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Plinio Corrêa de Oliveira


O panorama católico na São Paulo de 1928 – II
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 15/10/2019
 
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Conheçamos mais alguns aspectos do âmbito social em que vivia Dr. Plinio, prestes a iniciar seu apostolado. Desta vez, ele nos apresenta uma análise da sociedade de então em face da Igreja e de seus ministros, bem como do papel das almas verdadeiramente devotas às quais consagrava imenso apreço. Acompanhemo-lo nesta “viagem” ao passado, e melhor entenderemos sua extraordinária gesta em defesa da Santa Igreja e da Civilização Cristã.

Como descrevi em ocasião anterior, a maioria dos homens da camada social mais alta da São Paulo de 28 não praticava a Religião. Diziam-se ateus e procuravam evitar qualquer manifestação de apreço à vida de piedade.

Por outro lado, boa parte deles era honesta em seus negócios. Se alguém os chamasse de ladrões ou algo semelhante, reagiam com a força física. E naquele tempo empregava-se muito mais o uso das bofetadas e bengaladas, como vagos restos do duelo que chegou a existir no Brasil, embora à nossa maneira nacional…

Vestígios de Fé sob a aparência anti-católica

Cumpre mencionar, aliás, que esses indivíduos se apresentavam com um tônus peculiar aos de sua classe: porte ereto, decididos, os mais velhos usando bigodes retilíneos ou à la Kaiser, com as pontas viradas para cima. Os cabelos primorosamente penteados com fixadores franceses, norte-americanos ou argentinos — era famoso um produto portenho chamado Gomina —, formando uma espécie de capacete lustroso sobre a cabeça. Poucos dividiam o cabelo ao meio, muitos o penteavam inteiramente para trás, outros faziam uma risca de lado. Em qualquer desses estilos, o cabelo era sempre rigorosamente engominado.

Essa forma de se cuidar estava de acordo com os atores de cinema hollywoodianos, os quais ditavam a moda no tempo. E o perfil dos homens era bastante varonil, mesmo dos mais moços, que ora usavam bigode, ora não, conforme as tendências em voga. Estas, é claro, variavam: houve o período dos bigodes pequenos e ralos, horrendos, estendendo-se ao longo do beiço superior, sem subir até o nariz; já segundo costume diverso, o bigode era cultivado como um tufo, algo à la Hitler, outras vezes à la Adolphe Menjou (artista do cinema americano que bancava o aristocrata francês decadente), com um tufo grande e pontas compridas, considerado distinto.

Entretanto, analisando as fisionomias de certos homens assim, eu notava que eles se faziam de mais anticatólicos do que realmente eram. No fundo, conservavam resquícios de Fé. Muitos deles se envergonhavam e até sentiam horror da sua má conduta. Porém, não ousavam enfrentar a exigência absoluta do ambiente social de que o homem fosse impuro, sob pena de ser tido por efeminado. Além disso, eles caíam na vida imoral e se habituavam. Para vencer um mau hábito de dez, vinte, trinta anos, sem a oração e o auxílio da graça não é possível. Ora, eles não rezavam nem aproveitavam as graças devido à sua debilíssima generosidade. Resultado, iam rolando…

Retratos de uma época: homens decididos, com bigodes “a la” kaiser…

Na sua covardia espiritual, esses homens riam do puro, mas eu percebia que, com o escárnio nos lábios, havia a inveja no olhar, como se pensassem: “Se eu pudesse ser como aquele que é puro…!”

Os padres: respeitados, mas isolados

Nessa sociedade orientada por tais costumes, como era visto o padre?

Quando se encontrava um sacerdote, tratavam-no com respeito. As vocações, em geral, provinham do meio operário e da camada menos elevada da burguesia. Para algumas dessas famílias era bonito ter um filho padre, pois este se tornava mais importante do que um simples operário, podendo até chegar a ser Bispo. Era, mais ou menos, como para um rapaz de classe alta tornar-se cardeal. Julgavam feio ser padre, mas o cardinalato lhes sorria como uma posição de tanta influência que poderia valer a pena.

Assim, excetuando os ambientes onde surgiam muitas vocações, o estado sacerdotal não desfrutava de grande prestígio. Todos os que conheciam um padre, cumprimentavam-no, mas ninguém o visitava nem mantinha relações com ele, a não ser de modo discreto, quando a isto os obrigava determinados compromissos sociais.

O “beatério”

… sacerdotes, respeitados, mas isolados

Agora, já no âmbito dos fiéis, em cada paróquia havia as chamadas “beatas”. Eram, em geral, senhoras de nível social mediano. Nas paróquias de classe mais alta, eram as criadas, com freqüência mulheres de cor. Essas beatas assistiam à Missa cedo, confessavam-se assiduamente e comungavam todos os dias. Rezavam muito, não escondiam sua imensa admiração pelo padre, e constituíam o bloco que marcava presença nas cerimônias religiosas. De maneira que, excetuando a Missa de Domingo, , a Via-Sacra à tarde, a bênção do Santíssimo Sacramento e o mês de Maria, quem movimentava a vida nas igrejas eram as “beatas”.

Essas devotas, porém, ardiam como pimenta dentro das respectivas famílias, porque chegavam em suas residências e discutiam assuntos de moral e religião. Além disso, o modo de elas serem e viverem representava uma explosão dentro da casa, pois ninguém concordava com elas, relegando-as a uma posição de quase isolamento no próprio lar. Às vezes elas venciam o ambiente e acabavam levando para a igreja o marido, as filhas, uma cunhada, e até os filhos, os quais tomavam um certo ar de sacristãos, saudavelmente salpicados pela influência materna.

Contudo, o que mais se via era a gente caçoar das “beatas”. E estas, por uma coincidência que não analiso aqui, eram em geral mal apessoadas, feias, esquisitas, não raro diferentes de todo o mundo. Circunstância que não me impedia de gostar muito dessas senhoras e de elas gostarem de mim.

Lembro-me ainda de uma beata famosa, baixinha, mirradinha, com um guarda-chuva de cabo de latão sempre sob o braço, qualquer que fosse o clima, carregando uma cesta ou trouxa. Ela usava roupas escuras, e tinha ligeiramente a aparência de espanhola: olhos pretos que reluziam, penetrantes, os quais por modéstia ela mantinha baixos, mas quando se levantavam, iam certeiro a determinado ponto. Entretanto, causava pena observá-la, pois trazia constantemente um véu azul ocultando-lhe o resto da face. Percebia-se que não tinha nariz; ou nascera sem ele ou o perdera em virtude de algum acidente, uma operação, etc. Então, usava aquela faixa com segurança, mas ao mesmo tempo era tão infeliz, tão isolada, tão pobrezinha e abatida pelos ventos opostos, que eu tinha vontade de lhe dizer: “A senhora sabe que a considero muito e tenho muita simpatia pela senhora?”

Entreolhávamo-nos, e o meu olhar comunicava algo a ela bem como a uma série de outras beatas das quais eu tinha pena, pois eram sofridas mas fiéis. Dessas que a Revolução não quisera arrastar e que, sem perceberem, realizavam um pouco de Contra-Revolução empoeirada. Trocávamos olhares, e elas viam na consideração de um moço normal, bem constituído, um apoio que nunca recebiam de ninguém procedente da minha classe social.

Esse era um dos modos empregados por mim para soprar toda e qualquer forma de apoio à Contra-Revolução.

Eu pensava: “Não tem conversa. Elas estão conformes à lei de Deus, são devotas de Nossa Senhora e filhas da Igreja. Contrariam a Revolução a ponto de esta zombar delas. Pois vou lhes dirigir um sorriso, a fim de ajudá-las a não ceder e continuarem assim.

“Tudo quanto estiver ao meu alcance, ainda que me custe o maior esforço e redunde num mínimo de prejuízo ao mal, isso eu farei, incansavelmente!”

A “Guarda Imperial” da Igreja

o “beatério”, Guarda Imperial da Igreja

O conjunto dessas senhoras era chamado de “beatério”. Pelo próprio som da palavra e o modo de pronunciá-la, percebe-se que vinha carregado de desprezo ou admiração. “Beatério” parece dizer “beatalhada”. Pois esse “beatério” enchia os templos sagrados nos dias de novenas e demais atos litúrgicos. E a Igreja Católica, a bem dizer, funcionava na base do “beatério”.

Para me valer de uma comparação ousada, essas devotas correspondiam ao que seria a Guarda Imperial para o exército de Napoleão. Contta-se que em Waterloo, a grande batalha em que este General foi esmagado por Wellington, a Guarda recebeu ordem de se render, senão seria dizimada. E os soldados franceses responderam: “A Guarda morre mas não se rende”. Então receberam rajadas e rajadas, morrendo um a um.

Aquelas mulheres eram, pois, a Guarda da Igreja Católica. Elas mantinham a vida diária nos templos, que só por causa da presença delas não permaneciam fechados a semana inteira. Elas animavam os pequenos e grandes eventos na paróquia, na diocese, as reuniões nas sedes das associações religiosas, as quermesses, as festas de aniversário do Vigário, a promoção deste a Cônego, a Monsenhor ou a Bispo, etc.

Podia-se fazer idéia de como era um “beatério” ao se observar uma procissão, sobretudo a de Corpus Christi que percorria o centro da cidade, saindo da Catedral, passando pelas ruas adjacentes e retornando àquela. Do alto da escadaria da igreja ainda em construção, o Arcebispo D. Duarte Leopoldo dava a bênção do Santíssimo Sacramento. O largo da Sé se enchia dos “beatérios” da cidade inteira e estes formavam o desfile. Então, aquelas intermináveis fileiras de velhas senhoras, com o Apostolado de Oração, a Liga de Santa Edwiges, a Irmandade tal, a Confraria tal, as Filhas de Maria, novo rebento do “beatério” que nascia, todas cantando e envolvendo com suas vozes as de alguns poucos homens — os “beatos” — que as acompanhavam.

Temos assim uma idéia do mundo onde era preciso começar a lutar pela Igreja. E eu levava comigo a seguinte impressão: “Toda essa situação de reticência montada em torno dos padres, o isolamento em que se encontram, existe porque não foi ensinado à gente católica enfrentar seus adversários. Eu vejo que a Revolução é mentirosa, arma castelos imensos, porém no fundo conta apenas com três ou quatro paus para sustentá-los. Portanto, se essa gente souber onde está o pau e meter o pontapé, a armação toda treme ou cai. Porque a boa senhora simpatiza, o senhor que leva remorsos na alma fala mal, mas simpatiza também; aquele que se diz ateu e incrédulo, no íntimo da alma crê. E se eles todos virem a coragem de um, muitos se armarão igualmente de bravura.”

A bem da verdade devo dizer que, quando entrei na Congregação de Santa Cecília, esse quadro principiava a se alterar um pouco pela presença das Congregações Marianas em algumas paróquias. A Revolução passou a notar que em algo ela começava a ser enfrentada, embora fingisse não percebê-lo. Era preciso dar a minha contribuição para que esse élan, já iniciado, se tornasse mais forte e obrigasse o “monstro” a ver de frente que surgira em seu caminho um contendor à altura dele, capaz de fazê-lo recuar, capaz de vencê-lo. (Revista Dr. Plinio, Agosto/2004, n. 77, p. 20 a 25).

* última imagem: , Dr. Plinio quando jovem Congregado Mariano; 

 
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