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Espiritualidade


E depois?…
 
AUTOR: PE. BRUNO ESPOSITO, O.P.
 
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Mesmo em nossos dias, esta simples e realista questão interpela a todos, sem exceção alguma. Só temos uma vida e ela nos foi dada por Deus para vivermos como administradores, não como proprietários.

Não sei quantos leitores destas reflexões – intrigados quiçá por um título do qual não se sabe que tipo de perguntas e respostas apresenta e pressupõe – viram o filme sobre a vida de São Filipe Néri, interpretado pelo grande e único Gigi Proietti: Prefiro o Paraíso.

Eu assisti a pelo menos trinta projeções em várias línguas e não me envergonho de dizer que em todas elas me senti profundamente comovido, a ponto de aconselhar sua assistência a todos, sobretudo àqueles que receberam de Deus a vocação à vida consagrada ou ao sagrado ministério. Talvez exagerando, estou convencido de que há nele elementos de reflexão e meditação para todo um curso de exercícios espirituais.

De certo modo, a figura deste Santo esteve sempre presente em minha vida e em minha vocação dominicana: desde jovem ele frequentou o Convento de São Marcos, em Florença, que vira algumas décadas antes a presença e a obra de Frei Girolamo Savonarola; nesse convento fiz meu noviciado, durante o qual li algumas biografias do Néri, sentindo-me sempre afim com ele, ao menos pelo nosso comum senso de humor!

O filme coloca nos lábios de Filipe esta belíssima e comovedora prece que resume suas esperanças, suas aspirações, suas fadigas, sua luta: “Ó Senhor, como poderei fazê-los entender que sois a única fonte da alegria e da beleza? Sem Vós, nada sou: por que me escolhestes para fazer todas estas coisas? Eu não sou digno! Embora eu os ame, minha maior alegria é estar convosco, mas, afinal de contas, tenho tempo para todos, menos para Vós!”

Captura de tela do filme “Preferisco il Paradiso”

“Nessa hora, o que terei acumulado?”

De qualquer forma, permito-me apresentar aqui algumas cenas, entre as quais a que abre a segunda parte do filme. Alguns meninos que o Pe. Filipe tirara da rua e reunira no Oratório, a fim de alimentá-los material e espiritualmente, agora já na idade adulta, se reencontram para festejar o aniversário do seu “pai” que, em tom de pilhéria, lembra-lhes de estar apenas com um a mais do que no ano passado: e basta!

Em torno à mesa, todos compartilham suas recordações do passado e seus planos para o futuro. Alessandro, tendo-se convertido, partirá para as Índias com os jesuítas, o que para Filipe continua sendo um sonho. Camilo vai dar assistência aos enfermos, porque percebeu que assim vai servir o Senhor. Pedro está prestes a se formar. Por fim, Aurélio anuncia sua decisão de empreender a carreira eclesiástica, reconhecendo, contudo, não ser coisa fácil: “Quero ser Bispo!”

Percebendo o tom de voz orgulhoso e as intenções seguramente não boas, Filipe lhe pergunta com seriedade e interesse:

— E depois?…

Um pouco embaraçado, Aurélio responde que, tendo atingido o primeiro degrau, poderia conquistar uma Nunciatura.

— Certo! E depois?… – insiste Filipe, em tom paterno, mas premente.

Na ilusão de contar com seu apoio, o jovem responde:

— Depois… poderei chegar a Cardeal…

— Cardeal!?!… E depois? Depois Papa?

— Talvez sim… – responde Aurélio.

Filipe então, com um olhar compassivo, repete a pergunta inicial:

— E depois?… E depois?…

— Basta, Filipe! Depois… morrerei – responde Aurélio, baixando os olhos.

Filipe então relembra-lhe com doçura a finalidade da vida e o convida paternalmente a se perguntar: “Nessa hora, o que terei acumulado?”

E atirou ao ar o chapéu…

Infelizmente, Aurélio não prestou ouvidos ao convite de São Filipe a reconsiderar o sentido da vida, a fim de não a desperdiçar com coisas efêmeras e passageiras. Pelo contrário, traindo a confiança do mestre, aproveitou-se do seu relacionamento com ele para espionar suas atividades pastorais, muito ousadas para aqueles tempos, e relatá-las às autoridades eclesiásticas. Em “recompensa” estas lhe concederam o que ele sempre desejara: tornou-se Bispo na França!

No final do filme Aurélio reaparece com suntuosos trajes episcopais, no grande parque de seu palácio, rodeado por monsenhores e administradores que lhe dão informações sobre o sólido crescimento econômico da diocese. E ele, triste e pensativo, escreve uma carta a Filipe, na qual reconhece que, tendo embora conseguido tudo quanto almejara, parecia-lhe nada possuir.

Reconsiderando sua vida, admitiu por fim que Filipe tinha razão; as mais belas coisas que havia obtido eram as carícias de um cigano que Filipe lhe fizera lavar da cabeça aos pés – sobretudo os pés! –, e o sorriso de Filipe que, embora soubesse de suas intenções e traição, sempre o amou como a todos os seus outros “filhos”.

É interessante também notar que, pouco antes de apresentar essa íntima tomada de consciência do homem que faz a experiência de ter jogado fora sua vida, o filme focaliza o encontro do Pe. Filipe com o Papa Clemente VIII. Este lhe perguntou quais eram as regras e finalidades de sua nascente comunidade. Com temor, mas ao mesmo tempo com serena firmeza, Filipe recordou que, como bastam poucas regras para ser obedecido (ah, se os governantes levassem um pouco mais em conta esta verdade…), ele escolhera apenas uma: a caridade!

Profundamente tocado pela honestidade e santidade do Pe. Filipe, o Papa quis promovê-lo a Cardeal. “Ninguém merece isto mais que vós”, disse-lhe comovido. Mas aquele que seria denominado o “segundo apóstolo de Roma” tomou das mãos do Santo Padre o chapéu cardinalício, que lhe ia ser imposto, e perguntou com santa hilaridade: “Santidade, eu Cardeal??? Prefiro o Paraíso!!!” E atirou ao ar o chapéu.

Temos apenas uma vida

Então: E depois?…

Inclusive nos nossos dias, esta simples e realista questão interpela a todos, sem exceção alguma, sobre o significado da própria vida, a única que nos foi dada por Deus para vivermos como administradores e não como proprietários.

Hoje como ontem, a ambição cega, o egoísmo e o egocentrismo se traduzem e desdobram em situações diversas, que devemos saber reconhecer e desmascarar se não quisermos desperdiçar a vida que nos foi dada. Nunca nos esqueçamos: temos apenas uma vida, e neste prélio não estão previstos tempos suplementares!

A obsessão pelo poder, por fazer “carreira” a qualquer custo, mesmo sem ter capacidade para tal, recusando-se a aceitar a realidade e dissociando-se patologicamente desta, e o ambicionar postos de autoridade e exercer com impune arrogância o mando que dela deriva são situações que cada um de nós experimenta diariamente. Ocorrem ao sair de ônibus, ou ao receber um atendimento médico; quando se tenta exercer um direito pessoal em uma repartição pública, ou se apresenta uma simples pergunta ou solicitação e se encontra do outro lado alguém que, violando as mais elementares normas da educação, nem sequer acusa recebimento.

O descrédito, a desonestidade, a corrupção, a grosseria, a falta de respeito devido a cada um enquanto pessoa, a mentira sistemática, quando não a calúnia, o fazer promessas impossíveis de cumprir e oferecer favores por ocasião das eleições, enganando despudoradamente a muitos para se eleger… Tudo isso parece constituir hoje um conjunto de comportamentos previsíveis e até naturais dentro das relações interpessoais em todos âmbitos sociais, sem exclusão de nenhum, o que é grave e perigosíssimo.

Como argutamente observou o Papa Francisco em um recente discurso após a Via-Sacra no Coliseu, perdeu-se “a vergonha por ter perdido a vergonha” (30/3/2018). Deixo à memória e à inteligência dos leitores o encargo de enfrentar e analisar o contexto desta verdade sacrossanta, embora triste.

Retrato de São Filipe Néri (século XVIII)
Complesso di San Firenze,
Florença (Itália)

Seremos julgados segundo o amor

Então: E depois?…

Contudo, erraria quem, como o Rei Davi, julgasse que isso diz respeito só aos outros: “Tu és esse homem!” (II Sm 12, 7). Quantos aproveitadores que, como Aurélio, tudo tentariam para fazer carreira, cada um de nós conhece ou já conheceu?

Trata-se de pessoas obcecadas pelo poder e pelo sucesso que por vezes, tomadas por uma obsessiva mania de onipotência, se esquecem de que são criaturas finitas e de que a própria vida não se realiza no ser “servido” pelos outros ou no “servir- -se” das instituições, mas descobrindo a alegria genuína de se pôr à “serviço” dos demais, do bem das instituições e, por conseguinte, das pessoas.  Esquecem-se de que um dia seremos julgados segundo o amor presente ou não presente nas nossas existências. Segundo isto, e nada mais.

Portanto: E depois?…

Nosso desejo, aqui transformado em prece, é que esta pergunta interpele o quanto antes a consciência de todos, sem exceção, e que, como São Filipe, possamos responder com generosidade, sabendo ser tudo dom de Deus. A Ele devemos dar-nos em troca. Ninguém proceda como Aurélio, o qual tardou demais em descobrir que, tendo obtido tudo quanto desejava, havia perdido o mais importante: aquilo que fora chamado a ser enquanto filho de Deus e irmão de seus semelhantes.

Aurélio, porém, acabou por tomar consciência de que, por ter-se concentrado demasiadamente nas coisas visíveis e terrenas, corria o risco de não colher os bens eternos. Sua atitude acende uma esperança para cada um de nós, ainda que pensemos ser tarde demais…

A tomada de consciência de Aurélio não é outra coisa senão a conversão, para a qual nunca é demasiado tarde enquanto ainda se está vivo! O belíssimo episódio de Cristo com o Bom Ladrão no- -lo recorda com expressões de profunda e apaixonada misericórdia. “Lembra-Te de mim quando entrares em teu reino”, pediu-Lhe. E Jesus respondeu: “Em verdade te digo, hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 42-43).

Não nos condenemos à escravidão

Ao ler estas linhas, alguns por certo julgarão se tratar de belas palavras e pensamentos que um sacerdote está obrigado a transmitir, mas que a realidade é bem outra, inclusive no seio da Igreja. Concordo plenamente, mas exatamente por isso é fundamental tomarmos consciência do perigo e, sobretudo, compenetrarmo- -nos de que este modo de dissipar a própria vida – insisto: a única que temos – não compensa.

No fim, descobriremos ter fracassado e, acima de tudo, perceberemos que, em nome do poder, do sucesso e do desejo de ser onipotente, teremos de fato nos condenado à escravidão, “pois o homem é feito escravo de quem o venceu” (II Pd 2, 19).

Perguntemo-nos então com toda sinceridade, sobretudo se estamos fazendo alguma opção de vida, neste momento em que o presente nos pertence plenamente, ao contrário do que ocorre com o passado e com o futuro: “E depois?…” (Revista Arautos do Evangelho, Maio/2019, n. 209, p. 29-31)

 
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