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Comentários ao Evangelho


Anúncio da realidade futura
 
AUTOR: MONS. JOÃO SCOGNAMIGLIO CLÁ DIAS, EP
 
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A Transfiguração do Senhor reforça a esperança na ressurreição, indicando o que nos aguarda se formos fiéis à Palavra de Deus.

Evangelho

Naquele tempo, 2 Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha. E transfigurou-Se diante deles. 3Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar. 4Apareceram-lhes Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus. 5Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. 6Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo. 7 Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!” 8 E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. 9Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10 Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos” (Mc 9, 2-10).

I – Vivemos numa ilusão

Se analisarmos bem certos fatos, os mais corriqueiros da vida, poderemos constatar o quanto nos iludimos ao tomarmos como definitivas as realidades passageiras. Por exemplo, vendo uma criança de poucos anos de idade não se pode dizer: “Olhe, que grande general!” Ou então: “É um cirurgião de primeira categoria!” Como se afirma isso, se ela mal começou a viver? Não há, ainda, elementos indicativos do rumo que tomará. Se mais tarde, porém, seguir uma dessas carreiras e alguém nos mostrar sua fotografia de quando era criança, veremos como era diferente e não se podia supor que estivesse ali, em germinação, um homem com tal futuro. Da infância à idade adulta as modificações físicas e psicológicas são tantas que quase se poderia dizer que a única constante é a mudança. Depois, quando se atinge a maturidade, outro tipo de transformação se inicia: a progressão para a ancianidade. O corpo perde vitalidade, alguns órgãos começam a falhar, a existência é vista de outra perspectiva… No rosto ficam registradas as marcas do transcurso do tempo, não sendo já a hereditariedade a moldá-lo, mas sim as vicissitudes, as lutas, os dramas. No entanto, quando vemos nossa atual fisionomia, alimentamos a ilusão de que sempre nos conservaremos neste estado. E não é verdade! Se nos apresentassem, hoje, nosso retrato do dia marcado por Deus para morrermos, teríamos um susto por ver tão grande diferença. Quase não nos reconheceríamos. Tudo muda, tudo passa…

Com efeito, vivemos numa “subfiguração” daquilo que somos chamados a ser, de nossa verdadeira imagem se formos para o Céu. Confrontado com ela, nosso aspecto neste mundo é incomparavelmente inferior. Só é superior ao de quem vai para o inferno. Quando Deus olha para nós, como está fora do tempo – Ele é eterno –, não considera apenas o que somos neste momento, mas também como seremos depois da morte. Se isto é assim, no trato entre nós não podemos deitar a atenção só nas aparências presentes, mas devemos ter em conta a figura do outro ao ressuscitar para a vida eterna, a que está continuamente diante do olhar divino.

Podemos entender melhor com o seguinte exemplo. Se os pais de um recém-nascido recebessem de um Anjo o dom de conhecer como o filho seria quarenta anos depois, quando fosse uma pessoa já realizada, e o Anjo fizesse com que aquela visão permanecesse imutável na memória deles, bem podemos estar certos de que quando surgissem dificuldades na educação da criança seriam muito mais capazes de suportá-las e teriam em relação a ela toda espécie de benevolência. Ora, assim Deus nos vê! Ele não olha tanto os defeitos, mas, sim, o ponto final para o qual nos criou. Por isso, nesta terra de exílio devemos estar a cada instante considerando a figura ideal que somos convidados a reproduzir em nós, e nos esforçarmos para fixá-la na alma e torná-la o mais bela possível. É este um pensamento sugerido pela Liturgia da festa da Transfiguração.

Anjo da Guarda
Catedral de Bruges
(Bélgica)

II – A bondade do Divino Mestre com seus discípulos

Deus, porque é o Bem Absoluto – o Bem é eminentemente difusivo1 – e por ser a Verdade, Se compraz em ensinar. Ele, que poderia viver sem nenhuma criatura por toda a eternidade, pois é um Ser necessário e Se basta a Si próprio, quis criar o universo no qual há seres inteligentes: os Anjos e os homens. Foi por “um excesso de bondade” – afirma São João Damasceno – que Ele “resolveu fazer nascer algo que participasse e recebesse os favores de sua bondade”.2

Os Anjos têm uma constituição diferente da nossa: são espírito puro. Conhecem por intuição, veem tudo à distância, havendo sido instruídos da forma adequada à sua natureza.3 Os homens, por sua vez, tendo corpo e alma, conhecem por constatação e por raciocínio. Por tal motivo, Deus deu-lhes o Paraíso Terrestre a fim de facilitar a ascensão de sua mente até o Criador. Nesse lugar tudo era símbolo, tudo era maravilha, tudo elevava a Deus. Expulso do Éden, em consequência do pecado, nem por isso Deus abandonou o homem, mas continuou a assisti-lo ao longo da História, pois Ele, mestre insuperável, cuida de nós como um pai afetuoso.

Tal afeto manifesta-se em relação aos Apóstolos, na Transfiguração. Jesus já revelara sua futura Paixão, embora não tivessem entendido o que Ele queria dizer (cf. Mc 8, 31-32). Depois, levou São Pedro, São Tiago e São João ao alto do Monte Tabor e lá Se transfigurou milagrosamente, como vemos neste Evangelho.

Para quem vira Jesus realizar inúmeros sinais, dar a visão aos cegos, fazer ouvir os surdos e falar os mudos, e até ressuscitar mortos – um deles, Lázaro, falecido havia quatro dias –, de repente, contemplá-Lo todo chagado da cabeça aos pés, ensanguentado, desfigurado, carregando a Cruz às costas e depois crucificado, seria um trauma, um choque tremendo. Como sabia que eles iriam passar por esse drama, quis Nosso Senhor prepará-los e escolheu primeiro alguns: Pedro, Chefe da Igreja; João, o Discípulo Amado; Tiago, um Apóstolo de fogo. Seriam os mesmos que O veriam angustiado e transpirando sangue no Horto das Oliveiras (cf. Mc 14, 33-42). E ali, no Tabor, fez um prodígio para lhes mostrar, ainda que de modo imperfeito, como seria Ele no dia da Ressurreição, e não duvidassem de sua divindade vendo-O no alto da Cruz, perdendo todo o seu Sangue até morrer, mas tivessem a certeza, dada pela fé e robustecida por essa comprovação, de que Ele iria ressuscitar, e sustentassem a fé de todos os que O seguiam.

Deus ama o princípio da mediação

Naquele tempo, 2a Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, e os levou sozinhos a um lugar à parte, sobre uma alta montanha.

Um detalhe chama a atenção: Jesus levou apenas três a um lugar à parte. Por que terá Ele procedido dessa forma? Podia ter conduzido para o Monte Tabor os Doze, os discípulos e as Santas Mulheres, fazendo deles também testemunhas do fato. A seguir poderia explicar-lhes a razão da Transfiguração, tornando evidente e irretorquível sua condição divina. Entretanto, separou só aqueles. Ele nos revela, com isto, seu amor ao princípio de mediação. Muitas vezes Deus dá graças só a uns poucos, com o intuito de que estes depois transmitam aos outros tais experiências sobrenaturais. Assim a Providência indica como, para não vacilar na própria fé, é preciso confiar na de outrem ou fortalecer-se com o exemplo de quem a tem mais vigorosa.

Um milagre didático

2bE transfigurou-Se diante deles. 3Suas roupas ficaram brilhantes e tão brancas como nenhuma lavadeira sobre a terra poderia alvejar.

Desde o primeiro instante, quando foi concebido no seio virginal de Maria, a Alma de Jesus estava na visão beatífica e tinha, portanto, a máxima glória que era possível a um homem alcançar. Ora, segundo a doutrina unânime da Teologia, quando a alma vê a Deus face a face e retoma o seu corpo, confere-lhe o estado glorioso.4 Por tal motivo, Jesus deveria ter, habitualmente, um corpo glorioso. Ele fez um milagre negativo durante toda a sua vida, abolindo o esplendor que Lhe cabia tanto por estar sua Alma na posse constante da visão beatífica, quanto por não ter Ele personalidade humana, mas unicamente divina. Por quê? Porque quis Se fazer sofredor e passar os trinta e três anos de sua permanência nesta terra, até a Ressurreição, com o corpo padecente, para cumprir a vontade do Pai, oferecendo-Se como vítima sem mancha pela salvação da humanidade. Por isso, só em certos momentos, e apenas quando necessário, teve por milagre o que é próprio dos dotes do corpo glorioso. Uma dessas ocasiões foi seu nascimento, pois mostrou em Si mesmo um indício da sutileza – isto é, o poder de transpor a matéria sem encontrar resistência – e passou do claustro materno para os braços de Maria sem alterar a integridade de sua Mãe, nem tocar na carne puríssima e santíssima d’Ela, nem sequer na sua roupa.5

O que aconteceu, então, no Tabor? Ali o Salvador quis dar uma ideia da nossa felicidade quando entrarmos no Céu em corpo e alma. Transfiguração é um termo criado pela Igreja para exprimir o que se passou naquele episódio, como também o que nos acontecerá ao ressuscitar. O corpo terá certos hábitos e qualidades, em consequência da glória da alma, e esta, com o lumen gloriæ, verá a Deus como Ele é.

O Prefácio desta festa interpreta com a inigualável voz da Igreja tal pensamento: “Perante testemunhas escolhidas, Jesus manifestou sua glória e fez resplandecer seu Corpo, igual ao nosso, para que os discípulos não se escandalizassem da Cruz. Desse modo, como Cabeça da Igreja, manifestou o esplendor que refulgiria em todos os cristãos”.6 Usando admirável precisão de linguagem, esta oração explica como, de fato, Cristo não assumiu o corpo glorioso nessa ocasião, mas apenas fez ver uma de suas características, a claridade. Segundo afirma ainda São Tomás,7 Ele operou o milagre da Transfiguração e desvelou sua glória continuando com um corpo padecente igual ao nosso. Quando vier no fim dos tempos, essa glória será maior do que a do Monte Tabor, onde apareceu somente uma pálida imagem do esplendor futuro.

Detalhe da Transfiguração
Biblioteca do Mosteiro de Yuso,
San Millán de la Cogolla (Espanha)

Um significado da presença de Moisés e Elias

4Apareceram-lhes Elias e Moisés, e estavam conversando com Jesus.

Além de mostrar um reflexo da felicidade eterna, Deus também quis que tivessem uma noção de um aspecto acidental dessa mesma felicidade: o convívio com os Bem-aventurados. A presença de Moisés e Elias representando a Lei e os profetas era, por um lado, a garantia de que ali estava a plena realização da Lei, a Lei em pessoa, o Profetizado, o Prometido das Nações. Por outro lado, prenunciava como seria, no Céu, o perpétuo relacionamento com todos os Anjos e Santos, tão íntimo, caloroso, cheio de fogo e de entusiasmo, e sem o desgaste da repetição de coisas já conhecidas. Sendo Deus infinito, sempre haverá novas facetas divinas a serem contempladas individualmente e comentadas com todos para nos cumular de alegria e amor, estabelecendo-se um magnífico colóquio eterno no qual nunca haverá o inconveniente dos temas que envelhecem e se tornam desprovidos de interesse.

Sim, porque em função da própria luz primordial,8 cada alma terá uma visão única e exclusiva de Deus, a partir de uma perspectiva ou ângulo que ninguém mais tem. Para exemplificar, imaginemos um grupo de pessoas que está numa sala conversando; cada uma vê de forma diversa o local, dependendo da posição na qual se encontra. Umas terão diante de si a porta, outras uma janela, tudo faz parte do mesmo cômodo, mas ninguém consegue ver tudo a um só tempo. É o que se passa em relação a Deus.

São Pedro quer possuir para sempre aquela imagem

5Então Pedro tomou a palavra e disse a Jesus: “Mestre, é bom ficarmos aqui. Vamos fazer três tendas: uma para Ti, outra para Moisés e outra para Elias”. 6Pedro não sabia o que dizer, pois estavam todos com muito medo.

São Pedro não sabia o que dizer, pensando que ao admirar essa maravilha deslumbrante teria chegado ao termo final da vida e estariam resolvidos todos os problemas da existência terrena. Ele desejaria ficar ali, como quem diz: “É bom ficarmos aqui no Monte Tabor, neste convívio delicioso, para sermos fiéis à prática da virtude, fiéis aos Mandamentos divinos, fiéis a Vós”. É exatamente o que sentiremos no Céu, quando virmos Deus face a face.

Com efeito, criado para Deus – a Verdade Absoluta –, o homem tem uma sede inesgotável de verdade que só n’Ele é saciada. O inexplicável, a contradição, os grandes mistérios da natureza e do mundo sobrenatural são para ele causa de inquietação. Porém, na terra nunca se chegará a conhecer tudo, a decifrar todas as incógnitas e a encontrar esclarecimento para as questões mais obscuras. Só na eternidade, ao contemplar o próprio Criador, a inteligência humana encontrará repouso, por ter alcançado a Verdade e por haver tornado claro o que antes era sombra.

Assim, São Pedro “não sabia o que dizer”, mas sabia que precisava guardar aquela imagem, porque ela lhe daria os elementos para enfrentar todas as adversidades vindouras, inclusive seu próprio martírio.

Nunca podemos esquecer a luta e a dor, mesmo no auge da consolação ou da glória

7Então desceu uma nuvem e os encobriu com sua sombra. E da nuvem saiu uma voz: “Este é o meu Filho amado. Escutai o que Ele diz!”

Às muitas interpretações sobre esta manifestação do Pai, podemos acrescentar um aspecto, por vezes esquecido: neste vale de lágrimas a dor está sempre presente. Em meio ao fulgor da Transfiguração, era preciso estar atento às palavras do Filho de Deus, ou seja, sair dali e voltar a escutar o que Ele ainda tinha a dizer, o anúncio da Paixão, e depois as lutas, as perseguições que a Igreja teria de vencer. A vida de todos os dias não é no Tabor, mas na planície, expulsando demônios, discutindo com fariseus, num constante esforço para dilatar o Reino de Deus, como afirma Santo Agostinho num de seus sermões: “Desce, Pedro. Querias descansar na montanha, mas desce, prega a palavra, insiste oportuna e inoportunamente, argumenta, exorta, increpa com toda longanimidade e doutrina. Trabalha, esforça-te, sofre alguns tormentos para possuir na caridade, pela candura e beleza das boas obras, o que é simbolizado nas brancas vestes do Senhor”.9 Este devia ser o empenho dos Apóstolos.

O panorama futuro é a Ressurreição, como lhes foi desvendado no Tabor. No entanto, deviam estar dispostos, para chegar lá, a passar pelo Pretório de Pilatos, pelo Calvário e por todas as humilhações.

Escolher entre dois polos

8E, de repente, olhando em volta, não viram mais ninguém, a não ser somente Jesus com eles. 9Ao descerem da montanha, Jesus ordenou que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. 10Eles observaram esta ordem, mas comentavam entre si o que queria dizer “ressuscitar dos mortos”.

Estes versículos não deixam dúvida de que Nosso Senhor Jesus Cristo, além de revelar sua Morte – o que fez várias vezes antes da Paixão –, anuncia a Ressurreição e sua consequente glorificação, que seria também a nossa. Contudo, os Apóstolos não entendiam o significado de “ressuscitar dos mortos”, tão distante estava seu pensamento do verdadeiro ideal de Reino messiânico anunciado pelo Mestre. Como podia ser que o Messias morresse? Seu Reino não seria eterno? E por esta razão se indagavam sobre o sentido das palavras de Jesus. Só depois, diante da realidade dos fatos, começaram a compreender o que Ele queria dizer, até que o Espírito Consolador foi derramado sobre eles e lhes abriu os olhos e a mente.

Nesta passagem do Evangelho escolhida para a festa de hoje, omite- -se o ocorrido logo após terem descido do Monte Tabor: “Depois, aproximando-Se dos discípulos, viu ao redor deles grande multidão, e os escribas a discutir com eles” (Mc 9, 14). Um primeiro acontecimento é a Transfiguração, que se deu na montanha, porque é no alto dos montes que se dão os lances grandiosos, como a entrega das Tábuas da Lei a Moisés. O episódio que se segue, cheio de confusão, deu-se no sopé do monte: um pai tinha um filho possesso e pediu a Nosso Senhor ajuda, pois os discípulos não conseguiram exorcizá-lo (cf. Mc 9, 17-18). Depois de haver posto à prova a fé do pai do menino, Jesus expulsou o demônio, que saiu “gritando e maltratando-o extremamente” (Mc 9, 26), tendo ficado como morto. Então Nosso Senhor o tomou pela mão e, já livre de toda ação demoníaca, o levantou.

Transfiguração
Catedral da Transfiguração,
Toronto (Canadá)

Deus permitiu que isto se sucedesse à Transfiguração, pois queria mostrar aos três Apóstolos e, mais tarde, aos discípulos o contraste entre o que seremos nós quando ressuscitarmos, se formos bons ou se formos maus. São os dois polos do que nos pode acontecer no dia do Juízo Final. Quem persevera junto a Jesus no alto da montanha ressurge transfigurado, e quem está com satanás no sopé da montanha ressurge desfigurado, porque o demônio o domina. Eis os únicos destinos possíveis: Céu para quem praticar a virtude, inferno para quem morrer em pecado.

III – Aceitemos o convite!

Esta Liturgia nos deixa claro que o objetivo do Divino Mestre na Transfiguração era fazer com que seus três eleitos guardassem a recordação daquela cena imponente, sobretudo das graças místicas recebidas, como um flash da glória, proveniente de sua divindade e de sua Alma, refletida em seu Corpo, a fim de terem mais facilidade para atravessar o grande drama da Paixão que estava por vir. E qual o efeito da Transfiguração sobre nós? Já acreditamos na Ressurreição do Senhor, a Paixão não nos perturba – pelo contrário, é um consolo em nossos sofrimentos – e a Igreja nos proporciona a doutrina exata sobre o Reino de Deus. O que pode acrescentar ela à nossa fé? 

Também nós nos transfiguramos

Nascidos em estado de maldição, separados de Deus pelo pecado original, incapazes de entrar no Céu, nós também temos com o Batismo uma primeira transfiguração: adquirimos uma figura que não tínhamos,10 porque o demônio é expulso, a mancha original é apagada, um selo é gravado em nosso coração – o caráter de cristão – e a partir daí começamos a nos configurar com Nosso Senhor Jesus Cristo. Para atingirmos por inteiro a estatura e a força d’Ele, recebemos os Sacramentos da Crisma e da Eucaristia.11 Há ainda outros elementos que cooperam para nossa sucessiva conformação: a cruz vai modelando a alma, a oração obtém graças para o seu aperfeiçoamento, e a vocação específica de cada um é o caminho especial, traçado pela Providência, para nos parecermos ainda mais com Jesus. Assim, a vida se torna um contínuo transfigurar-se, até nos identificarmos plenamente com Ele, meta de todo cristão.

Um auxílio para a transfiguração completa

E da mesma forma que Nosso Senhor favoreceu três Apóstolos com a experiência da Transfiguração, também em nossa vida espiritual são frequentes as consolações sobrenaturais e as diversas graças místicas e sensíveis que nos fortalecem, qualquer que seja a via que trilhemos rumo à santidade. Tais graças nos fazem experimentar no fundo da alma algo da realidade futura, dando-nos saudades do Céu, apesar de não o conhecermos. Ter saudades do que já vimos é normal, mas será possível tê-las do que ainda não conhecemos, mas sabemos existir? Este é o ponto essencial da nossa transfiguração: saber que existe!

Se guardarmos bem a recordação das graças e consolações, que nos visitaram à maneira de um fulgurante flash, bem como a fidelidade à visualização que elas nos oferecem, podemos ter confiança de que o prêmio será incomparavelmente superior. Quando, por mérito do preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor, das lágrimas de Nossa Senhora e da intercessão dos Anjos e Santos, Deus, em sua misericórdia, nos houver perdoado todas as faltas e admitido na visão beatífica, nossos corpos ressuscitarão semelhantes ao de Cristo na Transfiguração. Esta perspectiva do dia do Juízo Final, em que o Filho de Deus descerá à terra em sua glória, nos deve encher de alegria, de esperança, de amor a Deus, e dar ânimo e coragem no decurso dos dramas da existência, conforme lembra a Antífona da Comunhão, pela pena do Discípulo Amado: “Quando Cristo aparecer, seremos semelhantes a Ele, pois O veremos como Ele é” (I Jo 3, 2).

Entrada dos Bem-aventurados no Céu,
por Giotto di Bondone – Detalhe do
afresco do Juízo Final, Cappella
degli Scrovegni, Pádua (Itália)

A Oração do Dia sublinha estas verdades ao dizer: “Ó Deus, que na gloriosa Transfiguração de vosso Filho confirmastes os mistérios da Fé pelo testemunho de Moisés e Elias, e manifestastes de modo admirável a nossa glória de filhos adotivos, concedei aos vossos servos e servas ouvir a voz do vosso Filho amado, e compartilhar da sua herança”.12 Na Transfiguração ficam confirmados os mistérios da Fé, pois vimos o fim que nos espera ao passarmos a ser filhos de Deus pelas regeneradoras águas batismais. Se ouvirmos essa voz seremos convidados a participar de sua herança, da visão beatífica, da contemplação da Alma d’Ele, e a conviver com Ele no Céu.

Então, embora a multidão dos Bem-aventurados possa ser incontável, todos estaremos perto de Nosso Senhor, numa intimidade inimaginável por nossa inteligência nas condições atuais. Agora, quando queremos cumprimentar efusivamente alguém que encontramos depois de longa ausência, a quem estimamos de forma especial, como a mãe, o pai ou os irmãos, estendemos os braços e nos fundimos em um grande abraço, sinal do apreço pelo outro. Mas esse abraço, depois de alguns momentos, se completa e cessa. Quando entrarmos no Céu poderemos abraçar Jesus? Sem dúvida, será um abraço eterno, sem nunca se desgastar nem diminuir, porque sempre haverá elementos novos para sustentar o amor ao Sumo Bem.

A festa de hoje prognostica tudo isso e, ao mesmo tempo, nos convida a parar um instante para considerar nosso destino final, fazendo- -nos crescer na esperança.

Esperança: estímulo para perseverar na virtude

Esperança, virtude fundamental, pois a tentação contra ela visa destruir todo o edifício de nosso organismo sobrenatural, porque ela é um estímulo vigoroso para a prática das demais virtudes. Por isso, quando o demônio consegue fazer alguém perder a esperança, atinge todas as virtudes, roubando-lhe o ânimo para perseverar no bem, e fica com o governo dessa alma nas mãos.

Ter ideia, portanto, do prêmio último, do gozo decorrente da ressurreição, dá alento para enfrentarmos as dificuldades da vida, quer sejam elas de ordem financeira ou de negócios, quer sejam de relacionamento ou de compreensão, ou de qualquer outra classe, as quais muitas vezes provêm da ilusão de encontrar o bem supremo nas criaturas e não no Absoluto. Percorramos com confiança o caminho que ainda nos separa da bem-aventurança celestial, a fim de vermos satisfeitos nossos anseios de felicidade na plenitude do Bem que só existe em Deus. (Revista Arautos do Evangelho, Agosto/2018, n. 200, p. 8-15)

1 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma contra os gentios. L.III, c.24, n.6. 2 SÃO JOÃO DAMASCENO. Exposición de la fe. L.II, n.2 (16). Madrid: Ciudad Nueva, 2003, p.80. 3 Cf. DIONÍSIO AREOPAGITA. Los Nombres de Dios. C.VII, n.2 [868 B]. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1990, p.336-337. 4 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.14, a.1, ad 2. 5 Cf. Idem, q.45, a.1, ad 3; a.2. 6 TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR. Prefácio. In: MISSAL ROMANO. Trad. portuguesa da 2a. edição típica para o Brasil realizada e publicada pela CNBB com acréscimos aprovados pela Sé Apostólica. 9.ed. São Paulo: Paulus, 2004, p.629. 7 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.45, a.1; a.2. 8 Luz primordial é uma expressão cunhada pelo Prof. Plinio Corrêa de Oliveira para designar o aspecto de Deus que cada alma deve refletir e contemplar, em função do qual se deve ordenar toda a sua existência, a sua vocação pessoal. Cada alma tem uma luz primordial única, diferente de todas as outras. 9 SANTO AGOSTINHO. Sermo LXXVIII/A, n.6. In: Obras. Madrid: BAC, 1983, v.X, p.434. 10 Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q.69, a.5. 11 Cf. Idem, q.65, a.1; q.72, a.1; q.73, a.1. 12 TRANSFIGURAÇÃO DO SENHOR. Oração do Dia. In: MISSAL ROMANO, op. cit., p.628.

 
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