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Reflexões sobre o incêndio de Notre-Dame
 
AUTOR: PE. FERNANDO NÉSTOR GIOIA OTERO, EP
 
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A maravilhosa Catedral de Paris, símbolo da catolicidade francesa e da Europa cristã, quase foi devorada pelas chamas no dia 15 de abril. Que pensar de tão simbólico e terrível acontecimento?

Notre Dame, que começou a elevar-se à vista dos homens em meados do século XII e se mostrou esplendorosa no reinado de São Luís.

Notre Dame, onde se veneravam a Coroa de Espinhos, um fragmento da Cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo e um dos cravos com que nela O pregaram.

Notre Dame, com sua fachada de beleza perfeita emoldurada por duas altas torres e sua esguia agulha central apontando para o céu.

Notre Dame, maculada durante o Terror pelo idolátrico culto da deusa razão.

Notre Dame, cujas imagens dos reis da Judeia foram decapitadas por fanáticos partidários da “liberdade, igualdade e fraternidade”.

Notre Dame, que sobreviveu às veleidades do Ancien Régime, ao furor anticristão da Revolução Francesa e à ocupação nazista durante a Segunda Guerra Mundial.

Notre Dame, declarada Patrimônio da Humanidade, visitada anualmente por treze milhões de turistas…

Séculos de História quase devorados pelas chamas

A maravilhosa Catedral de Notre Dame, símbolo da catolicidade francesa e da Europa cristã, quase foi devorada pelas chamas no dia 15 de abril. Sua cobertura sustentada por uma monumental trama de vigas de carvalho foi totalmente destruída. A flecha que coroava o cruzeiro desabou sobre a nave central, soterrando com vigas chamuscadas a mesa do altar.

Soaram os sinos das igrejas parisienses, convidando os fiéis a rogar a Deus que detivesse o incêndio. Ajoelhados nas ruas adjacentes, homens e mulheres, jovens e anciãos, cantavam com fé a Ave-Maria, enquanto assistiam ao terrível avançar das chamas ao longo do teto. Os vídeos nos mostram junto a eles os indiferentes de sempre, afastados de Deus e preocupados apenas com seus interesses, aqueles “cujo deus é o ventre” (Fl 3, 19), como bem os caracterizou São Paulo. Outros, talvez não crentes, detinham-se estupefatos ante o trágico evento.

Era um inolvidável momento para Paris, para a França e para o mundo inteiro.

Em certo momento o fogo se deteve

Entretanto, parece que em determinado momento a mão de Deus decidiu deter o fogo.

Os bombeiros trabalharam com denodo desde o início, mas em incêndios desse porte é frequente que o fogo devore tudo. Tendo certamente isto em vista, o capelão do Corpo de Bombeiros, Pe. Jean-Marc Fournier, decidiu entrar no edifício em chamas para resgatar o Santíssimo Sacramento e a mais importante das relíquias ali veneradas: a Coroa de Espinhos de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Ao ver as “cascatas de fogo que caíam das aberturas, tínhamos uma espécie de visão do que poderia ser o inferno”, declarou ele em entrevista à televisão católica KTO. Resgatar a Coroa de Espinhos não foi tarefa fácil, pois ela era guardada num cofre-forte e perdeu-se tempo precioso tentando abri-lo.

Em seguida, o capelão recolheu o Santíssimo Sacramento e abençoou com Ele a catedral. “Pedi a Jesus para combater as chamas e preservar o edifício dedicado à sua Mãe. Essa bênção coincidiu com o início do incêndio na torre norte e sua simultânea extinção! Sem dúvida, a Providência… Os dois campanários estavam salvos”.1

Afinal, o fogo devorou todo o teto, mas a estrutura da catedral pôde ser preservada. A cruz que culmina a nave central, situada sobre o antigo altar-mor, manteve-se de pé, refulgente; a imagem de Nossa Senhora de Paris não sofreu dano algum, embora estivesse muito próxima do tão danificado cruzeiro.

A maravilhosa Catedral de Notre-Dame, símbolo da Europa cristã, estava sendo devorada pelas chamas; era um inolvidável momento para Paris, para a França e para o mundo inteiro

Quais teriam sido as causas do incêndio?

Até o momento em que são escritas estas linhas, não se sabe ainda a causa do incêndio. A empresa que realizava trabalhos de restauração na catedral afirma que todos os seus operários tinham saído às dezessete horas e vinte minutos, e as chamas surgiram às dezoito horas e cinquenta minutos.

Aventou-se, entre outras causas, um curto-circuito ocorrido ao acionar-se o mecanismo do carrilhão. Não há indícios concretos que apontem para um ato terrorista, mas não faltam vozes que levantem dúvidas sobre o caráter acidental deste monumental desastre. Com efeito, nos três meses anteriores, pelo menos dez templos católicos do país foram objeto de atos vandálicos e profanações, entre elas a famosa Igreja parisiense de Saint-Sulpice, vítima de um incêndio em 17 de março. Por ora, nada há a fazer senão aguardar o resultado das investigações.

O Céu nos convida a subir até ele

Enquanto as autoridades procuram esclarecer as causas do incêndio e tomam medidas para a restauração do edifício, propomos aos leitores um ponto para reflexão.

Por ocasião de sua visita a Paris, em 2008, Bento XVI qualificou essa catedral de “testemunha do intercâmbio incessante que Deus quis estabelecer entre Si mesmo e os homens”.2 Relembrou que nela se realizaram grandes acontecimentos religiosos e civis, e de seu sacral ambiente serviu-Se Deus para operar diversas conversões, como a de Paul Claudel.

Tendo entrado na catedral em dezembro de 1886 para ouvir o cântico das Vésperas de Natal, esse famoso escritor francês teve sua alma iluminada por Deus ao ouvir o coral entoar o Magnificat. Testemunha ele: “Num instante meu coração foi tocado e eu cri. Cri com uma tal força de adesão, um tal elã de todo o meu ser, uma tão possante convicção, uma tal certeza excludente de toda espécie de dúvida, que desde então todos os livros, todos os raciocínios, todos os acasos de uma vida agitada, foram incapazes de abalar minha fé nem sequer tocá-la”.3

Tal é o maravilhoso efeito produzido pelas magníficas catedrais góticas que se elevaram aos olhos dos homens, entre as quais a mais emblemática é a de Notre Dame de Paris. Nelas encontramos a união do Céu com a terra, propugnada pela Liturgia. Quando rezamos em seu interior, deixando-nos assumir pelo Espírito que nelas habita, o Altíssimo desce até nós e nos convida a nos elevarmos até Ele. (Revista Arautos do Evangelho, Junho/2019, n. 210, p. 20-21)

1 LEFÈVRE, Hugues. Père Fournier: “Dans Notre-Dame en feu, j’ai récupéré Jésus et béni la cathédrale”. In: www.famillechretienne.fr/eglise.
2 BENTO XVI. Homilia durante a Celebração das Vésperas na Catedral de Notre Dame, 12/9/2008.
3 CLAUDEL, Paul. Contacts et circonstances. In: Œuvres en prose. Paris: Gallimard, 1965, p.1010.

 
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