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Plinio Corrêa de Oliveira


Onde a alegria autêntica?
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 17/09/2019
 
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A incompreensão de certa mentalidade moderna em relação ao sofrimento e o mito de uma felicidade granjeada no gozo da vida são causas da ojeriza de muitos para com a vocação religiosa. Dentro desta, porém, quando correspondida na sua plenitude, encontra-se a verdadeira alegria.

Um dos maiores obstáculos para as almas atenderem ao chamado religioso é a ilusão de que a existência no mundo traz felicidade.

Não raro, ao considerarmos determinadas pessoas que vivem no século, estas nos parecem senhoras de um bem-estar interior e de uma tal felicidade, que somos colhidos por uma espécie de tristeza de sermos nós mesmos, e ficamos com vontade de ser elas.

Aves que causam a sensação de bem-estar

Podemos formar alguma ideia desse estado de espírito se analisarmos a impressão que se tem quando observamos certos tipos de aves. Todos já ouvimos falar da célebre Praça de São Marcos, em Veneza. É um dos lugares mais bonitos do globo, com sua maravilhosa Basílica consagrada ao Evangelista, além do famoso palácio dos Doges, às margens do “Gran Canale” sulcado pelas poéticas gôndolas… Simplesmente, uma fábula!

Ora, os turistas julgam que em Veneza se desfruta de uma forma de prazer especial, bem diverso daquele experimentado nas ruas de uma megalópolis moderna. Ao lado desse sentimento, outros tocam a alma dos viajantes na esplendorosa Rainha do Adriático. Por exemplo, ao se encantarem com os incontáveis pombos gordos que enchem a Praça de São Marcos, ávidos das migalhas de pão que lhes jogam. Vendo-os acompanhar o esvoaçar ligeiro daquelas aves bem-nutridas, não é difícil perceber o que vai na mente dessas pessoas. Concebem elas a ideia de que o pombo, podendo se elevar e cortar os ares com aquela facilidade, sem itinerário fixo e ao sabor da fantasia, goza de uma alegria interior meio indefinível. Ao passo que eles, turistas, sentem-se como que colados no chão, com dificuldade inclusive de dar um simples pulo. E acabam ficando com pesar de não serem pombos.

O curioso é que, em alguns, este pesar se reflete num impulso de querer apanhar o pombo, com o intuito de, pegando-o, absorver um pouco daquele cobiçado bem-estar discernido no pássaro.

Outros espécimes da fauna alada também causam essa impressão de felicidade interior. Por exemplo, o colibri, com seu vôo ágil, aquela deliciosa sucção do néctar da planta, o colorido furta-cor das suas asas, espargindo vários resplendores. Creio que se fosse oferecido aos homens de se tornarem colibris por dez minutos e poderem voar como eles, muitos aceitariam. E quem sabe, depois da experiência, não quereriam deixar de ser beija-flores…

Eu mesmo, quando menino, comprazia-me em admirar os cisnes, porque o contemplá-los dava a ilusão de ser possível viver sempre numa espécie de bem-estar e de delícia.

Naquele tempo, o Jardim da Luz era frequentado por muitas crianças, conduzidas pelas suas governantas para lá brincarem e respirar o ar puro. Não me atraíam as correrias e folguedos, e sim o ficar olhando para um tanque onde havia encantadoras casinhas de porcelana, das quais saíam graciosos cisnes a deslizarem sobre a líquida superfície. No seu flutuar majestoso, às vezes moviam o pescoço para trás e tomavam uns ares de superioridade em relação às águas que me fazia pensar: “Como deve ser gostoso ter prestígio!” 

Outras vezes, pelo contrário, fixavam o olhar em algo, e eu notava neles uma sensação de apetite: tinham visto um bichinho qualquer, imediatamente caçado e deglutido. Eu pensava: “Mas é interessante nadar assim, pegar um petiscozinho e comer… Como deve ser gostoso!”

Depois o cisne continuava se deslocando sobre aquela bacia de água fresca, cristalina, bonita, e ele sempre branco, perfeito, dominando seu ambiente sem fazer esforço.

O mundanismo

Sentimentos análogos aos descritos acima nos movem quando olhamos para certas pessoas que se nos afiguram portadoras de um grande bem-estar, por onde tudo lhes “dá certo”, tudo lhes é agradável, marcadas pelo que em linguagem comum se chama de “sorte”.

Elas vão a um lugar e todos as cercam, procurando sua conversa. Dizem qualquer coisa e suas palavras caem sempre bem. Fazem uma amabilidade, e quem as ouve fica “derretidíssimo”. Cometem uma gafe e ninguém percebe.

Quando tais pessoas constituem a classe recém-enriquecida de uma cidade, dão-nos a impressão de terem adquirido dinheiro facilmente, tudo lhes corre do melhor modo possível, são alegres, saudáveis e bem dispostas.

O desejo de entrar nesse meio onde se leva uma vida deleitosa, repassada de alegria, não só pelo dinheiro, mas por todo um conjunto de circunstâncias, constitui o mundanismo. Este desejo é acompanhado em geral da ideia de que se aquelas pessoas forem imitadas, como por uma espécie de contágio a felicidade delas passará para os que as imitam. Em grande medida, a moda é filha dessa vontade de sentir o prazer e o prestígio de viver na pele do outro em que se espelha. Ficar de fora do barco da moda significa ser triste, pesadão, e ter a vida dura por não conseguir ser igual aos “felizes”.

O mais estranhável, o mais surpreendente é a ideia generalizada de que os mais distantes dessa barcarola da felicidade são os católicos praticantes. Porque estes estão cheios de reflexões, de princípios, de regras: coisas sérias que tornam a vida presente eivada de preocupações, e dão ao indivíduo um perfil fisionômico oposto aos da embarcação da alegria.

Esta ideia nem sempre vem expressa com essa clareza, sendo o mais das vezes insinuada e sussurrada nos ambientes modernos.

Que há de autêntico na felicidade mundana?

Façamos, então, uma análise corajosa do tema.

Imaginemos um dia quente. Dois ou três religiosos saem de seu convento, vestidos com hábito de lã. Tiveram de pedir licença ao superior, concedida depois de estipulado o tempo que poderiam ficar fora e o que lhes era permitido fazer, sob a determinação de caminharem em silêncio pelas ruas. 

Quem os vê passar, com a seriedade e a austera compostura de seu caminhar, não pode evitar a ideia do dever que aqueles estão cumprindo e da lei a que estão sujeitos. Percebe assim, que a vida religiosa não é fácil. Ora, posto estar o conceito de vida fácil no cerne da noção mundana de felicidade, em geral quem observa esses religiosos tem a tentação de pensar que a existência do católico é infeliz.

Para desfazer essa falsa noção, uma pergunta se impõe: que há de real na impressão de felicidade transmitida pelas pessoas bem-sucedidas no mundo?

A resposta se prende à incontestável verdade de que essas pessoas, aparentemente detentoras de um bem-estar perfeito, não escapam ao grave princípio que preside e orienta a existência de todos os homens. Com efeito, estamos na Terra pela culpa de Adão e Eva, e todos nós, com exceção da Virgem Maria concebida sem a mancha original, expiamos aqui o pecado de nossos primeiros pais. Vivemos neste mundo como num degredo, e o pior exílio não é a própria terra, mas o interior da pele de cada um.

Assim, as pessoas mais bem aquinhoadas que nos dão a impressão de possuírem uma imensa felicidade interior, iludem-nos e se iludem, porque essa não é a verdade. Nós carregamos o peso do nosso próprio corpo, um mal-estar indefinido presente meio no espírito, meio na carne, em suma, o “pondus diei et aestus” — o peso do dia e do calor — de que fala Nosso Senhor no Evangelho (Mt 20,12).

Eu já privei com pessoas que me transmitiam essa sensação de não terem pecado original, e cuja vida era uma perpétua delícia. Quanta ilusão! Vi-as em momentos de melancolia negra. E, ou a minha experiência — grande, em razão dos meus avançados anos — me engana muito, ou esses indivíduos “felizardos” são os mais propensos a acessos de violenta depressão, horas em que acham tudo inútil e errado. Se nessas ocasiões dissermos a um deles: “Mas você leva uma vida tão boa!”, a resposta será o silêncio, como quem diz: “Você não entendeu nada, foi na onda. Mas eu, que estou do lado de cá da onda, compreendo que ela não corresponde às aparências. A vida que levo é sem graça.”

A felicidade da vocação religiosa

Ora, qual é a reação de uma pessoa atolada nessas frustrações e que vê, por exemplo, um dos religiosos de que falamos acima?

Perceberá, difuso na alma e no corpo dele, o gáudio da pureza que, esta sim, dá ao impuro a impressão de que o casto é um cisne. Nota, também, que o religioso é uma pessoa imbuída de Fé, raciocina e tira conclusões que orientam acertadamente sua existência. E por isso, ostenta sem pejo a vocação que abraçou, como se afirmasse aos olhos do mundo:

“Eu tomei posição perante a vida. Mais ainda. A vida é dura, mas tenho coragem de aguentá-la. Ela lhe parece mais árdua do que é, porque você não tem força de vontade. Sem dúvida, o esforço é um sofrimento. Porém, é maior a felicidade de se cumprir o dever, de sentir meu corpo e minha alma em ordem, de saber que minha vontade e meu raciocínio são retos, e minha consciência não me acusa de nada. Os anjos, e o próprio Deus Nosso Senhor, podem olhar para dentro de mim! Encontrarão faltas, é verdade, pois o justo peca sete vezes ao dia. Mas, acredito bem, faltas veniais que Ele perdoa com sorriso, concedendo-me depois graças ainda mais abundantes.”

Quem não fez a comparação entre as duas situações aqui expostas, não pode compreender quanta felicidade — em meio aos padecimentos inerentes à nossa condição de degredados filhos de Eva — a vocação religiosa traz consigo.

Claro, o quotidiano num convento apresenta também suas provações. Às vezes o religioso é incompreendido, mal-interpretado, não é apreciado no que faz e não se encaixa no conjunto. Isso é inevitável, pois um convento não é um consulado ou embaixada do Paraíso nesta Terra. Portanto, sofre-se no estado religioso. E não raro, tem-se grandes sofrimentos, pois ali onde mais se esperam compreensão e afeto, acontecem as coisas mais desconcertantes.

Na verdade, Deus dispôs que houvessem dores e aflições em todo lugar do mundo. A diferença é que na vida religiosa se ensina a suportá-los de maneira virtuosa, e a carregar com ânimo a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Das garras do mundo para o afago do carmelo

Encerro, evocando a história de uma bela conversão.

No período entre as duas grandes guerras havia na França uma célebre atriz e cantora. Extremamente bonita, vivia ela endeusada por todos, no pináculo da vida social de Paris e, portanto, no coração da vida mundana da época.

Um belo dia, essa atriz causa um pasmo enorme aos seus conhecidos, comunicando-lhes sua decisão de abandonar o teatro para se fazer carmelita.

Naturalmente, indagaram-lhe sobre como havia tomado essa dramática resolução. Como resposta, ela deu as razões convenientes: desejava servir a Deus e não a si própria, e também expiar pelos pecados dela e dos outros. De fato, ela se tornou uma muito boa religiosa.

Porém, ainda perplexos e sem conseguir compreender aquela reviravolta, os amigos queriam saber como, do centro dos prazeres que irrigavam sua vida, ela pôde pensar em se recolher para sempre entre as paredes de um mosteiro.

Respondeu ela: “É muito simples. O fundo de meu apartamento em Paris dá para o convento das carmelitas. Pela regra, elas têm suas conversas recreativas no claustro, aberto às minhas vistas. Quando elas riem, suas risadas soam com um tal timbre de prata, que eu compreendi haver alguma graça especial de Deus ali. E que, embora aquelas virgens levem uma vida muito dura, nelas existe a felicidade possível de se alcançar nesta Terra.”

Essa alegria não estava nas ilusões do mundo. Encontrava-se no meio dos espinhos do Carmelo… (Revista Dr. Plinio, Janeiro/2004, n. 70, pp. 14 a 17).

* Penúltima foto: “A felicidade não estava nas ilusões do mundo, mas em meio aos espinhos da vida religiosa” Santa Teresinha do Menino Jesus (no centro) e outras Irmãs do Carmelo de Lisieux

 
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