro resplandece e a palha fumega, com o mesmo debulhador se tritura a palha e se limpa o grão, e não se confunde o resíduo da azeitona com o azeite por terem sido prensados com o mesmo peso, assim também uma mesma adversidade prova, purifica e aprimora os bons, enquanto reprova, destrói e aniquila os maus. Por conseguinte, em idêntica dificuldade, os maus abominam a Deus e blasfemam contra Ele, e os bons O glorificam e suplicam misericórdia. Eis aqui a importância da qualidade, não dos tormentos, mas dos atormentados. Agitados com igual movimento, o lodo expele um odor repelente e o unguento, uma suave fragrância”.5 (Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2017, n. 182, p. 32-35)

1 GUÉRIN, Paul. Sainte Jeanne de Valois. In: Les petits bollandistes. Vies des Saints. 7.ed. Paris: Bloud et Barral, 1876, t.II, p.263.
2 Idem, ibidem.
3 Idem, p.264.
4 Idem, ibidem.
5 SANTO AGOSTINHO. De civitate Dei. L.I, c.8, n.2. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, v.XVI-XVII, p.75-76.

 
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