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Plinio Corrêa de Oliveira


“Senhor, não me castigues na tua ira!”
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 01/10/2019
 
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Marcaram época os comentários que Dr. Plinio teceu em uma série de conferências sobre os sete Salmos Penitenciais. Colocamos em foco hoje os relativos ao Salmo 37.

À primeira vista, o Salmo 37 narra a situação de um pecador que cometeu uma falta muito grave, mas tomou consciência de seu pecado e se arrependeu dele pedindo perdão a Deus. É, portanto, uma situação individual parecida com a do Salmo 50, comentado por nós em anteriores ocasiões1

Belezas próprias ao sofrimento

Esse pecador tem palavras simplesmente magníficas para manifestar a sua dor. Do ponto de vista de expressão literária, esse Salmo é uma maravilha, porque descreve a  condição miserável de um homem tão acabrunhado, tão estraçalhado pelas desventuras que Deus permitiu se abatessem sobre ele, que se considera um coitado, um nada. Essa pulcritude dramática e linda do infortúnio, muito bem apresentada nos salmos inspirados pelo Espírito Santo, torna-se mais patente quando da análise de cada versículo. O que pretenderei fazer a seu tempo. Vale dizer que o homem contemporâneo só conhece a beleza da alegria, daquilo que deu certo na vida; a tragédia escapa completamente à apreciação dele.

Mais difícil de entender é a beleza do infortúnio. Porém, é muito importante compreendê-la, pois não raro o infortúnio desaba sobre nós. Se não nos dermos conta do esplendor, da dignidade, elevação e nobreza próprios da nossa infelicidade, podemos não aguentar o baque.

Cântico de uma dor indizível

A humanidade contemporânea está nesse caso. Se ela tivesse um arrependimento real, se se voltasse para Deus com o coração contrito e humilhado, o Criador não a desprezaria. Assim como não despreza o pecador ao qual se refere o Salmo 37. Ele não é rechaçado pelo Senhor, porque seus gemidos e sofrimento revelam um coração arrependido. Daí vem a certeza de que Deus o atenderá. O Salmo fala dos rugidos de dor, de dilaceração de alma pelas quais o homem passa, mas conclui com palavras de confiança na misericórdia divina.

Contudo, é tal a dor aí expressa, que o espírito de uma pessoa habituada a pensar nas coisas da religião, tem a impressão de que esse padecimento é superior às forças humanas, ou seja, indo além da nossa capacidade de sofrer. E, naturalmente, ocorre-lhe a pergunta: “Não haverá certo exagero em todas essas palavras? A proclamação desta dor não excede a nossa disposição de suportá-la? Então, se não existe tal possibilidade de agüentá-la, o Espírito Santo, Espírito de Verdade e de Vida teria cometido um exagero literário?”

A simples hipótese é blasfema. 

Como entender, pois, que se cante com palavras magníficas a dor sobre-humana de alguém imerso de tal maneira no sofrimento, que se diria estará ele morto antes de atingir o zênite de seus padecimentos?

Palavras aplicadas ao Divino Redentor na Cruz

Considerando essa situação, meu espírito se volta naturalmente para Aquele — com A maiúsculo — que carregou uma cruz maior do que Ele próprio. No sentido material da palavra, tudo leva a crer que a cruz de Nosso Senhor Jesus Cristo foi mais alta do que era a estatura d’Ele. Artistas há que se comprazem em representar a cruz um pouco mais baixa, de maneira a Jesus se achar na possibilidade de responder àqueles que o cercavam, bem como na de receber maus tratos e injúrias, aumentando as dores inenarráveis que Ele estava sofrendo.

Mas existem outros artistas — para os quais se volta minha preferência — que apreciam representar a cruz muito alta. Dessa maneira, pode-se imaginar que as pessoas no Calvário se sentiam fisicamente pequenas diante daquele patíbulo muito elevado, no qual estava pregado o Redentor, entre o Céu e a Terra, isolado, completamente separado dos homens, que só se dirigiam a Jesus para vociferar injúrias, imoralidades e horrores, e para atirar objetos contra Ele Nosso Senhor, estertorando no madeiro, recebe esses acréscimos de mágoas, perguntando a si próprio:

“Meu Deus, até que ponto aguentarei tudo isso? Por que me atiraram essa pedrada que me acertou nos olhos, deixando-me quase cego? Sobre esses olhos machucados não posso sequer passar minhas mãos também machucadas, porque estão presas por dois pregos! Tampouco contra a insolência de um mosquito que pouse sobre minha testa ferida e faça suas patas passearem em minha fronte coroada de espinhos, nem sequer contra um inseto tenho possibilidade de defesa! Sou o indefeso por excelência! Dir-se-ia que pequei de modo horroroso, cometi uma falta maior do que Eu mesmo, de um tamanho incomensurável e Vós me arrancastes do meio dos homens, permitindo que Eu fosse cravado nessa cruz para sofrer toda espécie de dores que nenhum homem aguenta. Esta é a posição em que eu estou, ó Deus!”

Então, podem se referir a Nosso Senhor as palavras deste Salmo. Ele, o Homem-Deus, perfeito, sem a menor culpa nem original, nem atual, não tendo praticado senão o bem nas suas formas mais altas e mais magníficas, suporta o peso de todos esses pecados que Ele não cometeu. Jesus, o Puríssimo, o Santíssimo, expia pelo gênero humano que O ofendeu desmedidamente.

Compreende-se, portanto, que este Salmo parece aludir aos padecimentos de Nosso Senhor durante a Paixão e na cruz, e aos gemidos que Ele, como vítima expiatória, apresentava ao Pai Eterno. O Redentor poderia Lhe dizer: “Meu Pai, sei que sou o Cordeiro inocente e não cometi pecado algum. Mas por vossa vontade Eu me encarnei, a fim de ser esta Vítima necessária à redenção dos homens e abrir para eles a porta do Céu. Era preciso que um Atleta, um Herói — diante do qual os atletas e os heróis no sentido terreno da palavra não são senão formigas — se apresentasse em frente dessa enigmática porta cerrada, atrás da qual reinais gloriosamente, e fosse capaz de Vos afirmar: Senhor, mandaste-me para abrir essa porta; o preço da abertura sou Eu mesmo. Na minha cruz pago esse preço e sou a moeda com que se abre a porta do Céu para todos aqueles que têm boa vontade.”

Jesus se oferece por todos os homens

Nosso Senhor é, então, a vítima expiatória divina e humana que sofre tudo isso por nós e nos proporciona essa meditação.

No alto da cruz está Ele, o Profeta perfeito, porque profetizou o que faria, e fez o que profetizou. Ali, Jesus toma em consideração os homens que existiram e que existirão até o fim do mundo, pois os conheceu todos, viu passar diante d’Ele cada um de nós individualmente, com suas qualidades e com seus defeitos; contemplou nossas almas hesitando miseravelmente entre o bem e o mal, ora recuando para o caminho do pecado, ora avançando nas sendas da virtude, progredindo rumo à perfeição. E elevou essa súplica:

“Por este, por aquele, pela multidão incontável dos homens, meu Pai, ofereço essa quantidade incontável de dores. Tomai isto que é mais do que um cálice, repleto de sofrimentos e tormentos. Dedico tudo isso também pelos índios que vagueiam ignotos pelas regiões ainda não descobertas da América, pelos pagãos das regiões da Ásia, da África, etc., que vivem na ignorância do verdadeiro Deus.

“De todas essas coisas tenho conhecimento neste momento supremo em que meu holocausto é oferecido. Peço por todos e cada um deles. E rogo por Aquela que é a Obra-prima da criação, Maria Santíssima, que me destes por Mãe. Ela ficou isenta do pecado original por um privilégio que é fruto de minha Redenção, e foi para que Eu nascesse desse seio puríssimo, imaculado, que A criastes. Ela é essa insondável maravilha, partícipe do conjunto da humanidade. Por tudo isto me ofereço.

“E no momento em que Eu sentir as dores subirem em Mim como um mar que ameaça deglutir toda uma cidade praiana, no momento em que Eu estalar com essa fenda aberta em meu ser, no instante em que o padecimento tocar no inimaginável, quero poder dizer que suportei tudo, aceitando esse cálice de amarguras com humildade e inteira conformidade convosco. Então exclamarei: Meu Pai, em vossas mãos entrego o meu espírito!”

Nessa hora as portas do Céu se abrem, os Anjos cantam, e Nossa Senhora ao pé da cruz conhece o significado de tudo que está se passando. Maria Santíssima, a Mater Dolorosa, Ela mesma sente pela primeira vez o bimbalhar de um sorriso em seu coração. Tudo está consumado, o sofrimento acabou e, após três dias de sepultura, virão as glórias da ressurreição.

Nossa Senhora chora — Stabat Mater dolorosa juxta crucem lacrymosa: estava a mãe cheia de dores junto à cruz, vertendo lágrimas —, mas permanece de pé junto ao madeiro. Quer dizer, em nenhum momento Ela flecte, em nenhum momento desmaia. Assiste tudo de pé até a última oblação. Stabat!

E nesse mesmo instante racha-se todo o edifício do demônio, o firmamento se torna escuro, a terra estremece diante do horror do pecado perpetrado contra o Homem-Deus.

Segundo uma tradição — o fato não é inteiramente comprovado — um ilustre filósofo de Atenas, ao ver o sol que se obscureceu naquele momento, e toda a convulsão da terra, disse: “Em algum lugar, morreu um Deus”.

Claro, não morreu Deus, porque Deus não morre. Mas, de acordo com a concepção pagã deles, seus deuses de mentira e de fancaria podiam sofrer a morte. Assim, esse homem teria tido a idéia de um elemento divino que morreu. Donde esse imenso terror.

Mas, não devemos nos esquecer de que se aproxima a hora da alegria e da ressurreição. Nosso Senhor ressuscita, sai da sepultura de pedra reluzente com sua túnica que fora vermelha como a púrpura de um imperador, tingida com esta tintura que não teve igual nem terá até o fim do mundo: o próprio sangue de Cristo. Essa túnica se tornou alva como a neve. Inicia-se, então, a glória d’Ele até a hora da Ascensão para o Céu. (Revista Dr. Plinio, Maio/2004, n. 74, p. 14 a 19).

1 ) Cf. “Dr. Plinio” 63, 64 e 65.

 
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