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Plinio Corrêa de Oliveira


Temerariamente bom…
 
PUBLICADO POR ARAUTOS - 11/07/2019
 
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Se é preciso ter cuidado com os juízos temerários desfavoráveis, que lesam a honra da pessoa julgada, com maior razão devem ser evitados os juízos temerários benévolos, m ais prejudiciais que os primeiros. Esta tese, decerto surpreende, é demonstrada de modo cabal por Dr. Plinio.

A “caridade” com que muitos dormem o sono da paz, muito mais se parece com o torpor dos Apóstolos no Horto das Oliveiras

Como já tivemos oportunidade de analisar, a palavra “temerário” significa imprudente, inconsiderado. Assim, qualquer juízo só será temerário se inconsideradamente formado, isto é, se formado sem aquela madura análise que deve preceder todos os nossos julgamentos.

Entretanto, de nenhum modo se deve daí inferir que, quando erramos em nosso juízo sobre alguém, agimos temerariamente. O homem é falível, e as circunstâncias muitas vezes o enganam. Por isto, sempre que se tiver agido com cautela, pode a consciência ficar plenamente tranquila.

Juízos temerários favoráveis e prejudiciais

É curioso notar que nem todo juízo temerário é necessariamente desfavorável. Se é temerário todo juízo imprudente, é óbvio que, quando as conclusões desse juízo forem favoráveis, nem por isto terão deixado de ser temerárias.

Não é necessário dizer que, enquanto o juízo temerário desfavorável pode lesar gravemente os direitos da pessoa por ele alvejada, o juízo temerário favorável é, deste ponto de vista, inócuo. Entretanto, um juízo temerário favorável, não ferindo os direitos da pessoa a quem se refere, pode ferir gravemente os direitos de terceiros. E, neste caso, o pecado daí decorrente será tanto mais grave quanto mais respeitáveis forem os direitos assim desrespeitados, bem como quanto mais numerosas forem as pessoas prejudicadas.

Exemplifico. Um pai tem deveres sagrados para com seus filhos. Se ele, entretanto, levado por uma exagerada complacência, ou por um culposo descuido, forma de seus filhos, temerariamente, um juízo muito melhor do que merecem, viola gravemente seus deveres, pois que se coloca na impossibilidade de corrigir seus filhos. Esse mesmo pai, entretanto, teria talvez escrúpulo em formar uma suspeita legítima quanto a algum empregado, sócio, cliente, etc. Não há nisto um evidente desequilíbrio?

Outro exemplo: em geral, os professores conservam sobre seus antigos alunos alguma autoridade moral; entretanto, é tão grande a cegueira de muitos deles para com esses produtos de seus esforços educacionais que só vêem neles qualidades e não defeitos; e, em última análise, a influência moral dos antigos professores, em grande número de casos, se torna inteiramente inútil para os alunos.

Outro exemplo ainda: os presidentes de setores de Ação Católica ou de associações religiosas têm obrigação estrita de discernir, nos associados, os defeitos que os tornem perigosos aos demais, a fim de que, se inúteis as advertências amistosas, os elementos nocivos sejam afastados. Conheço, entretanto, um caso concreto de certa associação que tendo relutado durante anos inteiros em expulsar alguns membros, acabou por ficar reduzida a uma inanição absoluta, pela corrupção dos elementos bons que tinha conseguido laboriosamente formar. Não houve, no juízo temerariamente bom das autoridades dessa associação, uma grave falta no cumprimento dos encargos?

Tudo isto posto, é certo que não são só os juízos temerários desfavoráveis que podem acarretar pecados.

Penso que chocarei muitos leitores se, a isto, eu acrescentar que minha experiência me tem mostrado que a Igreja e a sociedade têm padecido muito mais dos juízos temerários favoráveis, do que dos desfavoráveis, que hoje em dia se formam. Entretanto, esta é uma importante verdade. Se o mal tem tantas vezes uma imensa liberdade de ação, se ele conquista círculos de influência cada vez mais largos, se ele estende seu domínio sobre o mundo de modo cada vez mais insolente, enquanto a influência dos elementos bons se retrai, ferida muitas vezes de uma oprobriosa impotência, de uma infecundidade evidente, a que se deve isto, senão à confiança por vezes infantil e ridícula com que os bons abrem seus ambientes aos maus?

Ora, os pecados contra os interesses da Igreja são, de sua natureza, maiores e mais graves do que os que se cometem contra interesses humanos. Por outro lado, os pecados contra a sociedade são maiores, de sua natureza, do que os que se cometem contra os indivíduos. Em vista disso, quem por juízo temerariamente bom prejudica a Igreja e a sociedade, peca mais gravemente do que quem por juízo temerariamente mau prejudica um indivíduo.

Imbecilidade e não virtude

Tudo quanto dissemos sobre os juízos temerários se aplica, ponto por ponto, às suspeitas temerárias. Também há suspeitas temerariamente boas. Quando concebemos uma infundada e temerária esperança de que alguém é bom; quando supomos temerariamente que podemos dar a A, B, ou C as maiores provas de confiança com o intuito de os comover e assim arrastá-los para a Igreja; quando deixamos de exigir desse ou daquele indivíduo as garantias necessárias em matéria de interesses espirituais ou temporais, por julgarmos muito auspiciosa sua fisionomia franca e leal – em todos esses casos cometemos suspeitas temerariamente boas, porque nos teremos deixado empolgar por esperanças infundadas, por aparências enganosas, por ilusões contra as quais um homem sério deve estar premunido internamente. E, assim, prejudicamos seriamente os nossos interesses, os de nossas famílias, de nossa Pátria e, o que é pior do que tudo, os da Santa Igreja. Livre-nos Deus, pois, das suspeitas temerariamente severas. Mas livre-nos também das suspeitas temerariamente indulgentes.

A este respeito, não julgamos dever desmascarar o erro infantil dos que supõem que todo juízo severo, pelo próprio fato de ser severo, é temerário. Achar que um assassino é um assassino, um adúltero é um adúltero, ou um ladrão é um ladrão, constitui para muita gente juízo temerário. Poderá haver opinião mais ridícula? Assim, quando Nosso senhor chamava os fariseus raças de víboras e sepulcros caiados, cometia juízo temerário. Quando os Apóstolos, os Papas, os Padres e Doutores da Igreja estigmatizavam em palavras candentes os erros dos potentados de seu tempo, cometiam juízo temerário. E a caridade, segundo essa estranha moral, consistiria em achar pertinazmente, e contra toda a evidência dos fatos, que um assassino é um cordeiro, um adúltero um lírio, e um ladrão uma pomba. Isto não é virtude, mas imbecilidade. Diz-se de Santa Teresa que ela afirmou que a humildade consistia na verdade. É também certo que a caridade não consiste, nem no erro, nem na mentira.

Torpor pecaminoso, numa hora de crise

Viola gravemente seus deveres o pai que, por complacência exagerada, forma de seus filhos um juízo melhor do que merecem

Tudo isto está certo, dirá muita gente. Mas deixemos aos que detêm qualquer autoridade, seja na família, seja na sociedade, seja no Estado ou na Igreja, o encargo de formar essas dolorosas certezas e essas tristes suspeitas. Conformemo-nos com nossa condição de súditos, e aproveitemos nela ao menos a satisfação de viver sem preocupações.

Todo mundo reconhece que, para as altas funções – e quantas funções há que, sendo humildes, são altíssimas! -, é necessária uma preparação remota. Se todos aqueles que exercem no Movimento Católico, na sociedade ou na família, funções que os obrigam absolutamente a suspeitar do próximo (dentro da medida do justo e do razoável, repetimo-lo), e só se preparam para isto depois de terem recebido nos ombros o peso da autoridade, que espécie de chefes teremos? Não haveria uma analogia entre eles e um general que só começasse a aprender estratégia depois de promovido a essa alta dignidade? […]

O mundo está atravessando uma tremenda hora de crise. A “caridade” com que muita gente, fechando os olhos ao perigo, dorme o sono da paz, muito mais se parece com o torpor dos Apóstolos no Horto das Oliveiras, do que com uma verdadeira virtude sobrenatural. Se esses membros sonolentos da Igreja militante não querem ouvir nossa voz, meditem ao menos nas palavras de Nosso Senhor: “Una hora non potuistis vigilare mecum?” – “Não pudestes vigiar comigo nem uma hora?” (Excertos de artigo do “Legionário”, nº 477, de 2/11/1941. Título e subtítulos nossos.)(Revista Dr. Plinio, Outubro/2002, n. 55, p. 6 a 8).

 
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