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Santo Isaac Jogues: Sacrifício de agradável odor ao Cordeiro imolado
 
AUTOR: EP
 
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No empenho de salvar almas, este missionário jesuíta abandonou sua pátria, empreendeu árduas viagens, enfrentou dificuldades monumentais e, por fim, regou com o próprio sangue a evangelização da América do Norte.

Do convés da galera partiam gritos de pavor, entremeados com o ribombar dos trovões:

   -O navio está afundando! Estamos perdidos!

   O Pe. Jogues, que se encontrava ajoelhado em sua pequena cabine lendo o Livro de Isaías, ouviu aqueles brados espavoridos e imediatamente consagrou a Deus a embarcação, com seus tripulantes e passageiros. Em seguida saiu e deparou-se com uma cena de desespero e confusão.

   Conseguiu com muito custo que todos fizessem silêncio e o escutassem. Atraídos por aquela imponente figura, que despontava como uma aparição, os viajantes se esqueceram do medo por alguns instantes. Com voz firme e apaziguadora, o sacerdote passou a repetir-lhes as palavras de Isaías que acabara de ler, convidando- os a pedir perdão por seus pecados. Depois de assim prepará- -los, deu-lhes a absolvição sacramental e todos perceberam que “o vento estridente tinha se acalmado. A tempestade havia cessado. Eles estavam salvos”.1 E o navio seguiu tranquilamente sua rota.

   Cheios de admiração, muitos deles associaram a repentina bonança à presença daquele ministro de Deus e se perguntavam, como os Apóstolos na barca: “Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?” (Mc 4, 41). Outros agradeciam o milagre ainda mais grandioso que, através daquelas mãos consagradas, se havia operado em suas almas arrependidas, lavando- as das manchas do pecado.

   Conheçamos, ainda que em grandes traços, a epopeia de Santo Isaac Jogues, este filho de Santo Inácio de Loyola que cruzou duas vezes o Oceano Atlântico, ávido de dar a própria vida pela evangelização da América do Norte.

Têmpera de missionário

   Foi a histórica cidade de Orléans, marcada pelo heroísmo de Santa Joana d’Arc, que viu nascer Isaac Jogues em 1607. Desde o início de sua formação religiosa e intelectual, sentia ele o desejo de ser missionário e evangelizar terras longínquas. Havendo ingressado no noviciado jesuíta de Rouen, sonhava com as missões na Etiópia ou no Japão. Contudo, seu mestre de noviços, o Pe. Louis Lalemant, vaticinou-lhe: “Não morrerás em outro lugar que não seja o Canadá”.2

   Em Rouen fez os votos de pobreza, castidade e obediência, no perpétuo serviço de Deus dentro da Companhia de Jesus, e pouco depois o enviaram para o Colégio La Flèche, em Anjou, o mais prestigioso estabelecimento de ensino jesuíta da França, para estudar Filosofia. Concluídos os anos de curso, foi chamado de volta ao colégio de Rouen, onde passou a lecionar. Ali se encontrou com alguns irmãos de hábito recém-chegados de terras canadenses. Entre eles estavam os padres Gabriel Lalemant, Jean de Brébeuf e Énemond Massé, que relataram as aventuras e riscos pelos quais passaram no Novo Mundo. Encantado à vista de tão amplo campo de apostolado, ansiava também ele conquistar almas para Cristo naquelas plagas distantes e ignotas.

   A missão na América do Norte era considerada, na época, uma das mais difíceis, devido ao rigor do clima, à precariedade dos alojamentos, às longas distâncias a percorrer e, sobretudo, à ferocidade dos aborígenes: as tribos dos huronianos, iroqueses ou mohawks, montanheses e algonquianos.

   Os huronianos, embora ainda não houvessem abandonado de todo a vida nômade, já cultivavam o solo e davam seus primeiros passos rumo ao sedentarismo, condição indispensável para a frutificação de qualquer apostolado. Enquanto eles e os algonquianos eram aliados dos franceses, os iroqueses recebiam armas e instruções dos holandeses e ingleses, os quais favoreciam as rivalidades entre as tribos, criando com isso grande obstáculo à evangelização.

“Sentir-me-ia feliz se o Senhor quisesse completar
meu sacrifício no mesmo lugar onde o começou”!

Acima, gravura de Abraham van Diepenbeeck
(séc. XVII) representando o martírio do Pe. Isaac
Jogues; na página anterior, imagem venerada na
paróquia de Santo Isaac Jogues, Wayne (EUA)

Início de uma epopeia

   Ordenado sacerdote em 1636, antes de terminar os estudos complementares de sua formação espiritual no Colégio Clermont, de Paris, Jogues partiu para o Canadá, onde aportou em julho do mesmo ano. Assim escreveu à sua mãe ao chegar à aldeia missionária Sainte-Marie: “Não sei o que será o Céu; o que sei é que seria difícil sentir maior alegria que a que senti quando pus os pés em Nova França e celebrei a Missa em Quebec na festa da Visitação”.3

   Seu contentamento cresceu quando foi designado para o apostolado em Ossossané, região dos huronianos, em Trois-Rivières. A viagem era penosa e perigosa, pois a única condução eram as canoas dos aborígines, que vinham à cidade para o comércio de peles, e estes, se fossem contrariados em algo, não hesitavam em abandonar o passageiro na selva ou lançá-lo nas águas do Rio São Lourenço.

   Afinal, decorreu sem maiores sobressaltos a longa viagem de dezoito dias. O Pe. Isaac encontrou à sua espera o Pe. Brébeuf, que o recebeu com mostras de fraternal afeto, e iniciou sem demora suas atividades, dividindo o tempo entre o estudo da língua indígena, o cuidado dos enfermos e a catequese.

   Decorridos apenas cinco dias, enquanto visitava as aldeias da redondeza foi tomado por um cansaço profundo. Passadas quarenta e oito horas estava com febre altíssima: fora atingido pela varíola, epidemia que se alastrava e prostrava tanto missionários quanto nativos, devido às péssimas condições de higiene.

   A doença era caluniosamente atribuída pelos aborígenes aos “homens de preto”, aludindo à batina dos jesuítas. Segundo eles, suas “palavras mágicas” traziam a morte, e “a água batismal que derramavam na cabeça das crianças em perigo de morte era o veneno que realmente as matava”.4

   Os meses se passavam e as notícias das baixas nas aldeias eram alarmantes. Também na comunidade missionária os religiosos caíam doente um depois do outro. Esta foi uma das várias epidemias que “em poucos anos reduziram a doze mil uma população de trinta mil habitantes”. 5

   Decidiram os jesuítas fazer uma novena de Missas, com a intenção de parar a campanha difamatória levantada contra eles. No nono dia, houve uma calma repentina que maravilhou a todos. E em fins de 1637 a pregação passou a ser muito bem recebida e até admirada, tanto em Ossossané, onde ficara o Pe. Jean de Brébeuf, como na Missão de São José, em Ihonatiria, para onde fora o Pe. Jogues.

Preparação para o martírio

   Os resultados da evangelização, porém, eram escassos. Em uma das missões do Pe. Jogues, cento e vinte catecúmenos foram batizados, mas todos eles estavam em grave risco de vida. Somente em 1637, seis anos após a chegada dos jesuítas ao Canadá, o Pe. Brébeuf pôde batizar um adulto com saúde.

   Mesmo vendo que a Divina Providência não premiava com frutos imediatos tão árduas atividades de apostolado, dispostos estavam os missionários a regar com seu próprio sangue aquelas terras. A caridade os movera a abandonar sua pátria para empreender viagens e enfrentar dificuldades monumentais, a fim de salvar almas, e eles ainda a levariam ao auge através do martírio.

   Ensina São Tomás de Aquino que “o martírio é, por natureza, o mais perfeito dos atos humanos, enquanto sinal do mais alto grau de amor, segundo a palavra da Escritura: ‘Não existe maior prova de amor do que dar a vida por seus amigos’”.6 Sendo, pois, um ato tão sublime e grandioso, não foi de repente que se despertou em nosso Santo a inclinação para ele. O anseio de unir-se aos sofrimentos de Cristo inundava-lhe a alma, e assim como o Pe. Brébeuf fizera o oferecimento formal de sua vida, “Pe. Isaac Jogues suplicara: ‘Senhor, dai-me a beber abundantemente do cálice de vossa Paixão’. Uma voz interior o advertiu que sua súplica fora ouvida”.7

   Apesar de não se manifestar de forma explícita, a graça o vinha preparando em seu íntimo para este altíssimo holocausto, como o narra um de seus biógrafos: “Ele relutava em revelar qualquer das virtudes que praticava e só pelos insistentes apelos do Pe. Buteux aceitou falar das graças que Deus lhe havia outorgado. Este seu amigo forçou-o a escrever as visões com que Deus o havia confortado em momentos difíceis de sua vida. Outras intervenções divinas na vida do Santo foram anotadas pelo próprio Buteux. Deste modo, ele tomou conhecimento de que após a visão em Sainte-Marie – na qual foi dito ao Pe. Jogues: ‘Tua súplica foi atendida; faça-se conforme Me pediste; sê forte e corajoso” –, Isaac passou a se oferecer a Deus como vítima extraordinária cem vezes por dia”.8

Aceitação do oferecimento

   A oferta do missionário parecia prestes a se concretizar quando, em agosto de 1642, foi capturado pelos iroqueses enquanto viajava pelo Rio São Lourenço rumo a Quebec. A caminho do cativeiro, seu companheiro, Ir. René Goupil, em meio às torturas, pediu-lhe a graça de emitir os votos religiosos, pois ainda não os fizera devido a problemas de saúde. E, “em nome do padre provincial da França, Pe. Jogues deu permissão a René para pronunciar os votos temporários de coadjutor na Sociedade de Jesus”.9

   Chegados à aldeia de Ossernenon, região de Nova York, os sofrimentos e tormentos só aumentaram. Movidos pelo ódio, “os iroqueses surraram o Pe. Jogues sem piedade com varas e barras de ferro, arrancaram- -lhe a barba e as unhas, esmagaram- -lhe as pontas dos dedos e com uma cutilada cortaram-lhe o polegar da mão direita; as crianças divertiram- -se aplicando brasas e ferros quentes em sua carne. Finalmente, penduraram- no em dois postes com cordas bem apertadas nos pulsos”.10 Um dos selvagens, vendo que ainda restavam “duas unhas inteiras numa das mãos do Pe. Jogues, arrancou-as com os dentes”.11 Durante a noite deixaram- -no estendido no chão nu, coberto de feridas e assaltado por uma infinidade de insetos.

   O Ir. Goupil foi morto poucas semanas depois a golpes de tomahawk, a temida machadinha dos aborígenes. O Pe. Jogues, todavia, ficou escravo dos iroqueses por mais treze longos meses de terrível cativeiro, no qual sofria tanto no corpo quanto na alma, pois as provações e as tentações o assaltavam a todo instante. Julgando estar sendo castigado por Deus, temia condenar-se eternamente se aqueles tormentos não terminassem em breve.

   Como poderia ele se debater em tamanha provação, quando se encontrava na iminência de receber a graça que tanto almejava? Sói acontecer com as pessoas que se oferecem como vítima que, no momento da consumação do holocausto, elas não relacionem seus sofrimentos com o oferecimento que fizeram, e julgam estar morrendo por culpa própria. Deus permite isso para aumentar seus méritos e, por conseguinte, sua glória no Céu.

Uma visão profética

   Cerca de duas semanas após a morte do Ir. René, Pe. Jogues teve, em sonhos, uma visão. Regressava à aldeia de Sainte-Marie e encontrava, em lugar das habitações sustentadas por rústicas estacas, algo que parecia uma cidade veneravelmente antiga, cercada por fortes muralhas e guarnecida por belíssimas torres. Estupefato, ele se perguntava se estaria mesmo no lugar de sua aldeia. Alguns índios conhecidos que dali saíam garantiram- lhe que sim. Cruzou, então, o primeiro portão e logo se deparou com um segundo, no qual viu a figura do Cordeiro imolado, tendo gravadas acima dela duas letras: “L. N.”, que significavam “Laudent Nomen eius – Louvor ao seu Nome”.

   Quis seguir em frente, mas um guarda barrou-lhe a passagem, explicando- lhe que só podia transpor aquele portão quem já tivesse sido julgado. Foi conduzido a um belíssimo salão, semelhante a uma sala capitular, onde estava um homem idoso, majestoso e venerável como o Ancião da Escritura (cf. Dn 7, 9.13.22). Este ouviu algumas acusações feitas por alguém contra o Pe. Jogues e, sem nada perguntar ao réu, o açoitou por três vezes. Sentindo intensa dor, como nos golpes recebidos dos índios ferozes, o santo missionário sofreu com inteira resignação, embora não entendesse o que se passava.

   Finalmente, conta ele, “meu Juiz, quase como se estivesse admirado por minha paciência, colocou de lado a vara com a qual me havia golpeado, pôs seus braços em volta do meu pescoço e apertou-me com muita doçura, acalmando meu sofrimento e transmitindo-me uma alegria toda divina e inteiramente inexplicável”. 12

   A força e a confiança que ele hauriu nesta visão lhe amenizaram todos os esforços, trabalhos e cruzes.

Trégua para a luta final

   Liberto do cativeiro graças à intervenção de alguns holandeses que o ajudaram a fugir, Pe. Jogues voltou para a França a fim de recuperar-se deste quase primeiro martírio, embora desejasse permanecer na missão para continuar a batizar, converter e padecer.

   Quando chegou a Rennes, estava irreconhecível! A tal ponto que o reitor jesuíta, que o conhecera bem antes de sua partida para o Canadá, perguntou- lhe:

   — Conheceste o Pe. Jogues na Nova França?

   — De modo bem íntimo, reverendo pai.

   — E trazes notícias dele? Ainda vive ou, como dizem alguns, foi queimado pelos iroqueses?

   — Não, meu pai, ele está vivo. Pois é ele mesmo quem aqui está diante de vós e pede que o abençoeis…

   Devido a seus dedos mutilados, o heroico missionário estava canonicamente impedido de celebrar a Santa Missa. Escreveu, então, ao Papa Urbano VIII uma carta, explicando em detalhes sua situação e implorando autorização para, apesar de sua deficiência, oferecer o Santo Sacrifício.

   Com vivo interesse, o Sumo Pontífice pediu mais informações sobre o Pe. Isaac Jogues, sua missão no Novo Mundo e tudo quanto havia ele sofrido no cativeiro entre os iroqueses. Profundamente comovido pela narração, o Santo Padre exclamou: “Seria indigno negar a um mártir de Cristo permissão para beber o Sangue de Cristo”!13 E concedeu- lhe a autorização requerida. Ao subir os degraus do altar, depois de vinte meses, “parecia-lhe estar celebrando outra vez sua primeira Missa”.14

Consuma-se o holocausto

   Passou na França um curto período para se recompor dos tormentos padecidos. Seu mais ardente desejo, entretanto, era retornar ao front para continuar sua missão de salvar almas e, sobretudo, de sofrer. Foi na viagem de volta ao Canadá, em 1644, que se passou o episódio da tempestade no navio, narrado no início destas linhas. A partir de então, todos consideravam o Pe. Jogues, mais do que nunca, um autêntico homem de Deus.

   Após dois anos de missão em Montreal, recebeu em setembro de 1646 a incumbência de agenciar um tratado de paz com os iroqueses. Apesar da repugnância natural de voltar ao local onde tanto fora atormentado, não recuou, pois não temia sofrer mil mortes aquele cujo único anelo era fazer tudo quanto Deus lhe pedia.

   Algumas semanas mais tarde, aproveitando a transitória paz obtida, Pe. Jogues foi escolhido para ir, junto ao Ir. Jean de Lalande, agora tentar evangelizar os iroqueses. Ao receber a ordem dada pelo superior, exclamou jubiloso: “Sentir-me-ia feliz se o Senhor quisesse completar meu sacrifício no mesmo lugar onde o começou”!15

   Em 17 de outubro de 1646, ao pisar de novo em Ossernenon, Pe. Isaac Jogues foi capturado e cruelmente torturado. No dia seguinte um índio o matou a golpes de machadinha e em seguida o decapitou. Assim se consumava seu holocausto, como sacrifício de agradável odor ao Cordeiro imolado. Sacrifício este que, unido ao de seus irmãos de hábito também martirizados naquelas rudes terras, revelariam nos séculos vindouros sua fecundidade, com o florescimento da Igreja Católica em território canadense. (Revista Arautos do Evangelho, Outubro/2017, n. 190, pp. 30 à 33)

1 TALBOT, SJ, Francis. Saint among Savages. The Life of St. Isaac Jogues. San Francisco: Ignatius, 2002, p.353. 2 LALANDE, SJ, Louis. Saint Isaac Jogues. In: LALANDE, SJ, Louis (Dir.). La Compagnie de Jésus. Saints et Bienheureux. Montréal: Le Messager Canadien, 1941, p.71. 3 ECHANIZ, SJ, Ignacio. Paixão e Glória. História da Companhia de Jesus em corpo e alma. São Paulo: Loyola, 2006, t.II, p.298. 4 Idem, p.299. 5 LEITE, SJ, José (Org.). Santos de cada dia. 3.ed. Braga: Apostolado da Oração, 1994, v.III, p.199. 6 SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q.124, a.3. 7 PALACIO ATARD, Vicente. Santos Juan de Brébeuf y compañeros. In: ECHEVERRÍA, Lamberto de; LLORCA, SJ, Bernardino; REPETTO BETES, José Luis (Org.). Año Cristiano. Madrid: BAC, 2006, v.X, p.496. 8 TALBOT, op. cit., p.361. 9 Idem, p.204. 10 ECHANIZ, op. cit., p.301. 11 LALANDE, op. cit., p.73. 12 TALBOT, op. cit., p.259. 13 Idem, p.350. 14 Idem, ibidem. 15 PALACIO ATARD, op. cit., p.497.

 
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