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Lux in tenebris lucet
 
AUTOR: MONS. JOÃO CLÁ DIAS, EP
 
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A mais fulgurante das luzes brilha nas trevas e oferece à humanidade a verdadeira paz, sobretudo em nossa era crivada de guerras, catástrofes e ameaças. Junto a Maria, a José e aos pastores, no Presépio, adoremos o Menino-Deus, o Príncipe da Paz.

1 Naqueles dias, saiu um edito de César Augusto, prescrevendo o recenseamento de toda a terra. 2 Este recenseamento foi anterior ao que se realizou quando Quirino era governador da Síria. 3 Iam todos recensear-se, cada um à sua cidade. 4 José foi também da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de Davi, que se chamava Belém, porque era da casa e família de Davi, 5 para se recensear juntamente com Maria, sua esposa, que estava grávida. 6 Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz, 7 e deu à luz o seu filho primogênito, e O enfaixou, e O reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria. 8 Naquela mesma região, havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. 9 Apareceu-lhes um anjo do Senhor e a glória do Senhor os envolveu com a sua luz e tiveram grande temor. 10 Porém, o anjo disse-lhes: “Não temais, porque vos anuncio uma boa nova, que será de grande alegria para todo o povo: 11 Nasceu-vos hoje na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor. 12 Eis o que vos servirá de sinal: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”. 13 E subitamente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: 14 Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens, objeto da boa vontade de Deus” (Lc 2, 1-14).

I – Cristo, o centro da História

   Vivemos no Século XXI e ninguém levanta a menor dúvida a este propósito, pois assim foi estabelecido, por consenso universal, o critério para elaborar o nosso calendário. Só esse fato seria, de si, suficiente para comprovar que há dois milênios e seis anos, numa gruta em Belém, nasceu o Menino-Deus com a missão de salvar o mundo. Essa é uma das provas da grande importância que todos os povos, crentes ou não-crentes, atribuíram ao acontecimento que acabou por dividir a História em dois grandes períodos: antes e depois de Cristo. Não tardaram muitos séculos para que urbi et orbe, três vezes ao dia, os sinos das igrejas ecoassem a fim de recordar e alçar seus louvores aos Céus pela Encarnação do Verbo; o Ângelus passou a ser uma devoção universal. A emoção e o júbilo pervadiram a terra e, ao longo dos tempos, na celebração do Natal, sempre ressoaram os cantos litúrgicos e as canções destinadas a manifestar a mesma alegria de há mais de vinte séculos:“Hodie Christus natus est” (1).

   “Uma luz resplandece nas trevas” (Jo 1, 5): “Christus natus est nobis“, foi para nós que Ele nasceu, para a humanidade de todas as épocas, até o Juízo Final. O glorioso nascimento do Menino Jesus constitui uma inesgotável fonte de salvação. E, invariavelmente – sobretudo neste ano tão atravessado por ameaças de guerras, convulsões e terrores – o convite que nesta festividade é feito aos homens vem carregado de promessas.

   Junto ao Divino Infante pode-se encontrar a verdadeira paz, como ocorreu com os pastores e os Reis Magos. Movidos por um sopro do Espírito Santo, abandonaram seus afazeres e puseramse a caminho em busca da Paz Absoluta, para adorá-La. Esse mesmo convite nos é dirigido a nós na noite de hoje: “Venite adoremus”, pois “a graça de Deus, nosso Salvador, apareceu a todos os homens. (…) Manifestou-se a bondade de Deus nosso Salvador e o seu amor pelos homens” (Tt 2, 11; 3, 4).

II – Viagem de José e Maria a Belém

O recenseamento

1 Naqueles dias, saiu um edito de César Augusto, prescrevendo o recenseamento de toda a terra. 2 Este recenseamento foi anterior ao que se realizou quando Quirino era governador da Síria. 3 Iam todos recensear-se, cada um à sua cidade.

   Não há uma só palavra ou um só gesto relacionado com a vida de Jesus que não contenha vários e altíssimos significados. Por isso multiplicam- se ao longo dos séculos comentários e interpretações sobre as narrativas evangélicas. Neste primeiro versículo encontramos um exemplo interessante sobre esse particular. São Tomás de Aquino, por exemplo, assim se manifesta:

   Cristo veio para nos reconduzir do estado de escravidão ao estado de liberdade. Por isso diz Beda que, assim como assumiu nossa condição mortal para nos conduzir à vida, assim ‘dignou- Se encarnar num tempo em que, apenas nascido, seria registrado no censo de César, e, por nossa libertação, se submeteu Ele mesmo à escravidão’” (2). Além dos aspectos teológicos relacionados com o recenseamento, podemos considerar razões concretas, de ordem geográfica e sociológica, que tornam mais clara a providencialidade da escolha da época para nascer o Messias.

   Naquele tempo, o local de nascimento do fundador da estirpe era de fundamental importância para se determinar as origens de uma família. Mesmo após ter-se desdobrado em inúmeros ramos que iam estabelecer-se em outros lugares, às vezes longínquos, essas novas colméias humanas guardavam um estreito relacionamento com suas nascentes geográficas. Esse costume era sobremaneira observado pelo povo judeu, e dele se serviram os romanos para fazerem cumprir o edito de César Augusto, a fim de levar a cabo um exato recenseamento do povo. Daí o fato de José ver-se na contingência de apresentar-se diante das autoridades, na “cidade de Davi, que se chamava Belém”. Por isso, a Sagrada Família deveria empreender uma viagem de três ou quatro dias, de Nazaré a Belém (cerca de 140 km), tempo gasto pelas caravanas da época. Aliás, Belém ficava no carrefour das rotas de caravanas com destino ao Egito, sendo um lugar de repouso dos viajantes.

Por que Maria fez a viagem com José

4 José foi também da Galiléia, da cidade de Nazaré, à Judéia, à cidade de Davi, que se chamava Belém, porque era da casa e família de Davi, 5 para se recensear juntamente com Maria, sua esposa, que estava grávida.

   O fato de São Lucas mencionar o estado de gravidez no qual se encontrava Maria Santíssima propicia comentários e hipóteses. Como só José tinha a obrigação de apresentar-se em Belém, por que também Maria teria empreendido essa viagem na companhia dele?

   Segundo alguns autores, talvez ambos tivessem planejado sua definitiva mudança para a cidade-berço da estirpe do Rei Profeta. Tanto mais que, na Anunciação feita por São Gabriel, constava que Deus daria ao Menino o trono de seu pai Davi. Além disso – argumentam esses autores – havia vários séculos, o profeta Miquéias fizera referência à cidade de Belém como o local de procedência d’Aquele que governaria o povo judeu (cf. Mq 5,1).

   Por outro lado, é também possível que José não quisesse deixar Maria a sós naquelas circunstâncias, sobretudo se considerarmos a grande santidade desse varão que seria o pai legal e tutor do Filho de Deus. José, certamente, queria adorá-Lo o quanto antes e logo no primeiro instante.

   Quiçá todas as hipóteses se conjuguem e tenham cabimento. Seja como for, o deslocamento deve ter sido muito fatigante para a Santíssima Virgem, já tão próxima dos últimos momentos da gestação. Os caminhos, além de tortuosos e mal-acabados, estavam ingurgitados pelo fluxo do trânsito dos convocados pelo recenseamento. Asnos e camelos circulavam num e noutro sentido em número acima do costumeiro. Além disso, Belém se situa 10 km ao sul de Jerusalém, a mais de 700 metros de altitude sobre o Mediterrâneo e a quase 1200 metros acima do nível do Mar Morto; portanto, uma e outra cidade se encontram em altitudes bem semelhantes. Era a última região habitável rumo ao Mar Morto. Assim, íngremes foram os derradeiros trechos de estrada percorridos para chegar em Jerusalém e pernoitarem em Belém.

   Talvez se julgue que, pela imensa consolação de se tornar mãe daí a pouco, não sentisse a Santíssima Virgem as agruras de tão penoso percurso. Mas até isso Lhe foi exigido, para tornar mais meritória sua participação na obra redentora de seu Divino Filho. E a esse incômodo, outro mais se acrescentaria: os “hotéis” daqueles tempos. As condições de hospedagem nem de longe se assemelhavam às de hoje, sob os mais variados aspectos. Os viajantes ocupavam divisões contíguas, debaixo de caramanchões – sem teto, portanto – ou, os que possuíam mais recursos, cubículos cobertos. Estes e aqueles se localizavam ao longo de um muro alto que cercava um pátio amplo, no qual os hóspedes deixavam os respectivos animais. Uma única porta dava acesso ao interior da hospedagem. Nas noites de superlotação, não era raro encontrar pessoas acampadas nesse pátio. Tal convívio entre homens, em meio aos animais, era alimentado por comes e bebes, alegrado por cantorias, falatórios e até mesmo discussões. Não era alheio a esse ambiente um indescritível prosaísmo, comum naqueles tempos.

   Em nada era estranha aos judeus a agitação que se criou por ocasião do recenseamento, pois o ambiente era o mesmo ao longo das celebrações da Páscoa. Ainda não havia o recato que o Preciosíssimo Sangue do Redentor introduziu depois na Civilização Cristã. Tudo se fazia sem reservas: ali se podia nascer ou morrer, adoecer ou curar-se, dormir ou agitar-se, etc., à vista de todos. Esse é o verdadeiro sentido da afirmação de São Lucas: “porque não havia lugar para eles na hospedaria”. Não tanto porque esta estivesse lotada, mas por não Lhes ser adequada.

Belém, a cidade escolhida

   E por que Belém?

   O nome da cidade é de origem hebraica: “Bet-lehem“, ou seja, “casa do pão”, porque essa localidade era muito fértil. Quem, misticamente, cantou as glórias de Belém foi Santa Paula, no ano de 383: “Saúdo-te, ó Belém, casa do pão, onde o pão descido do Céu viu a luz da terra! Saúdo-te, ó Efratá, campo riquíssimo e fértil, que entre os teus frutos trouxeste o próprio Deus!” (3). São Tomás de Aquino nos ensina algumas das razões pelas quais Jesus escolheu Belém para nascer e Jerusalém para morrer:

   “Davi nasceu em Belém, mas escolheu Jerusalém para estabelecer nela a sede de seu reino e ali edificar o templo de Deus. Assim, Jerusalém viria a ser ao mesmo tempo a cidade real e sacerdotal. Mas o sacerdócio de Cristo e o seu reino se realizariam principalmente em sua Paixão. Por isso era conveniente que, para nascer, escolhesse Belém, e para a Paixão, Jerusalém. (…)

   “Como diz São Gregório, Belém quer dizer ‘casa do pão’. E o próprio Cristo afirma: ‘Eu sou o pão vivo, que desceu do Céu’. (…) Além disso, contrariava a vanglória dos homens que se orgulham de ter nascido em cidades famosas, nas quais querem principalmente ser honrados. Cristo, pelo contrário, quis nascer numa cidade obscura e padecer opróbrios numa cidade famosa” (4).

   Historicamente, Belém tem um passado rico em densidade e simbologia. Ali foi enterrada Raquel, esposa de Jacó (cf. Gn 35, 16-19), e até hoje se pode visitar seu túmulo. Na divisão do território de Israel, efetuada por Josué, Belém coube à tribo de Judá, na qual nasceu Davi. Porém, depois do nascimento de Jesus, ela se eclipsa. Os Evangelhos não mais a mencionam, e, assim, ela fica com os resplendores dos primeiros olhares do Salvador, logo ao vir a este mundo. Só no século II, São Justino e Orígenes, além de alguns outros escritores, fazem reviver as glórias dessa cidade.

III – Nasce o Salvador

História da Gruta

6 Ora, estando ali, aconteceu completarem-se os dias em que devia dar à luz, 7 e deu à luz o seu filho primogênito, e O enfaixou, e O reclinou numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.

   Como o próprio São Lucas declara, “não havia lugar para eles na hospedaria“, ou seja, José viajou a Belém na esperança de encontrar uma hospedagem à altura do grande acontecimento que ali se passaria. A Beata Ana Catarina Emmerick descreve com piedosa riqueza as várias e frustradas tentativas de José, no reencontro com suas antigas amizades, de achar um local para ali repousarem. Depois de lhe rolarem amargas lágrimas pelo rosto, lembrou-se de um refúgio distante da cidade, freqüentado por ele mesmo em sua juventude para escapar de seus perseguidores e aproveitar para rezar. Após propor à Santíssima Virgem essa solução, para lá se dirigiram. Segundo a vidente – que descreve em minúcias tanto o exterior quanto o interior da Gruta -, ali nascera Set, terceiro filho de Adão, o qual, de acordo com a promessa de um Anjo a Eva, tomaria o lugar de Abel. Outros fatos simbólicos, relacionados com Abraão, também haviam se passado nesse mesmo lugar.

   Por fim, já bem instalados, Maria sugeriu a José rezarem juntos por todos aqueles que haviam se negado a recebê-los, e lhe comunicou a hora do nascimento, pedindo-lhe que preparasse bem a manjedoura para poder honrar e adorar o Menino, tão logo Ele entrasse neste mundo.

O Céu se uniu à terra

   Depois de alguns instantes, passados fora, José retornou à Gruta, encontrando- a como que em chamas, de tanta luz. Imediatamente prostrou- se com o rosto em terra. Essa luz que envolvia a Santíssima Virgem foi crescendo de intensidade e, à meia-noite, após Ela entrar em êxtase e levitação, e estando a própria natureza dos arredores como que em grande júbilo, nasceu o Salvador. Ao ter-Se movido o Menino, fazendo ouvir seus primeiros vagidos, Maria “envolveu-O em panos e recostou- O no Presépio”. Os céus desceram à terra para adorá-Lo, enquanto a Virgem, resguardando-O em seu amplo manto, O amamentava. Passada uma hora, Maria chamou José, o qual ainda estava prosternado em oração. Júbilo, humildade e fervor, são as qualidades com que a vidente Ana Catarina descreve o estado de alma de José, ao receber o Menino nos braços, banhando-se em lágrimas de alegria. O recém-nascido era “brilhante como um relâmpago”, segundo sua expressão.

   A esta altura do presente artigo, vem-me o ardente desejo – talvez por neste momento eu me encontrar numa capela, bem próximo de Jesus- Hóstia, exposto à adoração – de dirigir às almas que lêem este relato o que São Paulo implora ao Pai, para os Efésios: “Que Cristo [Menino] habite pela fé em vossos corações, arraigados e consolidados na caridade, a fim de que possais, com todos os cristãos, compreender qual seja a largura, o comprimento, a altura e a profundidade, isto é, conhecer a caridade de Cristo, que desafia todo o conhecimento, e sejais cheios de toda a plenitude de Deus” (Ef 3, 17-19).

O Natal na Liturgia

   Assistimos liturgicamente, nesta noite, ao nascimento de Cristo, que se deu no tempo, pois, por sua natureza divina, já fora gerado desde toda a eternidade, como afirma São Tomás de Aquino: “Cristo tem duas naturezas: a divina e a humana. A primeira, recebeu- a do Pai desde toda a eternidade; e a outra, recebeu-a da Mãe, no tempo. É, pois, necessário atribuir a Cristo dois nascimentos: o do Pai, desde a eternidade, e o da Mãe, no tempo” (5).

   “E o Verbo Se fez carne …” (Jo 1, 14). A Segunda Pessoa da Santíssima Trindade está entre nós. Esse acontecimento único e insuperável refulge em toda a História e, apesar de terse dado há mais de dois mil anos, é atualíssimo. Deus quis fazer-Se sensível e visível e, ainda hoje, como se dará até o fim dos tempos, podemos ter contato com esses esplendores da Encarnação através dos Sacramentos. Diariamente, sobre os nossos altares, o Verbo Se faz carne. Por essa razão, a Missa do Galo, para nós, tem um significado todo especial. Que o Espírito Santo nos abrase o coração para aproveitarmos todas as graças e dons trazidos pelo Menino-Deus, em sua vinda à luz, nesta noite.

IV – Adoração dos pastores

8 Naquela mesma região, havia uns pastores que velavam e faziam de noite a guarda ao seu rebanho. 9 Apareceu-lhes um anjo do Senhor e a glória do Senhor os envolveu com a sua luz e tiveram grande temor.

   Também Davi havia sido pastor de ovelhas, e naquela gruta estavam três de seus descendentes, sendo um deles o Filho do Altíssimo. A corte celeste já rendera culto e homenagem ao Menino. Nascido com nossa natureza, digno e justo era que também de nossa sociedade recebesse Ele adoração.

Uma categoria social desprezada

   Os pastores constituíam uma comunidade desprezada pelos fariseus. No caso concreto de Belém, trabalhavam eles nos confins da região, onde o cultivo das plantações já não interessava e as terras estavam abandonadas e incultas. Ali permaneciam os rebanhos mais numerosos, fosse inverno ou verão, vigiados por alguns homens. Os habitantes do povoado guardavam seus animais nos estábulos dos arredores. A péssima reputação dos pastores entre os fariseus provinha de várias razões. Percebese, de imediato, que as funções por eles exercidas não se coadunavam muito com as inúmeras abluções, lavar de mãos, purificação de vasilhas, seleção de alimentos, etc., às quais os fariseus davam tanta importância. Mas, sobretudo, eram eles homens de bom senso e mais dados à contemplação. O contato permanente com a natureza saída das mãos de Deus, na calma e tranqüilidade do isolamento do campo, lhes enriquecia a alma de pensamentos elevados, conduzindoos à elaboração de critérios sólidos, difíceis de serem destruídos pela ilogicidade caprichosa dos fariseus.

   Eis, em poucas palavras, os motivos pelos quais os pastores eram excluídos dos pleitos judiciais dos fariseus, não eram aceitos como testemunhas, e nem sequer podiam entrar em seus tribunais.

Separando dos incrédulos os que têm fé

   Assim, já ao nascer, o Menino-Deus iniciou sua missão de pedra de escândalo, deixando de lado os que não crêem. Herodes ouviria dos lábios dos Reis Magos o anúncio do grande milagre; aqueles que recusaram pousada aos pais do Menino, e os próprios fariseus, com sua pérfida pertinácia, também rejeitariam os milagres de Jesus. Todos esses não creram. Os Anjos buscaram os pastores por terem estes uma robusta virtude da fé, toda feita de obediência. Não era fácil crer num Messias nascido em plena pobreza, num estábulo, entre um boi e um burro. Os pastores, entretanto, foram escolhidos por Deus, não por sua simplicidade de vida e de costumes, nem sequer pela sua pouca capacidade financeira – pois muitos outros havia em Israel mais pobres e simples do que eles -, mas porque estavam predispostos a crer.

O temor da grandeza de Deus

   Sem embargo, os pastores “tiveram grande temor”. Herodes também temeria, da mesma forma que, mais tarde, os escribas, os fariseus e o Sinédrio. São muito diferentes todos esses temores. A aparição de um Anjo, para os judeus, vinha sempre acompanhada da idéia de perecimento imediato. Mas neste caso, além do mais, dava-se a manifestação da glória de Deus, e o natural efeito de sua grandeza é o temor, seguido de admiração ou de ódio, nunca de indiferença. Por isso uns irão correndo à Gruta para adorá-Lo e outros quererão matá-Lo.

10 Porém, o anjo disse-lhes: “Não temais, porque vos anuncio uma boa nova, que será de grande alegria para todo o povo: 11 Nasceu-vos hoje na cidade de Davi um Salvador, que é o Cristo, o Senhor. 12 Eis o que vos servirá de sinal: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”.

   O anúncio do Anjo se inicia por uma determinação: “Não temais!” Estas palavras evidentemente diziam respeito à sua própria aparição, mas bem poderiam constituir um letreiro a ser colocado sobre a manjedoura onde repousa o Menino-Deus. Sim, porque, apesar da fragilidade de um recém-nascido, ali se encontram a Grandeza infinita de Deus, a Verdade, a Justiça e a Bondade. Por nossa natureza defectiva e por sermos pecadores, temos medo da Justiça e, assim como a luz muito brilhante pode ferir os olhos enfermos, treme nossa maldade diante da Grandeza de Deus.

   Daí ter o Anjo recomendado com tom imperativo que não temessem, e logo a seguir lhes falado de uma “grande alegria”. De fato, impossível alegria maior. Aquele Messias que tanto fora objeto de suas longas conversas, como também de suas inúmeras contemplações, havia nascido. Apesar de sua formação tosca, estavam os pastores isentos do dogmatismo obliterado dos fariseus; com a fé inocente de camponeses que eram, cheios da graça do Espírito Santo, imediatamente acreditaram na angélica mensagem.

   Encontrarem o local não constituía problema para eles, pois todos os estábulos já lhes eram muito conhecidos. Nas noites de muito frio, ou chuva, buscavam refúgio nessa ou naquela gruta. O Anjo lhes dá o sinal indicativo: “Um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura”.

V – O cântico dos anjos

13 E subitamente apareceu com o anjo uma multidão da milícia celeste louvando a Deus e dizendo: 14 “Glória a Deus no mais alto dos Céus, e paz na terra aos homens, objecto da boa vontade de Deus “.

   Fixemos nossa atenção nestas palavras: “multidão da milícia celeste (…) glória a Deus“.

Glória a Deus nas alturas…

   Sim, a maior glória que a humanidade e os próprios Céus poderiam dar a Deus realizou-se no grandioso nascimento do Senhor. Toda a criação – nela incluída a Santíssima Virgem – reunida num só coro, jamais prestaria a Deus o louvor que se elevou do Menino Jesus em seu nascimento. Antes de este ter-se dado, os cânticos de todos os seres eram débeis e sem eco. Com a vinda de Cristo, causa meritória e eficiente de nossa divinização, toda a obra da criação atingiu um patamar inimaginável. E tornando-Se Jesus centro e modelo, não apenas o cântico passou a ser outro, como Ele também começou a cooperar na infinita glorificação que o Pai deseja Lhe seja tributada.  A humanidade adquiriu como cabeça e sacerdote o próprio Cristo, que só por seu nome dá toda glória a Deus.

   Aquele Menino na manjedoura, desde seu primeiro momento e ao longo de sua vida, em suas palavras, obras e sofrimentos, nada quis mais do que ser instrumento para servir, louvar e glorificar a Deus. Tanto mais nobre será o homem, quanto mais se considerar criatura de Deus e deste princípio tirar todas as conseqüências, conferindo à sua vida uma inteira ordenação. Daí nascerão as mais belas virtudes. Ora, vindo esta noite ao mundo, o Menino, desde seu abrir de olhos, sempre foi submisso a Deus, na completa justiça, eqüidade e perfeição.

   Até mesmo sem levar em conta o caráter expiatório de sua Encarnação, já é insuperável a glória que se elevou a Deus, partindo daquela gruta em Belém.

Paz na terra…

   Em harmonia com essa “Glória a Deus nas alturas”, o Menino veio trazer a paz aos homens. Sim, Ele nos reconciliou com Deus, ensinou-nos a bem conhecer e amar o Pai, assim como nossos irmãos, e, morrendo por todos e cada um, convidou-nos à santidade. O nosso fim último tornou-se claramente explícito, como também ficou indicado qual deve ser o nosso governo sobre nós mesmos e sobre as criaturas.

   Mais uma vez, aproximemo-nos do Presépio e adoremos o Menino, Príncipe da Paz, e ouçamos a voz de Isaías: “Como são belos sobre as montanhas os pés do mensageiro que anuncia a felicidade, que traz as boas novas e anuncia a libertação, que diz a Sião: Teu Deus reina!” (Is 52,7). Ele, o autor da graça santificante, sem a qual “não pode haver verdadeira paz, mas somente uma paz aparente” (6).

   Eis o convite essencial para o mundo de hoje tomado pelas guerras, catástrofes e ameaças: ajoelhe-se e, juntamente com Maria, José e os pastores, ouça a saudação de São Paulo: “O Senhor da paz, Ele próprio, vos dê a paz, sempre e em todos os lugares” (2 Ts 3, 16).² (Revista Arautos do Evangelho, Dez/2006, n. 60, p. 10 à 17)

 
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