Herança espiritual de Bento XVI

bento xviBento XVI, que nos deixou no último dia do ano de 2022 partindo para a eternidade e para a contemplação de Deus, foi um exímio teólogo e produtor intelectual. Nos idos anos da década de 80, ele esteve à frente de uma importante secretaria vaticana, a Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, antigo Santo Ofício. Já ali o então Cardeal Joseph Ratzinger formula e professa seu pensamento sobre a condição do sacerdócio na época posterior ao concílio Vaticano II. Este pensamento acompanha a jornada de Bento XVI até mesmo depois de sua elevação ao Papado, consignado em documentos e cartas abertas.

Com este artigo, queremos honrar o legado espiritual deixado por Bento XVI, em um ponto que deve ser lembrado especialmente hoje: antes de tudo, o sacerdote é um homem de Deus. É o próprio Bento XVI, enquanto cardeal, que afirma: “a crise na Igreja é a crise no sacerdócio”. 

Que estes pensamentos possam servir de base para ainda mais mudanças e conversões.

Em 1985, uma entrevista

Joseph Ratzinger, futuro Bento XVI, é nomeado Cardeal por Sua Santidade São João Paulo II, em 1981. A Santa Igreja havia passado pelo Concílio Vaticano II, e, como afirma o próprio Cardeal: “era preciso confrontar-se com a realidade do Vaticano II, com a letra e o espírito autênticos do Concílio autêntico, e não com um imaginário Vaticano III, sem, pois, fugas solitárias para frente”.

Por ocasião de muitas interpretações equivocadas, a debandada do sacerdócio era grande. E, além disso, a transmissão da verdadeira fé estava conturbada por experiências impróprias. Alguns sacerdotes acabavam também por se intrometer em uma ação por demais política, contra as indicações do próprio João Paulo II, lembradas em Puebla e outros tantos discursos.

Assim, em 1985, o Cardeal Ratzinger aceita receber o jornalista Messori, que faz uma completa entrevista acerca de pontos centrais da crença cristã. O título do livro publicado como fruto desta entrevista é Rapporto sulla fede, o que descreve bem o intuito do entrevistador. O que teria o prefeito da Congregação para Doutrina da Fé, Cardeal Joseph Ratzinger, a dizer sobre as grandes questões da Igreja naquela época?

No Brasil, a tradução foi lançada com o título “A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga”. Este livro foi usado como base para o artigo em questão, sobretudo o capítulo onde trata sobre a situação do sacerdócio.

Perda de sentido para os sacerdotes

O Cardeal Ratzinger, no ano de 1985, nota que a crise da Igreja é, sobretudo, uma crise no sacerdócio, uma crise nas ordens religiosas. Para ele, o sacerdote perdeu o rumo ao se esvaziar de seu sentido único: o de ministro de Deus.

Pudera, continua o cardeal, manter este sentido espiritual num mundo absolutamente materializado? É difícil, já que a compreensão desta dimensão do sacerdote é nula da parte do mundo. O que sobrou então para catalogar o sacerdote? Aquele que exerce um “serviço de coordenação de consenso”, esvaziado da autoridade que Cristo lhe deu.

Isso se percebe, sobretudo, na condução do sacramento da confissão. O Cardeal Ratzinger afirma que “alguns sacerdotes tendem a transformá-la quase que unicamente em uma forma de conversa, em uma espécie de autoanálise terapêutica entre duas pessoas do mesmo nível”. Para ele, era preciso que o homem se abstraísse de sua pequenez e aceitasse a grandeza e a autoridade de Cristo, já que o representa. 

Sacerdócio: função sacral vs função social

Um outro ponto que o cardeal traz à entrevista é o fato de instrumentalizar o sacerdote, já naquela época, como um agitador social. Para ele, há “uma tentação de fugir do mistério da estrutura hierárquica fundada sobre Cristo para o plausível da organização humana”.

O fardo do sagrado, para o sacerdócio, não é abraçado com amor, mas há sim um desejo de livrar-se dele. “O padre – isto é, aquele pelo qual passa a força do Senhor – sempre foi tentado a se habituar à grandeza, a fazer dela uma rotina. Hoje, a grandeza do Sagrado, ele a poderia perceber como um peso, desejar, talvez inconscientemente, livrar-se dela, rebaixando o Ministério à sua estatura humana”.

Mudança de opinião?

Estes são alguns elementos da entrevista do Cardeal Ratzinger em 1985. Tais reflexões continuaram presentes em sua vida, e mesmo quando ascendeu ao trono de Pedro, a condição do sacerdócio ainda era uma questão importante para a Santa Igreja. Podemos perceber que ele manteve essa convicção por alguns de seus pronunciamentos, em particular uma audiência geral que concedeu no dia 5 de maio de 2010. Nela, Bento XVI fala sobre o “ofício de santificar” do sacerdote.

bento xvi“Nas últimas décadas, houve tendências orientadas para fazer prevalecer, na identidade e na missão do sacerdote, a dimensão do anúncio, desligando-a daquela da santificação; afirmou-se muitas vezes que seria necessário superar uma pastoral meramente sacramental”.

Ou seja, não podemos olvidar a ação sacramental que um sacerdote é chamado a realizar. Onde quer que um padre esteja, ele será sempre um sinal da salvação que Cristo nos trouxe, um lembrete de que seremos julgados e de que temos uma vida eterna. E o ministro de Deus precisa estar sempre consciente desta sua vocação.

Os tempos mudam, mas Cristo permanece o mesmo

Bento XVI também nos lembra que os tempos podem ter mudado, mas o sacerdócio continua como um marco, uma lembrança de que Cristo é eterno: “Sobretudo neste nosso tempo em que, por um lado, parece que a fé se vai debilitando e, por outro, sobressaem uma profunda necessidade e uma difundida busca de espiritualidade, é necessário que cada sacerdote se recorde que na sua missão o anúncio missionário, o culto e os sacramentos nunca estão separados”.

Além disso, o papa faz uma conclamação, um pedido para o que já apontava como esquecido enquanto cardeal: “Gostaria de renovar o convite feito recentemente [aos sacerdotes]: voltar ao confessionário como lugar onde se celebra o Sacramento da Reconciliação, como lugar onde se habita com mais frequência, para que o fiel possa encontrar misericórdia, sentir-se amado e compreendido por Deus e experimentar a presença da Misericórdia Divina ao lado da Presença real na Eucaristia”.

Uma palavra sobre o bispado

Para Bento XVI, a crise que atingiu a Igreja no momento pós-Concílio Vaticano II também se estendeu aos Bispos. Em sua entrevista de 1985, ele pondera sobre a responsabilidade da autoridade diocesana. Como apogeu do sacramento da Ordem, o Bispo tem total e completa autonomia, desde que não fuja do compromisso com a verdade, de ensinar e ministrar os sacramentos.

Uma de suas preocupações, por isso, era de que o Bispo fosse absorvido pelas conferências episcopais. Segundo ele, era importante bater nesta tecla: “Porque se trata de salvaguardar a natureza mesma da Igreja Católica, que é baseada numa estrutura episcopal, não em uma espécie de federação de igrejas nacionais”.

É necessário que o Bispo se revista de coragem para manifestar o seu ministério quando não estiver de acordo com alguma medida a ser tomada no âmbito da conferência. Em 1985, o cardeal Ratzinger se expressava relembrando uma insinuação de Cristo no Evangelho: é preciso ser “aquele sal e aquele fermento hoje mais do nunca indispensável para um cristão, sobretudo se Bispo, investido, portanto, de responsabilidades precisas para com os fiéis, diante da gravidade da crise”.

Uma mensagem de esperança de Bento XVI

Se em 1985 o então Cardeal Ratzinger mostrava um diagnóstico da situação pós conciliar na Igreja, já como sucessor de Pedro, ele trouxe o remédio salutar que tanto havia recomendado. Escolheu o nome “Bento” em honra ao santo fundador de Núrsia, que repetia constantemente: “nada é preferível ao amor de Cristo”.

bento xvi e monsenhor João Clá

Em suas obras e encíclicas percebemos um movimento de retorno: Cristo deve ser o centro de toda atividade humana, especialmente dos sacerdotes. Ao reconhecer novas obras, como afirmou numa carta aberta aos sacerdotes por ocasião do ano sacerdotal (2009-2010) “aproveito para dirigir um convite particular para saberem acolher a nova primavera que, em nossos dias, o Espírito suscita na Igreja, através nomeadamente dos Movimentos Eclesiais e das novas Comunidades”, o papa Bento XVI queria lembrar quão importante é saber ouvir o “sussurrar Divino”.

Os Arautos do Evangelho têm uma imensa gratidão a este pastor, amigo e protetor, em particular por conceder o selo pontifício a duas Sociedades de Vida Apostólica:  Virgo Flos Carmeli e Regina Virginum no ano de 2009. Foi um ato de fé deste homem que via com bons olhos o desenvolvimento de um novo carisma dentro da Igreja Católica alicerçado na doutrina imutável e infalível.

Agora é a hora de rezarmos por este que nos fez tanto bem. Afinal, o papa Bento XVI encontrou aquele sobre quem tanto pregou e admoestou, centro de toda vida sacerdotal.

Documentos consultados.
A fé em crise? O cardeal Ratzinger se interroga. RATZINGER e MESSORI. Trad. de Padre Fernando José Guimarães, CSSR. São Paulo: EPU, 1985.
Sobre o Ofício de Santificar do Sacerdote. BENTO XVI.  Audiência Geral, 05 de maio de 2010.
Carta aos sacerdotes. BENTO XVI. Vaticano, 16 de Junho de 2009.