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Plinio Corrêa de Oliveira


“Porque as tuas setas se me cravaram…”
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 08/10/2019
 
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Para além da terrível situação de um pobre pecador, o Salmo 37 exprime as dores de alma e de corpo sofridas por nosso Redentor Divino. Apesar de ser o Cordeiro Inocente, foi Ele tratado como um criminoso, pois tomou sobre Si todas as nossas iniqüidades. Com os olhos postos nessa verdade pungente, Dr. Plinio conclui seus belos e piedosos comentários àquele texto sagrado.

Passemos agora a considerar os diversos aspectos desse Salmo, inclusive o da graça literária encerrada em suas palavras.

“O Rei David em oração” Iluminura das “Ricas horas do Duque de Berry”

A cólera divina se abate sobre o pecador

Senhor, não me repreendas no teu furor, nem me castigues na tua ira.

Observemos o pensamento contido nesse versículo: “Senhor, Tu estás carregado de ira e furor contra mim, mas, por favor, não me repreendas, nem me castigues ainda mais”. O que quer dizer: “Estou quase sem poder agüentar os castigos que Tu me infliges. Por favor, limita-os, porque não estou conseguindo suportá-los”.

Refere-se a um pecador em concreto, mas também ao Redentor, no Horto da Oliveiras, por exemplo.

Porque as tuas setas se me cravaram, e assentaste sobre mim a tua mão.

Veja-se a beleza da expressão. Para o homem muito trabalhado por dores que reza esse Salmo, aplica-se a fórmula “as tuas setas se me cravaram”. É um modo bonito de se exprimir em português. Quanto a Nosso Senhor, pode-se dizer: Deus do alto do Céu atirou setas sobre Ele, ou mandou que os Anjos o fizessem. Elas se cravaram n’Ele, cobrindo-o, ocasionando sofrimentos terríveis.

… e assentaste sobre mim a tua mão.

É a mão vingadora, inexorável de Deus infinitamente justo, que castiga os pecados: pan! Trata-se de um pecador individual que diz: “Estou sofrendo, pelo menos na minha consciência, dores atrozes, mas preciso suportá-las e acabou-se”. Certa vez tive a oportunidade de ler a história de um assassino, cujo crime foi punido dessa maneira: todos os dias lhe aparecia a figura de sua vítima olhando para ele. O homicida acabou ficando louco. Quer dizer, a tortura moral de quem não quer se arrepender de suas perversidades pode levar até a loucura.

Não há parte sã na minha carne, por causa da tua ira; não há paz nos meus ossos à vista dos meus pecados.

Ou seja, do alto da cabeça até a planta dos pés ele não é senão dor, senão manifestação da cólera de Deus, apresentada aqui, novamente, de um modo muito bonito. O pecador padece em todo o seu corpo, porque cometeu faltas que envolveram e arrastaram sua alma para o reino tenebroso do pecado mortal. Por isso, Deus, cheio de ira, fulminou-o e sua dor é tão profunda que atinge o cerne de seu organismo.

Essa situação não lembra a de Cristo Redentor que sofreu até nos seus ossos, em razão dos pecados dos homens? E não se compreende como é horrível o fato de pecarmos e não nos arrependermos, quando vemos que a nossa redenção custou todo esse preço? Que dureza de alma não manifestamos com essa atitude?

Imagine-se que, para o bem de um amigo, alguém consinta em que lhe cortem o dedo. Essa pessoa passará a vida inteira esperando manifestações de agradecimentos daquele amigo, e este, se tiver um pouco de vergonha, julgar-se-á obrigado a dar essa prova de gratidão ao seu benfeitor. Ora, Nosso Senhor fez incomparavelmente mais por nós, sacrificando-se por inteiro na cruz. Porém, não nos incomodamos: “O que importa isso? Eu quero é cometer outro pecado…”

Contudo, essas atitudes más têm a sua paga. Donde a justa cólera de Deus.

Alma apodrecida pelo pecado

Porque as minhas iniquidades se elevaram acima da minha cabeça, e como uma carga pesada me oprimiram.

A formulação está muito clara e bonita. “Minhas iniquidades”. Por um matiz da língua portuguesa, é muito mais expressivo do mal que há na falta chamá-la de iniquidade do que simplesmente de pecado. A meu ver, o som da primeira palavra apresenta melhor o que há de desvario, de infâmia, de loucura no delito grave cometido, do que a segunda.

Então o Salmista se declara como um homem que submergiu, está no fundo do mar onde não pode respirar e o peso todo do oceano está sobre ele. Que mar? O de pecados. É um modo de alta significação, eloquente, de um pecador reconhecer sua situação. Vê-se pelo uso dessas palavras que esse homem sofre realmente e seu coração sangra. É um espírito contrito e humilhado.

Apodreceram e corromperam-se as minhas chagas, por causa da minha loucura.

O pecado dele é uma loucura, e por esse motivo sua alma ficou toda podre. Então se emprega uma metáfora: “apodreceram e corromperam-se as minhas chagas, por causa da minha loucura”.

Ele é um louco e também leproso. As chagas que cobrem seu corpo se apodreceram. Não pode haver algo mais significativo do que um homem coberto de chagas, todas apodrecidas. E a razão dessa doença espantosa é a loucura dos homens.

Há enfermidades que apodrecem o corpo. Outras fazem desaparecer todos os elementos que representam uma defesa contra a doença, deixando o indivíduo sem proteção orgânica nenhuma. Por isso ele morre, e não porque o mal físico seja muito intenso. Um simples defluxo o leva à sepultura. Nele não existe mais a luta da saúde contra a moléstia, que ainda pode haver mesmo num corpo muito envelhecido. Quando o organismo chega a esse ponto, pode-se dizer que está inteiramente podre.

No caso, o pecador apodreceu por causa da loucura dele. 

Desprezo e ilusões

Tornei-me miserável e continuamente todo encurvado; todo o dia andava oprimido de tristeza.

Note-se a descrição terrível: “Tornei-me miserável e continuamente todo encurvado”. Quer dizer, o seu corpo nunca consegue se colocar na posição ereta.

Então, pode-se imaginar um homem andando pelas ruas, usando uma bengala para se apoiar, e seus conhecidos dizendo: “Este é o fulano que, na praça pública, no banco onde se sentavam os homens importantes, ocupava um lugar de destaque, e mal se dignava em nos cumprimentar, deitando sobre nós um olhar de desprezo enquanto ele brilhava com sua pompa. Agora está ele ali, nós passamos e não o olhamos Ele procura nos cumprimentar, mendigar um olhar de compaixão, mas, de nossa parte, só encontra o menosprezo. Porque, quando era feliz, ele nos rechaçou, e agora chegou o dia de sua desgraça, que é a nossa felicidade. Nós pagamos desprezo por desprezo, e escarramos sobre ele quando o encontramos.”

É uma situação pungente invocada dessa maneira e que exprime o pensamento do salmista.

Porque as minhas entranhas estão cheias de ilusões…

Se tomarmos o termo “ilusão” no sentido do vocabulário corrente, compreende-se o significado desse versículo. Há almas que nutrem constantemente a ideia de uma realidade sempre satisfatória, tudo lhes parece bem e assim permanecerá. São otimistas sistemáticas contra todo bom senso.

… e não há parte alguma sã na minha carne.

Aqui se repete a ideia de que a enfermidade foi levada até o fim. Por mais doente que seja, o homem freqüentemente conserva alguma parte de seu corpo ainda sã. Por exemplo, em seu rosto não há chagas, ou pode movimentar suas mãos para pegar um remédio à cabeceira da cama, ou, coisa imensamente melhor, fazer o Nome do Pai no momento da morte. Enfim, algo nele ainda possui uma certa ordem, está saudável.

Mas nesse enfermo, não. Nada nele está são, nada mais se movimenta. Essa situação nos faz lembrar de uma doença terrível, pela qual a pessoa afetada se torna muda e paralítica, perpetuamente deitada na cama, com dificuldade até em virar os olhos de um lado para outro. Está paralisada para sempre, como que morta. Seus parentes e amigos lhe fazem agrados e ela não pode manifestar a menor gratidão. Não se sabe se ela está conhecendo a pessoa que a afaga, nem sequer se aquela carícia compraz ou lhe dói, porque se ignora o que se passa dentro daquele corpo.

Às vezes uma doença semelhante pode durar décadas. São infortúnios assim que este Salmo evoca, para mostrar o castigo de Deus e a situação do pecador.

Estou aflito e grandemente abatido; o gemido do meu coração arranca-me rugidos.

É uma espécie de epílogo. Por tudo quanto contou, ele está na aflição, e grandemente abatido. Agora, a conclusão:“O gemido do meu coração arranca-me rugidos”.

Ele ruge de ódio e de indignação contra a causa de seu mal, o pecado que o levou a essa situação. “Arranca-me rugidos”: a expressão é muito bonita, exprimindo a idéia de um homem reduzido ao último estado de sofrimento e que no interior de sua alma como que ruge de dor.

Ó Senhor, bem vês todos os meus desejos, e o meu gemido não Te é oculto.

Quer dizer: “Ó Deus, eu Vos conto tudo isto, mas sei que o vedes perfeitamente. Meu gemido não Vos é alheio porque não ignorais nada e sabeis tudo. Não há um soluçar de minha alma que não se faça ouvir pelo vosso coração. Esse sou eu na vossa presença.”

Paralelismo com a situação do Redentor

O meu coração está conturbado, a minha força desampara-me; e a própria luz dos meus olhos já não está comigo.

Refere-se à perturbação da alma, pois o coração é um símbolo. Pode-se dizer que o coração está conturbado quando palpita morbidamente diante de uma situação. Mas “coração conturbado” é, sobretudo, um símbolo da alma atribulada por não entender o que se passa com ela.

… a minha força desampara-me, e a própria luz dos meus olhos já não está comigo.

As energias estão se esvaindo, e o pecador quase não têm meios de resistir. Ele vai perdendo a própria vista. É o declínio de todo o organismo e também de todas as forças da alma.

Os meus amigos e os meus íntimos avançaram, e puseram-se contra mim.

Quer dizer, aqueles que eram os seus aliados, amigos e íntimos, deram passos hostis em direção a ele. Mais ainda. Começaram a difamá-lo e a atacá-lo. É uma forma de dor até então não mencionada no Salmo.

E os meus parentes puseram-se ao longe. E os que buscavam a minha vida usavam de violência.

Seus próprios parentes o abandonaram, “e os que buscavam a sua vida usavam de violência”. Tem-se a impressão de que os amigos dele procuravam dar-lhe vida, ajudar sua saúde, etc., mas em certo momento começaram a usar de violência contra ele. Como não serve para mais nada, desprezam-no: “vai embora, molambo!”

E os que me procuravam males falaram coisas vãs, e todo o dia maquinavam enganos.

Portanto, difundem infâmias contra ele. É uma descrição típica da trama da calúnia. Além de todos os sofrimentos físicos, ainda havia gente que fazia o mal contra ele, o caluniava e todos os dias arquitetavam novas mentiras a seu respeito, para pô-las em circulação. De maneira que ele estava como um leproso abandonado de todos.

Não é a situação de Nosso Senhor? Os dois apóstolos, parentes d’Ele, não O abandonaram? E os seus íntimos não O deixaram só? Os que O viram, por exemplo, aclamado no Domingo de Ramos, O renegaram, chegando a pedir que Barrabás, o monstro, fosse solto e Ele, crucificado.

Mas eu, como um surdo, não ouvia; e como um mudo não abria a boca.

Ou seja, o pecador estava tão abandonado e isolado que julgava melhor nem se defender.

Passou-se o mesmo com Nosso Senhor, que acabou não se defendendo, permitindo que tudo dissessem d’Ele.

E tornei-me como um homem que não ouve, e que não tem na boca palavras com que replicar.

Uma vez mais, não lembra Nosso Senhor?

Do fundo do abismo, a confiança em Deus

Porque em Ti, Senhor, esperei; tu me ouvirás, Senhor Deus meu.

É a descrição da desgraça que chegou ao auge. Ele está a ponto de perguntar: “Meu Deus, o que virá ainda? Nesse momento, ele entoa um cântico de esperança e de louvor. É próprio da confiança. Do profundo abismo da desgraça se levanta um hino: “Tu me ouvirás, ó meu Deus”. É mais ou menos como a ressurreição depois da morte.

Porque disse: nunca triunfem de mim os meus inimigos, eles que, tendo visto os meus pés vacilantes, falaram insolentemente de mim.

Quando ele andava todo encurvado pelas ruas, seus inimigos viam que até seus pés vacilavam. Ele podia cair ao chão de um momento para outro e ser liquidado aos pontapés. Além de ver isto, seus inimigos falavam contra ele.

Porque estou preparado para o castigo, e a minha dor está sempre diante de mim.

Sendo pecador, sabe que está expiando suas faltas.

Nosso Senhor não era pecador, mas fez as vezes de, para expiar nossas culpas. E estas se achavam continuamente diante d’Ele, tendo Jesus assumido esse papel expiatório.

Porque eu confessarei a minha iniqüidade, e pensarei no meu pecado.

Sofrendo essas dores, ele pensará na sua culpa, no seu pecado. Confessará a sua iniqüidade. Isto é: reconhecerá aos olhos de todos que ele, outrora tão grande, cometeu um pecado e se tornou um molambo.

Entretanto os meus inimigos vivem, e têm-se tornado mais fortes que eu; e têm-se multiplicado os que me aborrecem injustamente.

O castigo aumenta, seus inimigos vivem e se tornam mais fortes que ele. Quer dizer, o pecador recebe ainda mais injúrias.

Os que retribuem males por bens murmuravam de mim, porque eu seguia o bem.

Agora vem a explicação. Os que pagam por meio da ingratidão, da inveja, etc., os benefícios recebidos, esses murmuravam contra ele. Por quê razão?

Não é por ter pecado que os outros o detestavam, mas sim porque havia sido um homem bom, e durante esse tempo se formou contra ele uma trama em razão da qual foi odiado em toda a cidade. E provavelmente esses maus não sabiam que ele cometera um pecado e, assim, tornara-se um capanga da sua maldade. Devido a esse desconhecimento, eles o perseguiam.

Não me desampares, Senhor Deus meu; não Te apartes de mim.

Em outros termos: “Amparai-me e aproximai-Vos de mim.”

Acode em meu auxílio, Senhor Deus da minha salvação.

Trata-se de pedir a ajuda de Deus. Porém, aqui ele está de alguma forma apelando à vinda do Redentor. Assim termina o comentário e a explicação de um texto tão admirável e tão profundo. (Revista Dr. Plinio, Junho/2004, n. 75, p. 10 a 15).

 
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