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Voz dos Papas


“Recorda-te que és pó e em pó te hás de tornar!”
 
AUTOR: REDAÇÃO
 
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Aquele Deus que expulsou do Éden nossos progenitores, enviou seu próprio Filho à nossa Terra devastada pelo pecado, não O poupou, para que nós pudéssemos voltar à nossa pátria verdadeira.

Com este dia de penitência, de jejum e – porque não dizer, de pó e cinza – iniciamos um novo caminho rumo à Páscoa da Ressurreição: o caminho da Quaresma. Gostaria de meditar brevemente sobre o sinal litúrgico das cinzas, um sinal material, um elemento da natureza, que na Liturgia se torna um símbolo sagrado, muito importante neste dia que dá início ao itinerário quaresmal.

Antes de tudo, a cinza é um desses sinais materiais que introduzem o universo na Liturgia. Os principais são evidentemente os dos Sacramentos: a água, o óleo, o pão e o vinho, que se tornam verdadeira matéria sacramental, instrumento através do qual se comunica a graça de Cristo que chega até nós.

No caso das cinzas trata-se, ao contrário, de um sinal não sacramental, mas sempre relacionado com a oração e a santificação do povo cristão: está prevista, com efeito, antes da imposição individual sobre a cabeça, uma bênção das cinzas – que faremos daqui a pouco -, com duas fórmulas possíveis. Na primeira, elas são definidas como “símbolo austero”; na segunda, invoca-se diretamente sobre elas a bênção e faz-se referência ao texto do Livro do Gênesis, que também pode acompanhar o gesto da imposição: “Recorda- te que és pó e em pó te hás de tornar” (cf. Gn 3, 19).

Por causa do pecado de Adão é amaldiçoada o pó da Terra

Detenhamo-nos um momento sobre este versículo do Gênesis. Ele conclui o juízo pronunciado por Deus após o pecado original: Deus amaldiçoa a serpente, que fez pecar o homem e a mulher; em seguida, pune a mulher, anunciando- lhe as dores de parto e uma relação desequilibrada com o marido; por fim, castiga o homem, anuncia-lhe a fadiga do trabalho e amaldiçoa o solo. “Maldita seja a terra por tua causa!” (Gn 3, 17), por causa do teu pecado.

Portanto, o homem e a mulher não são diretamente amaldiçoados, como a serpente, mas, por causa do pecado de Adão, é amaldiçoada a terra, com a qual ele tinha sido moldado.

Releiamos a magnífica narração da criação do homem, tirado da terra: “O Senhor Deus formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou- lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente. Ora, o Senhor Deus tinha plantado um jardim no Éden, do lado do oriente, e colocou nele o homem que havia criado” (Gn 2, 7-8); assim narra o Livro do Gênesis.

Eis, pois, que o sinal das cinzas nos conduz ao grande afresco da criação, no qual se diz que o ser humano é uma singular unidade de matéria e de sopro divino, através da imagem do pó da terra plasmada por Deus e animada pelo seu sopro insuflado nas narinas da nova criatura.

Podemos observar como na narração do Gênesis o símbolo do pó sofre uma transformação negativa por causa do pecado. Enquanto antes da queda o solo é uma potencialidade totalmente boa, irrigado por uma nascente de água (cf. Gn 2, 6) e capaz, por obra de Deus, de germinar “toda sorte de árvores, de aspecto agradável, e de frutos bons para comer” (Gn 2, 9), depois da queda e da consequente maldição divina ele produzirá “espinhos e abrolhos” e só em troca de “trabalhos penosos” e do “suor do rosto” concederá ao homem os seus frutos (cf. Gn 3, 17-18).

O pó da terra já não recorda apenas o gesto criador de Deus, totalmente aberto à vida, mas torna-se sinal de um inexorável destino de morte: “Tu és pó e em pó te hás de tornar” (Gn 3, 19).

A maldição da terra tem uma função curativa para o homem

É evidente no texto bíblico que a terra participa no destino do homem. Diz a este propósito São João Crisóstomo, numa de suas homilias: “Veja como, após sua desobediência, tudo lhe é imposto de forma contrária ao seu estilo de vida precedente” (Homilias sobre o Gênesis 17, 9: PG 53, 146). Esta maldição do solo tem uma função curativa para o homem, que pelas “resistências” da terra deveria ser ajudado a manter- -se nos seus limites e reconhecer a própria natureza (cf. ibidem).

Assim se exprime, com uma bonita síntese, outro antigo comentário, que diz: “Adão foi criado puro por Deus para o seu serviço. Todas as criaturas lhe foram concedidas para servi-lo. Ele estava destinado a ser o senhor e rei de todas as criaturas. Mas quando o mal chegou e conversou com ele, ele o recebeu por meio de uma escuta externa. Depois penetrou no seu coração e apoderou- -se de todo o seu ser. Quando ele foi assim capturado, a criação, que o tinha assistido e servido, foi capturada com ele” (Pseudo-Macário, Homilias 11, 5; PG 34, 547).

Dizíamos há pouco, citando São João Crisóstomo, que a maldição do solo tem uma função “curativa”. Isto significa que a intenção de Deus, a qual é sempre benéfica, é mais profunda do que a maldição. Esta, com efeito, é devida não a Deus, mas ao pecado; mas Deus não pode deixar de infligi-la, porque respeita a liberdade do homem e suas consequências, mesmo as negativas. Portanto, no âmbito da punição, e também da maldição do solo, permanece uma intenção boa, proveniente de Deus. Quando diz ao homem: “Tu és pó e em pó te hás de tornar!”, junto com o justo castigo pretende Ele anunciar também uma via de salvação, que passará precisamente através da terra, através desse “pó”, dessa “carne” que será assumida pelo Verbo.

É nesta perspectiva salvífica que a palavra do Gênesis é retomada pela Liturgia da Quarta-Feira de Cinzas: como convite à penitência, à humildade, a ter presente a própria condição mortal; contudo, não para acabar no desespero, mas sim para acolher, precisamente nesta nossa mortalidade, a impensável proximidade de Deus que, para além da morte, abre a passagem para a ressurreição, o Paraíso finalmente reencontrado.

Orienta-nos nesse sentido um texto de Orígenes, o qual diz: “Aquilo que no início era carne, da terra, um homem de pó (cf. I Cor 15, 47), e foi dissolvido através da morte e de novo tornado pó e cinza – realmente está escrito: “és pó e em pó te hás de tornar” – é feito ressuscitar da terra. Em seguida, segundo os merecimentos da alma que habita o corpo, a pessoa caminha rumo à glória de um corpo espiritual” (Tratado dos Princípios 3, 6, 5: Sch., 268, 248).

O novo Adão tornou-Se “espírito vivificante”

Os “merecimentos da alma”, dos quais fala Orígenes, são necessários; mas fundamentais são os merecimentos de Cristo, a eficácia do seu Mistério pascal. São Paulo ofereceu–nos dele uma formulação sintética na Segunda Carta aos Coríntios, segunda Leitura de hoje: “Aquele que não conheceu o pecado, Deus O fez pecado por nós, para que n’Ele nós nos tornássemos justiça de Deus” (II Cor 5, 21).

A possibilidade do perdão divino para nós depende essencialmente do fato de que o próprio Deus, na pessoa do seu Filho, quis partilhar a nossa condição, mas não a corrupção do pecado. E o Pai O ressuscitou com o poder do seu Espírito Santo, e Jesus, o novo Adão, tornou- Se, como diz São Paulo, “espírito vivificante” (I Cor 15, 45), primícias da nova criação.

O mesmo Espírito que ressuscitou Jesus dos mortos pode transformar os nossos corações de pedra em corações de carne (cf. Ez 36, 26). Invocamo- Lo há pouco com o Salmo Miserere: “Criai em mim, ó Deus, um coração puro, / renovai em mim um espírito firme. / Não me afasteis de vossa presença / e não me priveis de vosso santo espírito” (Sl 50, 12-13).

Aquele Deus que expulsou do Éden nossos progenitores, enviou seu próprio Filho à nossa terra devastada pelo pecado, não O poupou, para que nós, filhos pródigos, pudéssemos voltar, arrependidos e remidos por sua misericórdia, à nossa pátria verdadeira. Assim seja, para cada um de nós, para todos os crentes, para cada homem que humildemente se reconhece necessitado de salvação. Amém.

Todos os direitos sobre os documentos pontifícios estão reservados à Libreria Editrice Vaticana. A íntegra dos documentos acima pode ser encontrada em www.vatican.va

Homilia de Bento XVI na Missa da Quarta-Feira de Cinzas, 22/2/2012 – Tradução: Arautos do Evangelho – Revista Arautos do Evangelho, Abril/2012, n. 124, p. 07 – 09.
 
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