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São Luís Versiglia: Dois cálices elevados ao Céu
 
AUTOR: IR. JULIANE VASCONCELOS ALMEIDA CAMPOS, EP
 
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Abeberou na fonte o espírito salesiano, ouviu o chamado de seu fundador e se entregou à missão na China. Ali, cumpriu com denodo sua vocação, realizando um profético sonho de Dom Bosco.

O antigo Império Celeste sempre fascinou as almas evangelizadoras, ávidas de levar a luz de Cristo àquele território tão extenso quanto inexpugnável. O grande Apóstolo do Oriente, São Francisco Xavier, foi um paradigma deste anseio: morreu na Ilha de Chang-Chuang, sem conseguir vencer a pequena distância que o separava do continente.

Um sonho profético

   Três séculos mais tarde, antes de enviar missionários à América, também São João Bosco nutria enorme desejo de evangelizar a China. A isto havia sido incentivado pelo Papa Pio IX, em mais de uma audiência. Num de seus proféticos sonhos, ele vira elevarem-se ao Céu dois grandes cálices, com os quais seus filhos regariam a missão salesiana no Oriente: um estava repleto de suor e o outro, de sangue.

   Passadas algumas décadas, da China um filho seu escreveria a outro salesiano que lhe enviara um cálice sagrado como presente: “Nosso venerável Pai, Dom Bosco, quando sonhou com a China, viu dois cá- lices cheios do suor e do sangue de seus filhos… Que o Senhor faça com que eu possa retribuir a meus superiores e à nossa Pia Sociedade o cálice que me foi oferecido. Que ele transborde, se não de meu sangue, pelo menos de meu suor!”1

   Este filho de Dom Bosco era Dom Luís Versiglia, missionário salesiano elevado, em 1920, à dignidade episcopal, como Bispo titular de Caristo e primeiro Vigário Apostólico de Shiu-Chow. Doze anos depois de escrever aquelas linhas, do cálice de sua alma haveria de transbordar, além do suor da dedicação missionária, o sangue do martírio, recebido junto com o Pe. Calisto Caravario, companheiro de missão.

De “veterinário” a aluno salesiano…

   Nascido em Oliva Gessi, a 5 de junho de 1873, Luís era o único varão entre os três filhos de João Versiglia e Maria Giorgi, família conhecida por sua fé e conduta exemplar. Ainda muito criança começou a ajudar nas Missas paroquiais com grande devoção. Tão pequeno era que quase não alcançava o altar! E quando lhe diziam que seria sacerdote, negava-o energicamente, pois queria ser veterinário…

   Por sentir-se atraído pelas armas e pelos cavalos, temia o menino ser conduzido aos estudos eclesiásticos. Passou, então, a dedicar-se menos como coroinha. Com doze anos aceitou ser enviado ao Orató- rio Salesiano de Valdocco a fim de terminar os estudos ginasiais e frequentar a célebre escola veteriná- ria de Turim. Não contava, porém, com Dom Bosco, em cujo convívio de dois anos e meio seria cativado para sempre!

   O jovem Luís era inteligente, de vontade férrea e cumpridor dos deveres, mas no início teve dificuldade nos estudos. Nas primeiras fé- rias aplicou-se com afinco para vencer suas lacunas e passou a se sobressair em todas as matérias, sobretudo em Matemática, o que muito lhe valeria no futuro para construir as edificações da missão na China.

   De alta estatura e porte distinto, era líder entre os colegas, aos quais encantava por sua natural amabilidade e alegria. “Na igreja era um anjo na oração: recolhido, fervoroso e assíduo na Comunhão cotidiana. Nos solenes ofícios religiosos aquele pequeno clérigo parecia uma criatura do Céu. Suas devoções prediletas eram o Santíssimo Sacramento e Maria Auxiliadora”,2 testemunha Dom Frederico Emanuel, que seria Bispo salesiano de Castellammare di Stabia.

Conquistado pelo carisma de Dom Bosco

   Durante sua estadia no Oratório teve inúmeras oportunidades de encontrar-se pessoalmente com Dom Bosco, em especial nas famosas conversas conhecidas como “Boa-noite”, que tanto bem faziam aos jovens alunos. Naquela época eram seiscentos internos e a figura afetuosa do pai comum de todos era sua referência.

   Não obstante, Luís não tinha ensejo para um contato mais próximo ou para confessar-se com ele, pois, por sua saúde um tanto debilitada, este privilégio cabia apenas aos alunos do último ano ginasial. Contudo, em 23 de junho de 1887, na celebração da vigília do onomástico do fundador, teve Luís a honra de ser o orador.

   Terminada a saudação, ao oscular as mãos do homenageado ouviu dele estas palavras: “Procura-me depois, tenho algo a dizer-te”.3 Sem embargo, as circunstâncias não lhe permitiram falar naquela ocasião, nem nos meses que precederam a morte do Santo, ocorrida em janeiro seguinte.

   Do Paraíso, todavia, encontrou Dom Bosco um meio de comunicar-lhe sua mensagem durante a cerimônia de despedida de sete salesianos que regressavam em missão para a América: o queria  missioná- rio salesiano! O próprio Versiglia confidenciaria em carta a seu diretor espiritual: “Em 1888, quando ainda cursava o terceiro ano ginasial no Oratório, ao ver partir a expedição chefiada pelo Pe. Cassini, senti-me ajudado pela graça do Senhor – ou melhor, deveras impulsionado – a abandonar meu propósito anterior e fazer-me salesiano, com esperança de um dia tornar-me missionário”.4

   Ficavam para trás seus sonhos veterinários… Os cavalos só lhe seriam úteis na China, pois sua destreza e segurança ao cavalgar lhe permitiriam trilhar rudes veredas e chegar aos lugares mais distantes.

Longos anos de preparação

   Em outubro daquele ano Luís entrou para o noviciado em Foglizzo e ali recebeu a veste talar das mãos de Dom Miguel Rua, primeiro sucessor de Dom Bosco. Seu candor de alma, vida interior e uma escrupulosa observância da regra marcaram esta fase de formação inicial.

   Transcorrido o tempo prescrito, fez a primeira profissão religiosa em Valsalice, junto aos restos de Dom Bosco. “Aquele túmulo glorioso foi para ele um altar que lhe falava e o estimulava a progredir cada vez mais na via da perfeição”.5 Alimentava-lhe também o desejo de ser missionário, para o que procurava preparar-se formulando propósitos de “santificação pessoal, mortificação do amor-pró- prio e humildade”.6

   Concluído o ginásio, foi enviado a Roma para cursar o triênio de Filosofia na Universidade Gregoriana, onde marcou presença com seu comportamento militarmente resoluto, gentil e afável. Em 1893 se doutorava e regressava a Foglizzo, como professor e assistente dos noviços.

   Imbuído do espírito de Dom Bosco e mais maduro do que seus curtos vinte anos, tornara-se exímio formador, fino psicólogo e bom amigo. Animava com bondade paterna, admoestava com severidade caridosa e ensinava com clareza, sendo muito querido pelos alunos.

No “boa-noite” de despedida,
o Santo Bispo parecia
pressentir o que aconteceria
Dom Versiglia dando aula de
catecismo para os órfãos,
por volta de 1926

   Depois de sete anos de vida salesiana, e tendo conjugado com as outras ocupações o estudo da Teologia, o jovem Luís estava preparado para o presbiterato. Entretanto, por contar apenas vinte e dois anos, foi preciso obter a dispensa da idade canônica. E no dia 21 de dezembro de 1895 era ordenado sacerdote, na Catedral de Ivrea.

Genzano: última etapa antes da partida

   No ano seguinte foi aberto um noviciado em Genzano, cidadezinha próxima a Roma, e Dom Rua nomeou diretor da casa e mestre de noviços o novo sacerdote, em cuja sabedoria e qualidades para o governo confiava. Este, porém, estava persuadido de não ter capacidade nem virtude para tal ofício…

   Preparou, então, uma cuidadosa argumentação e foi falar com Dom Rua em Turim. Ele o recebeu com bondade e o ouviu com paciência por quase meia hora, até que o interrompeu e disse: “Está muito bem, Pe. Versiglia. E quando parte?” Obediente, ele apenas respondeu: “‘Bom, amanhã, Sr. Dom Rua. Hoje já não há mais trens’. As objeções do Pe. Versiglia haviam convencido Dom Rua do acerto de sua escolha”…7

   Genzano deu ao Pe. Luís um amadurecimento ainda maior, pois assumiu responsabilidades e enfrentou dificuldades para ele desconhecidas. Nem sequer as acomodações do noviciado estavam prontas quando foram viver ali!

   Nesse ínterim, o Bispo de Macau entrou em tratativas com Dom Rua, pedindo salesianos para ali assumirem a direção de um orfanato. A escolha caiu naturalmente sobre o Pe. Arturo Conelli, propagador do famoso sonho dos dois cálices e que, desde o tempo de Dom Bosco, era tido como aquele que capitanearia a futura missão à China.

   Os caminhos de Deus, no entanto, não são os dos homens… O Pe. Conelli encontrava-se convalescendo de um sério problema de saú- de em Frascati, fato que o levou a sugerir o Pe. Versiglia para encabeçar a missão.

Início da realização do grande ideal

   Atendendo ao chamado com presteza e generosidade, o Pe. Luís começou a preparar-se. Passou alguns meses em Portugal e na Inglaterra para aprender seus idiomas. Após alguns anos de missão acabaria por dominar fluentemente, também, o chinês e o francês.

   Comandada pelo Pe. Luís Versiglia, a primeira expedição salesiana para a China partiu de Gênova em 18 de janeiro de 1906. No dia seguinte, na escala feita em Nápoles, subiu a bordo o Pe. Conelli para levar aos missionários um retrato do Papa São Pio X, autografado com a seguinte mensagem: “Ao dileto filho Pe. Luís Versiglia e aos seus companheiros da Pia Sociedade Salesiana igualmente diletos, com voto ardentíssimo de que seu apostolado na China seja coroado dos melhores sucessos, enviamos de coração a bênção apostólica”.8

   Escrita com entusiasmo pelo Pe. Giovanni Fergnani, em nome do Pe. Versiglia, uma primeira carta chegava a Dom Rua depois de instalados: “Começamos!”9 A língua chinesa ainda era um obstáculo, obrigando-os a se servir de um intérprete. Contudo, prosseguia a carta, “o amor possui uma linguagem secreta e misteriosa, na qual não há palavras. Os jovens correm ao nosso encontro, tagarelando sem parar, como amigos de velha data”.10

Árdua e complexa terra de missão

   A China era uma complexa terra de missão. Fechada a qualquer influência estrangeira até meados do século XIX, ela passava à época por um período de grandes convulsões internas e externas, culminando com a Revolução Republicana de 1911, que mudou definitivamente a forma de governo e deu origem a novas revoluções.

   Aqueles filhos de Dom Bosco, todavia, não mediam esforços e sacrifícios, deixando seus cálices missionários repletos do suor de seu zelo apostólico. Enfrentando com valentia e prudência as tribulações, os frutos não tardaram a se fazer sentir.

   Impossível seria resumir em algumas linhas os vinte e quatro anos de profícua evangelização ali desenvolvida pelo Pe. Versiglia, seguindo o lema de seu fundador: “Da mihi animas, cætera tolle – Dai-me as almas, ficai com o resto”.11 Para alcançar tal meta, nunca abandonava o mé- todo de Dom Bosco: logo no começo consagrar o apostolado a Maria Auxiliadora e formar uma pequena orquestra, atraindo as maravilhá- veis almas chinesas e preparando-as para a graça.

   Em 1912 já contavam com quatro casas, projetadas pelo Pe. Versiglia e levantadas, algumas vezes, pelas mãos dos próprios salesianos. Com o passar dos anos foram abertas escolas elementares e de instrução catequética, das quais muitos jovens saíam com uma formação profissional. Inúmeras foram as almas batizadas.

O Vicariato Apostólico de Shiu-Chow

   Shiu-Chow, iniciada em 1917, foi a mais importante missão estabelecida pelos salesianos. Para alentar os trabalhos, em 1919 o Pe. Versiglia estimulou a criação de um jornalzinho, o Inter Nos, no qual se publicava as atividades missionárias.

   Foi também ali que ele escreveu, de punho e letra, cinco mandamentos que sintetizavam uma circular enviada a seus confrades: “1. O missionário que não está unido a Deus é um canal que se destaca da fonte. 2. O missionário que reza muito, também fará muito. 3. Amar muito as almas; este amor será o mestre de todas as ações para lhes fazer o bem. 4. Sempre e em tudo almejar o melhor; mas contentar-se sempre com o que se consegue. 5. Sem Maria Auxiliadora nós, salesianos, somos nada”.12

   O desenvolvimento da missão de Shiu-Chow e seu enorme território contribuíram para que fosse elevada a vicariato apostólico. Em janeiro de 1921 era ele ordenado Bispo na Catedral de Cantão, para governá-la.

Um pressentimento?

   Na última viagem feita à Itália, no ano seguinte, Dom Versiglia conheceu o noviço Calisto Caravario, com fortes aspirações missionárias. Em 1924, ele desembarcaria na China. Meses antes haviam chegado a Shiu-Chow as primeiras Filhas de Maria Auxiliadora.

   Fortes convulsões internas estalam em 1925 no país, fazendo com que as casas salesianas sofram violentos ataques e invasões. Nada disso, entretanto, diminui o entusiasmo dos empreendedores missionários. O jovem Caravario, então com vinte e três anos, é ordenado sacerdote por Dom Versiglia em abril de 1929 e pouco depois enviado a Lin Chow. Em 22 de fevereiro de 1930 o vicariato tem mais um progresso: é inaugurado o novo seminário, derradeira construção dirigida por Dom Versiglia.

   Estando o Pe. Caravario de passagem por Shiu-Chow, o prelado decide acompanhá-lo no retorno a Lin Chow. Com eles iriam outras pessoas, entre as quais Maria Thong, de vinte e dois anos, intrépida evangelizadora que desejava ser religiosa, e duas estudantes chinesas. A viagem era arriscada, porque deviam passar por uma zona que se tornara campo de batalha entre os comunistas e as tropas regulares. Aqueles se tinham misturado aos piratas, com um espírito “carregado de ódio e inclinados ao crime e ao sangue. Qualquer esquadra de piratas não estava nada menos que organizada como brigada vermelha”.13

   Na “boa-noite” de despedida, em 23 de fevereiro, o santo Bispo parecia pressentir o que aconteceria: “Se não nos for dado rever-nos neste mundo, possamos pelo menos nos encontrar todos no Paraíso”…14

O cálice se enche de sangue!

   Partiram em trem até Lin Kong How e aí pernoitaram na residência missionária. Na manhã seguinte, terminada a Missa, iniciaram o longo percurso fluvial que devia durar cinco dias. A barca levava uma bandeira branca com a inscrição “Missão Católica”.15 Em tempos idos isto dava segurança aos tripulantes. Não, porém, agora…

   À hora do Ângelus um bando de piratas bolchevistas os interceptou, exigindo um salvo-conduto ou o pagamento de uma elevada multa. Durante as tratativas, os comunistas subiram a bordo e, ao se depararem com as três jovens chinesas, quiseram levá-las consigo. Os dois clérigos se interpuseram heroicamente e foram atacados a coronhadas e pauladas, até caírem feridos. Vendo-se encurralada, Maria jogou-se no rio decidida a morrer para não macular sua pureza, mas foi puxada pelas tranças e levada para a margem com os outros tripulantes.

   Dom Versiglia e o Pe. Caravario foram amarrados, enquanto os piratas saqueavam seus pertences e queimavam livros e breviários. Animadas pelo indômito olhar do prelado, as chinesinhas rezavam pedindo o martírio. Um dos bandidos, arrancando os crucifixos que Maria tinha nas mãos, bradou: “Por que amas estas cruzes? Nós não as toleramos, as odiamos de toda a alma, não as queremos de nenhuma maneira e nos opomos a elas tanto quanto podemos”.16

   As jovens puderam ver os missionários se confessarem em voz baixa um com o outro, antes de serem covardemente fuzilados num bosque de bambus próximo. Enchiam eles, com o próprio sangue, o segundo cá- lice visto por Dom Bosco em sonho. Eram, assim, os dois cálices elevados ao Céu! (Revista Arautos do Evangelho, Fevereiro/2018, n. 194, pp. 32 à 35)

1 SÃO LUÍS VERSIGLIA. Lettere a Don Paolo Albera, 12/10/1918, apud BOSIO, SBD, Guido. Martiri in Cina. Mons. Luigi Versiglia e Don Callisto Caravario nei loro scritti e nelle testimonianze di coetanei. Torino: Elle Di Ci-Leumann, 1977, p.2. 2 EMANUEL, SDB, Federico. Memorie, apud BOSIO, op. cit., p.16. 3 BOSIO, op. cit., p.16. 4 SÃO LUÍS VERSIGLIA. Lettere a Don Giulio Barberis, 22/7/1890, apud BOSIO, op. cit., p.20. 5 EMANUEL, op. cit., p.26. 6 SÃO LUÍS VERSIGLIA. Lettere a Don Giulio Barberis, 26/7/1890, apud BOSIO, op. cit., p.28. 7 BIANCO, SDB, Enzo. I buoni pastori danno la vita. Mons. Versiglia e Don Caravario. Roma: Ufficio Stampa Salesiano, 1980, p.9. 8 SÃO PIO X, apud BOSIO, op. cit., p.79. 9 FERGNANI, SDB, Giovanni. Carta a Dom Miguel Rua, 2/4/1906, apud BOSIO, op. cit., p.80. 10 Idem, ibidem. 11 AUBRY, SDB, Joseph (Org.). Escritos espirituais de São João Bosco. São Paulo: Dom Bosco, 1975, p.223. 12 BOSIO, op. cit., p.168. 13 Idem, p.215. 14 BIANCO, op. cit., p.36. 15 ENTRE LAS CONVULSIONES DE UN IMPERIO. Memorias biográficas de Mons. Luis Versiglia y Don Calixto Caravario. Barcelona: Pax, 1935, p.151. 16 Idem, p.166.

 
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