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Catecismo


Como conciliar vida espiritual e vida ativa?
 
AUTOR: KAROLINNE DE MORAES KAUFMANN
 
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Nos tempos hodiernos, em que a rotina do homem se transformou numa constante corrida, uma questão preocupa a quem deseja progredir na virtude: como conciliar a vida interior com os trabalhos do dia a dia?

Fácil é observar o quanto os afazeres cotidianos, como o sustento da casa, a educação dos filhos, os estudos, o trabalho, e até o desejo de desfrutar ao máximo do escasso tempo de descanso e de lazer, transformam a rotina do homem moderno numa verdadeira maratona. Muitas vezes, imersos em atividades tão absorventes, acabamos por olvidar o principal: a vida interior, a meditação, o relacionamento com Deus, com nossos Anjos da Guarda, com o mundo sobrenatural.

Não importa o estado de vida a que fomos chamados. Tanto para os religiosos quanto para os leigos, o não se esquecer das coisas do Alto será sempre um ponto a vigiar, sobretudo nestes tempos.

“Maria escolheu a melhor parte”

A contemplação, de si, vale mais do que a ação. Bem o sublinha Nosso Senhor no Evangelho, quando Santa Marta Lhe pede para mandar sua irmã ajudá-la, visto que, enquanto ela se afanava nos labores domésticos, Santa Maria Madalena permanecia imóvel aos pés do sublime Hóspede.

Recebendo o Redentor em sua casa, as duas tinham o dever de procurar atendê-Lo da melhor forma possível e, sendo Marta a irmã mais velha e possuidora de esmerada educação, empenhou-se pessoalmente em preparar um banquete à altura do ilustre Convidado.

Cristo na casa de Marta e Maria, por Giovanni da Milano – Basílica de Santa Cruz, Florença (Itália)

Comentando esta passagem do Evangelho, explica Mons. João Scognamiglio Clá Dias, EP: “Segundo as boas normas vigentes na época, uma visita de categoria deveria ser servida pelos próprios anfitriões. […] Maria, entretanto, tomada de alegria pela presença do Divino Mestre, havia esquecido por completo suas obrigações de anfitriã, deixando todo o serviço a cargo da irmã”.1

Ora, pedindo a Nosso Senhor que Maria saísse do seu lado para ir ajudá-la, Marta devotava mais atenção às providências práticas que à Pessoa do Redentor. Faltava assim, provavelmente de modo inconsciente, com o Primeiro Mandamento do Decálogo, conforme aponta mais adiante o próprio Mons. João:

“Empenhada em servir Nosso Senhor da melhor maneira possível, talvez Marta tencionasse fazê-lo também para manter o grande prestígio da casa. Por isso se perturbava, tomada por preocupações que não condiziam inteiramente com o amor a Deus: estava em questão o nome da família. E quando Deus não está no centro das nossas considerações, a agitação se estabelece com facilidade”.2

Em resposta ao pedido da irmã mais velha, Jesus revelou um dos mais belos e profundos princípios que a humanidade ouviu: “Marta, Marta, andas muito inquieta e te preocupas com muitas coisas; no entanto, uma só coisa é necessária; Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc 10, 41-42).

Ao recriminá-la por sua agitação, o Divino Mestre convida Marta a abandonar sua postura pragmática e naturalista, na qual Deus não estava no centro.

Ação e contemplação não são realidades excludentes

Em que consiste essa “melhor parte” que Maria soube escolher?

A resposta parece não apresentar nenhuma dúvida, pelo menos no que há de essencial: estar o mais perto possível de Jesus em toda e qualquer situação. Isso não justifica, porém, que abandonemos as nossas obrigações.

Ação e contemplação não são realidades excludentes. Sendo a principal anfitriã, competia a Marta cuidar com esmero das providências práticas, mas precisava fazê-lo com os olhos inteiramente voltados para Jesus. E se Maria houvesse agido impelida por um amor perfeito, teria “se submetido às determinações de sua irmã mais velha, cumprindo as obrigações que lhe cabiam sem perder o enlevo, mantendo o coração todo posto no Senhor”.3

Nesse sentido, Dr. Plinio Corrêa de Oliveira elucida que “o homem deve ser, primeiro, de vida interior, e depois as outras coisas”. E “quando ele escolhe ser, antes de tudo, homem de vida interior, põe a mais importante das condições para ser, nos outros campos, o que deveria”.4

Dessa atitude surge a perfeita união entre a ação e a contemplação. Se soubermos reconhecer que aquela promana necessariamente desta, e em função dela se ordena, nossas tarefas concretas passarão a ter uma relação de dependência direta com as práticas de piedade.

A alma, por ser imortal, merece muito mais nossa atenção do que as coisas materiais e, portanto, passageiras.

“Buscai em primeiro lugar o Reino de Deus”

Conhecedor das debilidades e desordens da natureza humana marcada pelo pecado original, Nosso Senhor ensinou-nos buscar em primeiro lugar o Reino de Deus e sua justiça: todo o resto nos será dado por acréscimo (cf. Mt 6, 33).

Isso significa levantar em nossa alma um trono para o Criador e submeter-nos inteiramente ao seu domínio soberano. Além de ser um dever de todo cristão, tal conduta nos atrairá inúmeras graças e dons, pois “o Senhor Se ocupará tanto mais dos nossos interesses quanto mais nós nos preocuparmos com os d’Ele”.5

“Conservemos todas as nossas faculdades sob o cetro misericordioso do Altíssimo. Lembre-se a nossa inteligência da sua presença constante, conforme-se em tudo nossa vontade com sua adorável vontade, voe nosso coração para Ele com frequência, por meio de atos de caridade ardente e sincera. […] Então teremos seguido à risca o conselho do Mestre: teremos procurado o Reino de Deus”.6

É esse o conselho que nos dá em seu conhecido O livro da confiança um atilado autor espiritual: o Pe. Thomas de Saint-Laurent. Agindo assim, realizaremos nossos afazeres do modo mais perfeito, sem deixar de ter, ao mesmo tempo, a mente elevada ao sobrenatural.

Eis, pois, mais um motivo para vivermos constantemente na presença de Deus: a certeza de que todos os nossos atos, até os mais simples, podem se transformar numa prece. Basta para isso que, em vez de nos deixarmos tomar por eles, os façamos com intenção de dar glória a Deus.

Ressurreição de Lázaro, por Giovanni da Milano – Basílica de Santa Cruz,
Florença (Itália)

A vida interior aumenta a capacidade de conhecer e amar

Ao tratar em uma de suas conferências sobre a vida interior, Dr. Plinio realçou, ademais, o quanto a capacidade de conhecer e de amar daquele que se abandona aos desígnios divinos acaba sendo notavelmente ampliada pelo Criador, pois Ele Se compraz com as almas humildes, que reconhecem sua insuficiência.

Afirmava Dr. Plinio que “a vida interior verdadeira, plena, faz o homem executar a vontade de Deus com toda a perfeição e dá à alma recursos que são, em parte, a plenitude de seus recursos naturais e, em parte, carismas e dons que o fazem centuplicar as suas possibilidades”.7

Antes de ser admoestada por Nosso Senhor, Santa Marta possuía um admirável grau de virtude. Amava a Jesus, seguia-O como discípula e em tudo procurava servi-Lo. Mas, a partir daquele instante, sua vida espiritual se robusteceu e sublimou-se. Assim o prova o diálogo transbordante de espírito sobrenatural que manteve com o Mestre nos momentos prévios à ressurreição de Lázaro, culminado com esta sólida profissão de fé: “Sim, Senhor. Eu creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, Aquele que devia vir ao mundo” (Jo 11, 27).

Além do mais, cremos ser lícito conjecturar que, se antes do episódio narrado por São Lucas ela cuidava com eficácia dos abundantes bens que a família possuía, a partir daquela ocasião se transformou numa administradora exímia da casa e do seu patrimônio.

Marta cresceu em amor após a correção

Em seus comentários ao Evangelho, Mons. João faz uma arguta análise que reforça a primazia da contemplação: “É curioso notar que, depois da Ressurreição, quando Nosso Senhor Se dirige a Maria Madalena, Ele não repete seu nome. Diz apenas: ‘Maria’. E ela imediatamente exclama: ‘Raboni!’ (cf. Jo 20, 16). Bastou-lhe ouvir uma só vez o seu nome para entrar em inteira consonância com o Mestre. Em Betânia, entretanto, Ele sentiu necessidade de repetir: ‘Marta! Marta!’”8

Ora, “a vida dos homens tem momentos de ação e de contemplação e, tanto em uns quanto nos outros, é preciso ser ‘perfeito como o Pai Celeste é perfeito’ (Mt 5, 48)”.9 Portanto, seja qual for o gênero de vida que levemos, não nos esqueçamos de imitar o exemplo dessas santas irmãs. Realizemos as atividades cotidianas com o amor de Santa Maria Madalena, sem deixar de cumprir nossas obrigações com total precisão, como Santa Marta depois do episódio narrado por São Lucas.

A vida ativa consiste, para quem deseja trilhar as vias da santidade, em servir a Nosso Senhor naquilo que se faz diariamente, devotando a Ele o estado de alma vigoroso, combativo e contemplativo de quem almeja os mais altos píncaros aos quais foi chamado enquanto coerdeiro da graça.

Peçamos, para isso, a intercessão todo-poderosa da Mãe de Deus. Ninguém nos ensinará melhor do que Ela a desempenhar com perfeição os nossos labores cotidianos. (Revista Arautos do Evangelho, Junho/2019, n. 210, p. 37-39)

1 CLÁ DIAS, EP, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos. Città del Vaticano-São Paulo: LEV; Lumen Sapientiæ, 2012, v.VI, p.229-230.
2 Idem, p.232.
3 Idem, p.236.
4 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Refulgente destruidor das heresias. In: Dr. Plinio. São Paulo. Ano XXI. N.248 (Nov., 2018); p.21.
5 SAINT-LAURENT, Thomas de. O livro da confiança. São Paulo: Retornarei, 2019, p.48.
6 Idem, ibidem.
7 CORRÊA DE OLIVEIRA, op. cit., p.21.
8 CLÁ DIAS, op. cit., p.231-232.
9 Idem, p.238.

 
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