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Plinio Corrêa de Oliveira


Marcantes episódios de uma infância
 
AUTOR: PLINIO CORREA DE OLIVEIRA
 
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A infância de Dª Lucilia foi especialmente iluminada pela figura de seu pai, Dr. Antônio. Este era objeto de seu particular enlevo e veneração. Os desígnios e preferências dele eram lei!

Admiração pelas virtudes paternas

No entusiasmo que nutria pelo pai, a menina não procurava tanto as qualidades naturais, mas sobretudo as virtudes. Bem sabia ela que Dr. Antônio era um excelente advogado, hábil e inteligente conhecedor da teo­ria e prática jurídicas, porém pouco a atraíam suas façanhas profissionais, em comparação com o prestígio moral de que ele gozava.

Dona Lucilia cresceu
admirando
as virtudes
paternas de Dr. Antônio,
seus predicados de chefe
de família modelar
e profunda honestidade moral

Com efeito, quando anos depois lhe faziam alguma pergunta sobre a vida de seu pai, não ressaltava os êxitos nos negócios, mas sim os excepcionais predicados de esposo e chefe de família; especialmente seu amor ao trabalho, a ausência de ambição, a proteção dispensada aos pobres e sua profunda honestidade moral. Esses valores que a pequena Lucilia tanto admirava passaram a compor sua própria concepção da existência: a trama da vida deveria ser tecida com os fios de uma superior dedicação.

Por outro lado, começava ela a discernir o rumo que a humanidade em geral ia tomando, e que se opunha frontalmente a esta visão do mundo. Colocada ante essa nova perspectiva, sua alma juvenil foi-se enriquecendo paulatinamente com as tonalidades lilases do sofrimento.

Exemplo de homem batalhador

O contraste entre o quotidiano do comum dos habitantes de uma cidade na beleza e na vivacidade de suas expansões iniciais, como era Pirassununga, e a elevação de espírito em Dr. Antônio e Dª Gabriela, sua mãe, era discernido por Lucilia naquela idade.

Em uma fotografia de família, seu pai aparece aprumado, externando o sucesso alcançado em sua carreira, mas em seu olhar se entrevê algo de tristeza; uma espécie de decepção por perceber os rumos pouco alvissareiros que o Brasil de então ia tomando. Homem que enfrentava galhardamente a batalha do existir, representava ele um modelo que a opinião pública reconhecia como ideal, mas do qual muitos já se haviam despedido, embora com saudades.

É sob esse prisma que deveremos considerar vários dos episódios que serviram de marco à infância e adolescência de Dª Lucilia.

A última moeda a um mendigo

Ouçamo-la contar um dos fatos que lhe marcaram a existência, iluminando-lhe os passos ao longo de seus 92 anos, como um dos parâmetros da virtude da caridade:

Papai era advogado e, no início, teve de lutar muito para manter a família. No entardecer de certo dia, perguntou a mamãe:

— Sinhara1, a despensa está cheia para nos manter e às crianças, durante os próximos dias?

Mamãe respondeu:

— Sim, está.

— Ainda bem — disse papai — porque só nos resta esta moeda (uma moeda de ouro) e nada mais. Vivamos até acabar a provisão…

Depois do jantar, segundo o antigo costume interiorano, foram à janela para olhar os transeuntes. Viram, então, de longe se aproximar, apoiado numa bengala, um pobre homem. Ao chegar diante da janela, tirou ele o chapéu e pediu uma esmola.

Papai lhe perguntou de que mal sofria.

— Sou tuberculoso — respondeu. Nem sequer ouso chegar perto das pessoas. Preciso comprar um remédio muito caro, sem o qual não vivo. O senhor não me poderia dar alguma coisa? De pouquinho em pouquinho junto o necessário, a tempo de ainda encontrar uma farmácia aberta.

Enquanto falava, o homem estendeu o chapéu à espera de algum auxílio. Papai, voltando-se para mamãe, disse: “Vamos fazer um ato de confiança na Providência?”
Abriu uma bolsinha, pegou a última moeda de ouro e, com pontaria certeira, atirou-a no chapéu do mendigo, acrescentando: “Deus te acompanhe e sejas feliz!”

Radiante de contentamento, o homem se afastou, abençoando papai, o qual, por sua vez, calmo e confiante, comentou com mamãe: “Agora acabou… Não temos mais dinheiro algum, só contamos com Deus”.

Tendo dito isto, entrou em seu escritório para trabalhar, enquanto mamãe veio cuidar de nós, crianças. Bem mais tarde, papai entrou na sala onde estávamos, dizendo a mamãe:

— Deus já teve pena de nós!

— Como? — perguntou ela.

— Acabo de receber um cliente novo, que me trouxe uma causa muito grande e boa. Pedi que adiantasse metade dos honorários. Olhe, pois, aqui está uma sacola cheia de dinheiro.

Não poderia haver algo de mais apropriado do que essa atraente narrativa, para nos introduzir naquele ambiente familiar que ajudou a formar a mentalidade meiga e acolhedora, mas também firme de Dª Lucilia. Penetremos um pouco mais nessa atmosfera, a fim de melhor conhecermos os paradigmas de tão bondosa alma. Uma de suas narrativas preferidas era a triste história de sua tia Heroína.

O rapto de Heroína e o lacrimejante romantismo

Irmã de Dr. Antônio, Heroína era infeliz na casa de seu pai, como não raro ocorre quando os filhos do primeiro casamento convivem com a madrasta. Dr. Antônio, após ter organizado a vida e feito alguma economia, pensou ter chegado o momento de atender às queixas de sua irmã e proporcionar-lhe condições de uma inteira felicidade.

Em combinação com as escravas da casa de seu pai, em São Paulo, planejou secretamente uma ardilosa e aventureira ação. Ele se aproximou da residência paterna, à noite, e após um discreto assobio — sinal convencionado — uma escrava ajudou a mocinha a descer por uma janela. Tendo-a colocado na garupa do cavalo, Dr. Antônio partiu a toda brida rumo a Pirassununga.

Heroína deu-se bastante bem em casa do irmão. Costumava referir-se ao convívio com Dr. Antônio e Dª Gabriela num tom afetuoso e cheio de ternura: “A alma de minha mãe, lá do Céu, me protegeu e me trouxe até aqui…”

Um certo pitoresco romântico, entre inocente e ingênuo, não esteve ausente daquela nova vida em Pirassununga. Assim, por exemplo, na sala de visitas da residência havia
um belo papel de parede com flores estampadas, que constituía especial atrativo para os colibris. Estes, entrando pela janela, imaginavam-se num jardim paradisíaco. Heroína tomou-se de carinho por um pobre e velho beija-flor que — decerto por suas vistas cansadas — se chocou contra o rígido revestimento da parede e caiu desmaiado ao solo. Apanhou-o e pôs-se a tratar dele, dando-lhe água com açúcar. Em determinado momento, a avezinha retomou alento e saiu voando. Heroína
não conteve um comentário: “Oh! como é cruel esta vida! A gente protege, ajuda, e depois ele vai embora! Assim também se passará comigo!”

Esse dito foi mais uma previsão do que um desabafo, pois ela parecia ter herdado da mãe o signo da infelicidade. Nunca quis se casar, vivia numa profunda tristeza e morreu jovem. A pobre moça encarnava os sentimentos — lacrimejantes e tendentes ao fúnebre — da atmosfera romântica do século XIX.

Aspectos da antiga estação ferroviária de Pirassununga

Entremeando comentários à narração desses episódios, Dª Lucilia tinha alegria em ressaltar o alto valor moral demonstrado por Dr. Antônio no relacionamento com sua madrasta. Após o falecimento de Dr. Cândido, embora não se sentisse muito benquisto por ela, acolheu-a com bondade, sustentou-a e inclusive tratou-a com desvelo durante uma doença contagiosa.

A par desses aspectos tristes da vida dos Ribeiro dos Santos em Pirassununga, não faltaram outros, alegres e festivos, como aconteceu por ocasião da visita do Imperador à cidade.

Dom Pedro II em Pirassununga

Em 1878, viajando pela Província de São Paulo, Dr. Pedro II visitou a família Ribeiro dos Santos em Pirassununga. Conduzido por luxuoso trem da Companhia Paulista, na viagem de inauguração do ramal ferroviá­rio, o Imperador desceu na estação provisória, ainda de madeira, onde o esperavam as notabilidades locais.

Dona Teresa Cristina, entretanto, não acompanhou seu imperial esposo, permanecendo no vagão, onde recebeu Dª Gabriela, que levava consigo a pequena Lucilia. Procurando ser amável com a mãe, a Imperatriz disse à menina:

— Minha filha, eu conheci seu avô, foi ele quem me ensinou a dançar.

Com efeito, por ocasião de um baile na Corte, o Dr. Gabriel José Rodrigues dos Santos teve a gentil ousadia de convidá-la para dançar, o que esta nunca fizera. Instantes antes, com jeito e distinção, conseguira que a Imperatriz, defeituosa de um dos pés, aprendesse a dar passos de dança sem que se lhe notasse a incorreção no andar. Dona Teresa Cristina se houve bem e o fato teve o maior sucesso na Corte.

D. Pedro II e Dona Teresa Cristina

Durante o encontro na casa de Dr. Antônio, Dom Pedro II — figura de aspecto patriarcal — trouxe a pequena Lucilia para junto de si e, distraidamente, enquanto conversava, passava a mão entre seus cabelos, desfazendo-lhe um a um os frisados cachos. Percebendo desmanchar-se aos poucos o esmerado penteado, Lucilia deu mostras de querer protestar, mas encontrou — severo e fixo — o olhar de seu pai, a lhe insinuar que nada deveria dizer… (Transcrito, com adaptações, da obra “Dona Lucilia”, de Mons. João S. Clá Dias) – Revista Dr. Plinio, Novembro/2005, n. 92, p. 6 a 9).

1) Tratamento dado pelos escravos à sua senhora. Dr. Antônio o utilizava também para, de modo afetuoso, se dirigir a Dona Gabriela.

 
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