Jesus perante Anás, pelo Mestre de Rubiò Museu Episcopal de Vic (Espanha) |
Do coração de Plinio Corrêa de Oliveira brotou em certa ocasião este brado de dor e inconformidade: “Conspiraram contra Vós, Senhor, Jesus Cristo. […] Vossos inimigos Vos odeiam tanto, que já não suportam vossa presença entre os viventes, e querem a vossa morte. Querem que desapareçais para sempre, que emudeça a linguagem de vossos exemplos e a sabedoria de vossos ensinamentos. Querem-Vos morto, aniquilado, destruído. Só assim terão aplacado o turbilhão de ódio que em seus corações se levanta”.1
Alma apaixonada por Deus, que viveu, lutou e se ofereceu em holocausto pela Igreja, perguntava-se ele, ao meditar sobre a Paixão, como é possível descarregar tanto ódio contra o Justo por excelência, que passou pelo mundo fazendo o bem, curou milhares de enfermos, espargiu por toda parte bondade, amor e misericórdia. E chegava à conclusão de não terem sido as causas dos acontecimentos narrados no Evangelho meramente políticas, sociais ou psicológicas.
O processo que resultou na prisão, Paixão e Morte do Cordeiro Imolado deita suas raízes num abismo tenebroso e insondável, do qual partiu o grito ecoado pelos deicidas: “Armemos ciladas ao justo, porque sua presença nos incomoda […]. Tornou-se uma censura aos nossos pensamentos e só o vê-lo nos é insuportável […]. Vamos pô-lo à prova com ofensas e torturas, […] vamos condená-lo à morte vergonhosa” (Sb 2, 12.14.19-20).
Condenado à morte sem ter sido sequer ouvido
Os versículos do Livro da Sabedoria acima citados descrevem profeticamente o que aconteceria com Jesus. Em certo momento, sua simples presença tornara-se insuportável aos seus inimigos, e estes tomaram então a decisão de matá-Lo (cf. Jo 11, 53).
Qual foi, por assim dizer, a gota d’água que fez transbordar o cálice da inconformidade? Uma increpação, um desafio? Não. Foi um ato de bondade, uma manifestação de amor: a ressurreição de Lázaro. “Lázaro, vem para fora!” A esta curta ordem, aquele homem sepultado havia quatro dias subiu as escadas do túmulo, de pés e mãos ligados por faixas, à vista de uma pequena multidão desconcertada (cf. Jo 11, 43-44).
Avisados do ocorrido, os pontífices e fariseus convocaram o conselho e lhe submeteram sem rodeios a questão: “Que faremos? Este Homem multiplica os milagres. Se O deixarmos agir assim, todos crerão n’Ele…” (Jo 11, 47-48). Instigados por Caifás, sumo sacerdote em função naquele ano, os membros da grande assembleia decidiram matar o Homem-Deus. Assim, sem ter sido sequer citado e interrogado, Jesus estava condenado inapelavelmente à morte pelo “crime” de “multiplicar os milagres”.
Não tendo ainda, entretanto, meios de passar da resolução à execução, limitaram-se os pontífices e fariseus a tomar algumas providências para localizá-Lo e prendê-Lo.
Estavam à espera de uma oportunidade favorável para lançar mão sobre Jesus sem provocar uma comoção popular, quando um visitante de todo em todo inesperado veio oferecer-lhes a realização imediata de seus negros desígnios:
— Que me dareis para que eu vo-Lo entregue? – perguntou-lhes o Iscariotes.
Combinaram o preço de trinta moedas de prata, o valor de um escravo, e o traidor conduziu os esbirros do Sinédrio ao Horto das Oliveiras, onde lhes indicou com um beijo o Homem que eles procuravam. Prenderam então Jesus, ataram-Lhe as mãos e O arrastaram à casa de Anás, sogro de Caifás, e por fim à deste último.
Prisão de Jesus no Horto, pelo Mestre de Rubiò Museu Episcopal de Vic (Espanha) |
Transgrediram a Lei de Deus e as leis humanas
A transgressão da Lei de Deus costuma ser acompanhada da violação das leis humanas, e foi isso o que aconteceu com Jesus. Sob o ponto de vista jurídico, sua prisão foi propriamente um sequestro, pois a jurisdição policial do Sinédrio se restringia à área do Templo. Era a primeira de uma série de graves irregularidades processuais.
O Sanedrim ou Sinédrio era o tribunal supremo dos judeus. Compunha-se de setenta e um membros e estava dividido em três câmaras: a dos sacerdotes, a dos escribas e a dos anciãos. Muito se tem escrito sobre a abominável conduta deste tribunal até o momento em que Pilatos, “o juiz que cometeu o crime profissional mais monstruoso de toda a História”,2 condenou à crucifixão o Inocente por excelência.
Entre várias obras dedicadas a este tema, cabe destacar o preciso e interessante estudo feito por dois sacerdotes franceses, intitulado Valor da assembleia que pronunciou a sentença de morte contra Jesus Cristo. 3
Seus autores eram irmãos gêmeos pertencentes a uma rica e aristocrática família israelita de Lyon, França. Tocados pela graça ao assistir a algumas cerimônias católicas, iniciaram ainda na infância o caminho da conversão, que culminou aos dezoito anos, com a recepção do Santo Batismo. Favorecidos por seu conhecimento da língua hebraica, os irmãos Lémann pesquisaram em boas fontes a legislação penal em vigor em Israel, na época da condenação de Jesus à morte. Puderam, assim, elaborar uma lista de vinte e sete irregularidades cometidas ao longo dos vários procedimentos jurídicos, cada uma delas suficiente para anular todo o processo.
Mencionaremos a seguir algumas das mais interessantes.
Dar ares de formalidade a uma sentença já emitida
Após prenderem Jesus no Horto das Oliveiras, os esbirros O conduziram à casa de Caifás, onde já estava reunido o Sinédrio para julgá-Lo (cf. Mt 26, 57). Grave transgressão à lei, pois esta proibia tais julgamentos à noite, sob pena de nulidade. Ademais, a reunião se realizou no primeiro dia dos ázimos, véspera da grande festa da Páscoa; ora, o Siné- drio não podia julgar na véspera do sábado nem na de um dia de festa.
O mesmo Caifás que, por ocasião da ressurreição de Lázaro, se constituiu em acusador de Jesus, agora O interroga como juiz; mais ainda, como presidente do tribunal! Uma monstruosidade jurídica, inadmissível em qualquer país civilizado.
Estando Jesus já condenado de antemão, o verdadeiro objetivo dessa reunião era dar ares de formalidade legal à sentença proferida dias antes. Para isso, o Sinédrio ouviu depoimento de numerosas testemunhas falsas, sem análise prévia de sua qualificação e sem sequer exigir-lhes juramento. Elas, entretanto, não concordavam entre si, e Caifás foi obrigado a procurar uma saída para o impasse, interpelando o Divino Mestre: “Eu Te conjuro, pelo Deus vivo, dize-nos se Tu és o Cristo, o Filho de Deus” (Mt 26, 63).
Pergunta capciosa: se respondesse negativamente, seria condenado como impostor; se afirmativamente, como blasfemo. Ademais, era vedado exigir do acusado um juramento, pois isso implicava em impor-lhe um dilema: cometer perjúrio ou incriminar-se a si mesmo. O iníquo tribunal não exigiu das testemunhas o juramento que tinha obrigação de exigir, e exigiu do acusado o que lhe era proibido fazer.
E Jesus deu uma resposta sublime: “Tu o disseste. Além disso, Eu vos digo que de agora em diante vereis o Filho do Homem sentado à direita do Todo-Poderoso, vindo nas nuvens do céu” (Mt 26, 64). Então o sumo sacerdote rasgou as vestes, dizendo: “Ouvistes a blasfêmia! Que vos parece?” E os membros do Sinédrio responderam: “Merece a morte!” (cf. Mt 26, 65-66).
Jesus diante de Pilatos, por Jaime Ferrer Museu Episcopal de Vic (Espanha) |
Buscando desesperadamente a pena capital
Às irregularidades acima somaram-se outras, de não menor gravidade.
Ouvida a resposta do réu, cabia a Caifás analisá-la com serena imparcialidade e depois submeter o caso à votação de todos os membros do tribunal. Não o fez. Pelo contrá- rio, estava tão agitado pelo ódio que rasgou a veste sacerdotal, atitude que era absolutamente proibida ao sumo sacerdote. A frenética agitação o levou inclusive a romper várias outras normas jurídicas, das quais aqui ressaltamos três, de fundamental importância todas elas.
Primeira, forçou o voto em conjunto de todos os membros do Sinédrio, quando pela lei deviam votar individualmente, um a um: “Eu condeno”, ou “Eu absolvo”, tudo devidamente registrado pelos funcionários competentes. Segunda, a sentença foi pronunciada no mesmo dia em que se iniciou o julgamento; ora, prescrevia a legislação que, em casos de pena capital, a sentença devia ser diferida para o dia seguinte. Terceira, a sentença de morte foi pronunciada na casa de Caifás; ora, pela lei, sentenças de morte eram válidas somente quando proferidas na Sala Gazith, denominada também Sala das Pedras Talhadas, situada numa das dependências do Templo.
Devido ao fato de a Judeia ter sido reduzida à situação de província romana, o Sinédrio perdera o ius gladii, ou seja, o direito soberano de aplicar a pena de morte. Na prática, portanto, de nada adiantaria aos sinedritas todo aquele esforço noturno para prender e condenar Jesus, se eles não conseguissem a sentença condenatória prolatada pelo governador romano. Conduziram, pois, apressadamente Jesus da casa de Caifás ao pretório de Pilatos, onde iniciaram outra batalha, tão infame e inglória como a primeira.
Sabendo por uma dura experiência que o magistrado romano não daria a menor atenção a uma acusação de blasfêmia ou coisa do gênero, viram-se obrigados a apresentar Jesus como um criminoso político, um sublevado, amotinador do povo, contrário ao pagamento do tributo a Roma; numa palavra, inimigo de César.
Flagelação, pelo Mestre de Rubiò Museu Episcopal de Vic (Espanha) |
Inseguro e acovardado, Pilatos fez diversas tentativas de libertar o Divino Prisioneiro, pois bem percebia que os escribas e sacerdotes não procediam com reta intenção. Estes, porém, instigavam o populacho a reclamar em altos brados a condenação à morte de Jesus: “Crucifica-O! Crucifica-O! […] Se O soltares, não és amigo do imperador, porque todo o que se faz rei se declara contra o imperador” (Jo 19, 6.12).
Ao ouvir esta ameaça, a pouca coragem de Pilatos desmoronou, e ele lhes entregou o Inocente para ser crucificado. Assim como os judeus preferiram um vulgar salteador de estrada em vez do Redentor, o governador poltrão sacrificou a Verdade em benefício de sua mediocridade, com seu simbólico gesto de lavar as mãos.
O mais esplêndido triunfo da História
Encerrado estava, finalmente, o processo mais abominável da História. Nosso Senhor Jesus Cristo, condenado à mais ignominiosa das mortes, partiu carregando a Cruz rumo ao alto do Calvário. Os esbirros, os sacerdotes e os escribas nada pouparam do que podiam fazer para aumentar seus tormentos de corpo e de alma. O Cordeiro de Deus foi por fim imolado.
Cristo Ressurrecto Basílica de São Marcos, Veneza (Itália) |
Depois de dizer “Tudo está consumado” (Jo 19, 30), Cristo inclinou a cabeça e expirou. O próprio Padre Eterno Se incumbiu de fazer os solenes funerais de seu Divino Filho: o sol se escureceu, deixando a terra envolta em trevas; o véu do Templo se rasgou de alto a baixo, em duas partes; a terra tremeu; partiram-se as pedras; os túmulos se abriram e viram-se os corpos dos defuntos andando pelas ruas da cidade deicida, increpando os judeus.
Aos olhos dos amigos do mundo, Cristo era um derrotado, o mal havia prevalecido. A Virgem Santíssima, porém, permanecia de pé junto à Cruz, com o coração transpassado pelo gládio da dor, mas convicta de que a esse aparente fracasso logo se seguiria esplendorosa vitória. Nosso Senhor Jesus Cristo havia vencido a morte e o mal para sempre, ao ressuscitar ao terceiro dia e abrir-nos as portas do Céu. Assim, longe de ser uma derrota, o holocausto do Justo foi na realidade o mais esplêndido triunfo da História. (Revista Arautos do Evangelho, Março/2018, n. 195, pp. 16 à 19)
1 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Via-Sacra. I Estação. In: Legionário. São Paulo. Ano XVI. N.558 (18 abr., 1943); p.3. 2 CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Via-Sacra. I Estação. In: Catolicismo. Campos dos Goytacazes. Ano I. N.3 (Mar., 1951); p.4. 3 Cf. LÉMANN, Augustin; LÉMANN, Joseph. Valeur de l’assemblée qui prononça la peine de mort contre Jésus-Christ. 3.ed. Paris: Victor Lecoffre, 1881.