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Plinio Corrêa de Oliveira


Formação católica do povo, indispensável à democracia
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 30/07/2019
 
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Conselheiro do Centro Dom Vital — núcleo da intelectualidade católica — e seu propulsor em São Paulo, Dr. Plinio discursou no segundo congresso anual dessa associação, em 12 de fevereiro de 1932, sobre um tema então candente: a Igreja e a democracia.

Aceitei com verdadeiro entusiasmo a árdua incumbência de defender os princípios da Santa Sé em um problema complexo e delicado que tem aureolado com a coroa de espinhos do sofrimento a fronte veneranda dos últimos Pontífices que se têm sucedido no Trono de São Pedro. Trata-se das relações a serem estabelecidas entre a Igreja e o Estado, no genuíno regime republicano.

Segundo a doutrina tradicional da Igreja, que a Santa Sé tem proclamado incessantemente, o catolicismo é compatível com todas as formas de governo, sejam elas monárquicas, aristocráticas ou democráticas. Não têm faltado, no entanto, católicos desorientados que sustentam que apenas a monarquia é compatível com o catolicismo. E, por outro lado, já houve quem sustentasse que somente a democracia se poderia enquadrar dentro dos legítimos princípios católicos!

Vemos portanto que, com essas duas doutrinas errôneas, a Igreja seria arrancada ao excelso trono de sua missão sobrenatural, para ser arrastada às lutas políticas em que se digladiam interesses exclusivamente humanos. […]

Na Idade Média, as formas de governo viviam à sombra da Igreja

Não será supérfluo, pois, recordar os princípios cardeais segundo os quais a Igreja resolve a questão das formas de governo, sobranceira sempre à ignorância ou má-fé de seus adversários.

Quando irrompeu na Europa católica do século XVI o sinistro tufão do protestantismo, a organização política de todos os povos ocidentais era, em seus traços gerais, modelada segundo os princípios cristãos.

Formas de governo, havia-as de toda sorte, apresentando mesmo uma diversidade muito maior do que em nossos dias, o que atesta o gênio político dos estadistas medievais. Efetivamente, a forma de governo deve ser a expressão dos interesses peculiares a cada país, formulada dentro das regras traçadas pelo Direito Natural. E este conceito é suficiente para demonstrar o erro dos estadistas modernos, que importam quaisquer produtos comerciais. Tivemos, assim, o absurdo de uma constituição norte-americana transplantada para o Brasil. E, segundo informação seguríssima que tive — fato característico — autoridades checoslovacas pensaram em transportar para sua pátria a Constituição brasileira. Como se entre os Estados Unidos, a Checoslováquia e o Brasil houvesse o menor traço de semelhança nos princípios evolutivos das nacionalidades e no temperamento e caráter dos respectivos povos!

O absolutismo deslocou o poder real da legítima posição em que o colocaram os princípios de São Tomás de Aquino. Daí um Carlos I de Inglaterra (acima) afirmar que os reis eram “pequenos deuses” que a Providência punha sobre os tronos para representá-La

Havia, na Idade Media, monarquias hereditárias, como a França, a Espanha e a Rússia. Havia também monarquias eletivas, como os Estados Pontifícios, a Polônia e o Santo Império Romano Alemão, que a pena injusta e maliciosa de Voltaire dizia não ser santo, nem império, nem romano, nem alemão.

Ao lado dessas monarquias havia também repúblicas que se governavam de acordo com os princípios democráticos, como as cidades flamengas, ou aristocráticos, como a Veneza dos Doges.

E, estabelecendo ligação entre formas tão diversas, uma única característica constante se notava no direito público da época: a pretensão oficial de respeitar — ao menos em tese — os princípios cristãos de organização político-social.

Todas as formas de governo viviam, portanto, à sombra da Igreja, aprovadas por Ela, e freqüentemente formadas lentamente ao sopro vivificador das próprias autoridades eclesiásticas.

A doutrina tomista sobre as formas de governo

Justificando com a doutrina esta situação de fato, São Tomás de Aquino, o representante mais autorizado do pensamento medieval, nos legou os seguintes princípios, até hoje desposados pela Igreja.

O homem, sociável por natureza, foi criado por Deus com qualidades tais, que sua vida em sociedade só se torna possível mediante a existência de um poder público que governe e coordene para o bem comum as atividades individuais.

Decorre daí que a autoridade existe no Estado por disposição da Vontade divina, e que obedecer à autoridade pública é obedecer indiretamente ao próprio Deus. Nisto, e só nisto, consistem a origem e o caráter divino da autoridade, segundo a doutrina católica.

A escolha, no entanto, dos indivíduos que devem ser investidos das funções da autoridade pode ser processada indiferentemente por transmissão hereditária ou por eletividade. E as funções inerentes à autoridade podem ser acumuladas nas mãos de uma só pessoa, como nas monarquias; de uma classe, como nas aristocracias; ou distribuídas pela coletividade, como nas democracias. Portanto, o caráter divino da autoridade reside na própria autoridade, independentemente de seu modo de transmissão e de exercício. Em uma palavra, é divina a autoridade monárquica, como a democrática ou a aristocrática.

Como, por outro lado, a monarquia, a aristocracia e a democracia apresentam respectivamente vantagens que lhes são peculiares, servem todas à sua finalidade, que é o bem comum. Todas elas são, portanto, legítimas.

O caos de idéias e as condições sociais imprevistas que se seguiram à Revolução Francesa, tornaram delicada e embaraçosa a aplicação dos princípios católicos às situações de fato que iam surgindo, especialmente no tocante às formas de governo (“Juramento da Constituição”, por David)

Eram estes os princípios professados pela inteligência serena e luminosa de São Tomás, em plena Idade Média. E estes princípios encontravam a aquiescência, quer de tratadistas e doutrinadores, quer de homens de Estado, que os concretizavam na estupenda diversidade de formas de governo, que há pouco comentávamos.

Fatos de uma notoriedade incontestável provam, portanto, a neutralidade tradicional da Igreja em relação às diversas formas de governo.

Apoio mútuo entre absolutismo e protestantismo

Irrompido o tufão protestante, que coincidiu com uma crescente centralização das velhas monarquias feudais, começaram a circular novas doutrinas políticas que abstraíam dos princípios da Igreja, quando não os combatiam abertamente.

O que caracterizou em grande parte a queda do mundo medieval foi, na ordem religiosa, a decadência da influência da Igreja, com a irrupção da Reforma; e, na ordem civil, a absorção das aristocracias, em benefício do absolutismo real.

Absolutismo e protestantismo, que nasceram simultaneamente de acontecimentos e erros irmãos, não poderiam deixar de se prestar, daí por diante, mútuo e eficaz apoio no terreno da doutrina, contra a Igreja e a aristocracia, que constituíam os mais sólidos esteios dos aspectos cristãos da organização medieval.

Assim é que, ao bafo insalubre dos autores inspirados pelo protestantismo começaram a germinar doutrinas que deslocavam o poder real da legítima posição em que o colocara o Doutor Angélico, para imaginar uma delegação direta e personalíssima feita por Deus ao soberano, que passava a ser, assim, responsável perante Deus, e só Deus, por seus atos. Tal delegação implicava, praticamente, em uma alienação do poder divino em benefício dos monarcas, isentando-os da vigilância da Igreja e dos freios que, à sua onipotência, impunha a aristocracia.

Para comprová-lo, bastará citar, além de todos os desvarios de um Luís XIV, que se julgava a encarnação onipotente do Estado também onipotente, as características instruções dirigidas pelo protestante Rei Carlos de Inglaterra, vítima de Cromwell, a seu filho, e em que o infortunado monarca declarava que os reis eram pequenos deuses – textual – que a Providência colocava sobre os tronos para a representar. […]

Equilíbrio entre os direitos individuais e os da sociedade

Estava virtualmente rompido o equilíbrio da organização política. E este equilíbrio começou – fato notável – por se romper na ordem religiosa, o que atesta mais uma vez que é a paz religiosa o fundamento verdadeiro e único de toda a paz social.

Uma das características da sociologia católica, e que a Igreja procurou introduzir, tanto quanto possível, na organização medieval, é o perfeito equilíbrio que consegue entre os direitos individuais e os direitos da sociedade. Esta, constituída em benefício do indivíduo, encontra neste toda a sua razão de ser. Longe desta doutrina uma estranha mística do Estado, que pretenderia edificar a felicidade coletiva sobre os escombros da felicidade individual. E, por outro lado, longe também desta doutrina um liberalismo iníquo e absurdo, que pretenderia fundar a paz e a ordem social sobre a vontade, isto é, o capricho livremente expandido dos indivíduos.

Com o absolutismo, rompeu-se o equilíbrio da sociologia católica, extremando-se então duas correntes, cada vez mais acentuadas em suas respectivas orientações. Por um lado, crescia a onipotência do Estado, expressa então na onipotência real, e, por outro lado, surgia um liberalismo anárquico, resultante das doutrinas de Rousseau. E o curioso é notar-se que tais doutrinas, evidentemente ligadas por um nexo íntimo, se conjuravam para operar com mais eficácia a derrocada da organização monárquica. Com a explosão da Revolução Francesa, tais orientações triunfaram simultaneamente […].

Fiel aos seus princípios eternos, a Igreja sempre se manteve imparcial em matéria de formas de governo, fazendo saber entretanto que, no verdadeiro regime democrático, torna-se mais necessária ao povo uma séria formação religiosa, para influir de modo responsável nos destinos da nação (Acima, manifestação da “Action Française

Não faltou a advertência da Igreja

Antes que tais erros se acumulassem, fruto, como vimos, da doutrina protestante e errônea da onipotência real, não faltaram a povos e reis as objurgatórias da Igreja, chamando-os à voz do bom senso e da razão.

Assim se pronuncia Vieira, na sua Arte de Furtar (não pretendemos de modo algum afirmar sua autenticidade, combatida por Solidônio Leite, mas demonstrar que, na época de Vieira, era esse o pensamento da Igreja). Dedicada ao próprio rei D. João IV, dizia: “E se alguém cuidar que só de Deus, e não do povo, recebem os reis o poder, advirta que esse é o erro com que se perdeu a Inglaterra, e abriu a porta às heresias, com que se fez Papa o rei, admitindo que recebia os poderes imediatamente de Deus, como os Sumos Pontífices”.

Bossuet, por seu lado, dizia, depois de fazer argumentações em benefício da legitimidade da república: “As formas de governo foram misturadas da maneira mais diversa, e compuseram vários estados mistos. Vemos em alguns lugares da Escritura a autoridade residir na comunidade”. E Fénélon dizia, sobre o caráter divino e intangível da autoridade: “O que acabamos de dizer não é circunscrito apenas à realeza, como se fôssemos idólatras. A conspiração de Catilina contra o Senado romano não foi menos criminosa que a de Cromwell contra o rei da Inglaterra”. […]

Crise intelectual após a Revolução Francesa

O formidável caos de idéias que se constituiu depois da Revolução Francesa e as condições absolutamente imprevistas em que se apresentava o mundo tornaram muito delicada e por vezes embaraçosa a aplicação dos princípios católicos às situações de fato que iam surgindo. Em torno da Igreja, as paixões humanas teceram uma larga rede de calúnias e de equívocos. E tão densa se tornou tal rede que a mão paternal dos Pontífices, não podendo desemaranhá-la pela persuasão e bondade, teve de cortá-la como o nó górdio de Alexandre, com excomunhões e penalidades.

Seria longo historiar a crise intelectual por que passaram os católicos franceses, com referência ao problema das formas de governo. Para resumir, basta dizer que enquanto alguns católicos se entregavam às mais extravagantes tentativas, procurando conciliar o Catolicismo com o socialismo e o próprio comunismo, outros alarmados pela ação nefasta e anticlerical da república francesa, se apegaram à monarquia, a ponto de declarar que a Igreja só deveria reconhecer como legítima a forma de governo monárquica!

A Igreja, depositária de princípios eternos, não poderia abandonar em caso algum sua neutralidade tradicional. Aconselhou, exortou, doutrinou sem resultados apreciáveis. Daí uma dupla série de crises que, distanciadas entre si pelo tempo, se ligam intimamente pelo significado; em primeiro lugar, a condenação de Lamennais, e depois [a] do Sillon, que pretendiam forçar a Igreja a reconhecer a legitimidade apenas da democracia. E mais tarde a excomunhão da Action Française, que pretendia impor à Igreja a condenação da forma republicana.

Tais fatos demonstram cabalmente a inflexível independência da Santa Sé e sua rigorosa e imparcial neutralidade. […]
Democracia exige maior aplicação dos princípios católicos

A democracia coloca nas mãos do povo o poder público. Assim, pois, exige de todos os cidadãos, além das virtudes individuais e privadas, grande soma de virtudes políticas. A abnegação, o desinteresse, a dedicação pelos princípios que se adotam etc., são indispensáveis para que o cidadão desempenhe convenientemente suas funções políticas. Ora, é incontestável que a mais segura garantia da moralidade se encontra na formação religiosa séria da nação.

Em uma monarquia, seria suficiente que o poder real fosse cristão, para que os perigos do Estado se vissem, ao menos passageiramente, conjurados. Em uma aristocracia, bastaria que fossem cristianizadas as classes dirigentes. Em uma democracia, é necessária a cristianização de todas as classes. De sorte que se conclui que a democracia e a verdadeira república democrática carecem tanto mais de espírito religioso quanto mais generalizam a aplicação dos princípios liberais.

Aliás, as massas têm muito menos perspicácia, cultura e firmeza, do que aristocracias ou monarquias. De sorte que é necessário que elas tenham um grau suficientemente alto de virtudes morais que compense a deficiência das qualidades intelectuais.

Por outro lado, a responsabilidade moral do povo pelos destinos da nação, na democracia, está desacompanhada de qualquer sanção penal ou civil, ao contrário do que pode suceder nas aristocracias e monarquias. A responsabilidade do voto, como observa o liberalíssimo Bryce (La République Americaine, vol. 3, cap. 85), dividida por uma multidão de eleitores, dá a cada qual a noção da impotência de seu voto individual. Daí decorre a ilusão de que comete uma ação pouco ou nada nociva e censurável quem votar de acordo com os seus interesses e relações, e não conforme as necessidades do país. Generalizai esta ilusão, e está patente o perigo, que só se conjura com uma profunda formação religiosa. (Excertos de “A Ordem”, nº 25, março de 1932. Título e subtítulos nossos)(Revista Dr. Plinio, Março/2003, n. 60, p. 21 a 26).

* última foto: A aristocrática Veneza dos Doges, exemplo de uma nação que procurava respeitar os princípios católicos de organização político-social (Cena em Veneza, por Canaletto

 
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