O Imaculado Coração de Maria
Quando, em 1942, se tornou conhecida a revelação do Imaculado Coração de Maria e a devoção dos primeiros sábados pedidas por Nossa Senhora a Lúcia em Pontevedra (13/06/1925 e 15/02/1926) e em Tuy (13/06/1929), as Religiosas do Sagrado Coração de Maria (R.S.C. de Maria) quiseram editar uma estampa correspondente à aparição. Recorrendo às Irmãs Doroteias, e conseguindo de Lúcia informações importantes, fizeram uma montagem fotográfica a partir das aparições e um esboço definitivo, por ela corrigido e que foi aprovado em dezembro de 1943 pelo Cardeal Patriarca e pelo Bispo de Leiria. Deste trabalho resultaria também a Imagem Peregrina, benzida em 13 de maio de 1947.
Tendo Madre Chantal, Superiora das R.S.C.M., chamado a Lisboa, em abril de 1944, o escultor José Ferreira Thedim, com o objetivo de colocar em cada um dos seus colégios uma estátua do Coração de Maria[1], tudo parecia indicar que seria finalmente cumprido o desejo das Irmãs, felizes por verem ligados à mensagem de Fátima o nome e a ação do seu Instituto[2].
Não podendo José Thedim aceitar a encomenda da escultura pretendida, obrigaram-se as Irmãs do S.C.R. de Maria a procurar outro artista, que lhes forneceu uma imagem diferente, que passou a presidir ao seu Colégio de Lisboa.
“Perdida” e encontrada
Antunes Borges, antigo Reitor do Santuário de Fátima, num estudo sobre este tema, afirma: “Longa foi a expectativa, não chegando sequer a aparecer aquela primeira imagem que devia servir de modelo para todas as outras”.
Mas essa imagem, afinal, não desapareceu. Foi integralmente executada, exibindo todos os pormenores sugeridos pela Irmã Lúcia e aprovados em dezembro de 1943. Nós a identificamos em 2004, na Igreja Matriz de Ovar, com a data “1946” e o nome “Casa França”, do Porto, onde foi adquirida, em 1946, por uma família ilustre e devota de Ovar, como contributo para as comemorações do Tricentenário da Padroeira nesta vila.
Por despacho de 8/6/1946, o Bispo do Porto, D. Agostinho de Jesus e Sousa, permitiu que “a imagem do Coração de Maria da Igreja Paroquial de Ovar fosse substituída por uma outra maior e melhor, que concentre as duas devoções na mesma imagem: Senhora de Fátima e Imaculado Coração de Maria – segundo revelação de Fátima”.
A primeira em Portugal
O Padre Ribeiro de Araújo esclarece que essa imagem, “executada segundo indicações da vidente de Fátima, Lúcia”, foi conduzida em procissão da Capela de Santo António para a Igreja e altar do Coração de Maria, e que “ao passar diante dos Paços do Concelho procedeu-se à coroação da imagem, no meio de vibrantes cantos religiosos entoados por uma multidão de fiéis”[3].
O “João Semana” de 25/07/1946 esclarece, referindo-se à imagem, ser ela “a primeira que em Portugal de esculturou segundo as indicações da vidente de Fátima”.
Tudo permaneceu obscuro, a ponto de nem o Reitor do Santuário, Antunes Borges, vinte anos depois lhe descobrir o rasto.
Qual o verdadeiro autor?
Por nós, chegamos a aventar a hipótese de que Thedim a tenha iniciado e, depois, porque ocupado com outras tarefas, a tenha cedido à Casa França. Mera hipótese. Até porque Albano França, um artista consagrado que a assinou (embora com o nome da firma), e tendo produzido outra imagem semelhante, pouco posterior (Igreja da Sr.ª da Conceição, Porto), poderá tê-la criado, servindo-se dos esboços de que Thedim também se serviu para outros trabalhos.
Entendemos agora, após alguma pesquisa e ponderação sobre datas e compromissos de José Thedim, que após a sua ida a Lisboa, o mestre se terá descomprometido com as R.S.C. de Maria em razão dos seus contatos profissionais com os responsáveis de Fátima, já envolvidos nos preparativos para a celebração, em 1946, do Tricentenário da Padroeira de Portugal e na criação de novas imagens da Senhora de Fátima, mais lineares nas suas vestes, de acordo com a vontade da Irmã Lúcia e como já é patente no esboço aprovado pelo Cardeal Patriarca e pelo Bispo de Leiria, imagens essas que pudessem substituir a da Capelinha em previsíveis saídas devocionais, tal como acontecera na memorável visita à capital portuguesa de 9 a 12 de abril de 1942.
Uma imagem para Lúcia
Liberto dos trabalhos que o ocuparam e querendo prendar a Irmã Lúcia na sua entrada para o Carmelo, pois sabia da vontade da vidente de ser criada uma imagem que “representasse a posição tomada por Nossa Senhora quando revelou aos Pastorinhos o seu Coração Imaculado” –, até teria preferido que fosse essa a imagem a peregrinar pela Europa em 1947[4] –, José Ferreira Thedim esculpiu, em 1948, uma imagem do Imaculado Coração de Maria, e, por esta não ter agradado totalmente à Irmã, entregou-lhe uma segunda, esta do seu total agrado, em 25/03/1949 (três anos depois da de Ovar)[5].
A propósito desta imagem, escreveu Lúcia a uma amiga (D. Maria Teresa Pereira da Cunha), em 11 de agosto de 1949:
“A imagem do Coração Imaculado de Maria não consegui que se fizesse senão após a minha vinda para o Carmelo. Todas as dificuldades desapareceram como por encanto e apenas após o tempo para o Escultor a fazer”[6].
O resto da História
Vinda de Espanha, Lúcia regressou ao Porto em 16 de maio de 1946, desconhecendo que ali mesmo, na Casa França, da Rua da Fábrica, se ultimava a belíssima imagem que ela imaginou vir a ser o modelo de todas as outras, e que, dois meses depois, partiria para Ovar, onde foi acolhida com entusiasmo, enquanto, por desconhecimento dos factos, Lúcia e a grande maioria dos devotos de Fátima, a julgaram “desaparecida”.
Marco Daniel Duarte, na sua dissertação de doutoramento “Fátima e a criação artística (1917-2007): o Santuário e a Iconografia – a arte como cenário e como protagonista de uma específica mensagem”[7], seguindo a opinião então vigente, aponta ainda a imagem do Carmelo como a primeira (de uma segunda fase iconográfica) do Imaculado Coração de Maria, referindo, no entanto, a nossa investigação de 2005:
“Vejam-se, não obstante o que dizemos, as investigações de Manuel Pires Bastos publicadas no jornal ‘João Semana’, no qual se afirma, com argumentação muito plausível, que ‘a primeira imagem [do Imaculado Coração de Maria] está em Ovar”.
Notas:
[1] Irmã Maria do Carmo, “O Instituto do Sagrado Coração de Maria e o Imaculado Coração de Maria”.
[2] Id.
[3] José Ribeiro de Araújo, “Poalhas da história da freguesia e Igreja de Ovar”.
[4] Carmelo de Coimbra, “Um caminho sob o olhar de Maria”, pág. 318.
[5] A primeira seguiu para o Carmelo de Braga, onde se encontra.
[6] Carmelo de Coimbra, “Um caminho sob o olhar de Maria”, pág. 352.
[7] Marco Daniel Duarte, “Fátima e a criação artística (1917-2007): o Santuário e a Iconografia – a arte como cenário e como protagonista de uma específica mensagem”, Coimbra, 2013.
Artigo publicado no jornal JOÃO SEMANA (15 de maio de 2016) – texto de Manuel Pires Bastos